O programa do Governo para a Habitação esteve e está sob pressão máxima do Presidente da República e o primeiro-ministro mostrou uma primeira cedência. As duas medidas mais quentes e sob avisos presidenciais constantes (arrendamento obrigatório de devolutos e licenças para alojamento local) foram passadas para as mãos dos municípios e, com isto, Costa acaba a tentar partilhar o fardo também com o PSD, que domina metade do mapa autárquico (149 para PS e 114 para PSD), incluindo algumas das cidades onde a pressão do imobiliário está mais presente. Responde aos autarcas, que neste tempo de espera entre a primeira apresentação do pacote de medidas, se queixaram de terem ficado de fora, e responde a parte das inquietações de Marcelo.
O Presidente da República foi duro na apreciação do plano do Governo para a habitação e apontou a sua eventual “inoperacionalidade”, chamando-lhe mesmo “lei-cartaz“, com o dedo apontado ao arrendamento coercivo e também à necessidade de “equilíbrio” entre os interesses do alojamento local e o aumento de casas no mercado de arrendamento.
Quanto à primeira, Costa veio agora dizer que não se trata de “esbulho, nem expropriação” e que o primeiro passo cabe sempre aos municípios, afinal são eles que têm um ano para classificar uma casa de devoluta (e cobrar o IMI agravado). Dois anos depois dessa classificação, serão também os municípios a ter de fazer a proposta para o arrendamento forçado.
Na lista de devolutos por município que o Governo apresentou esta quinta-feira, entre os municípios com maior número de prédios assim classificados e localizados fora das regiões de baixa densidade estão Lisboa, Porto, Coimbra, Faro, Leiria, Ourém ou Águeda. Cinco deles são municípios sociais-democratas (Lisboa, Coimbra, Faro, Ourém e Águeda).
“A lei dá ferramentas e os municípios são autónomos. E se o município não quiser forçar o arrendamento, comunica ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana”, disse Costa passando para o lado de lá a bola de uma medida cuja estranheza que provocou junto da opinião pública deixou Costa “perplexo”.
Fez o mesmo no Alojamento Local, onde defende “a necessidade de garantir um equilíbrio entre as respostas habitacionais e a continuidade do Alojamento Local, sobretudo nas áreas de maior pressão”. Costa falou na necessidade de limitar de uma atividade que “tem um impacto muito grande no acesso à habitação das famílias portuguesas e, por isso, exige regulação”. Mas serão os municípios que têm de fazer essa avaliação nas suas zonas, decidido se atribuem ou não novas licenças, se promovem mais alojamento local ou se lhe põem limites.
Disse às autarquias que vão ter de definir, nas cartas de municipais de habitação, que “equilíbrio” se justifica em cada uma das regiões entre os tipos de habitação: habitação para famílias, habitação estudantil, alojamento local, etc. O que o Governa pensa sobre “o impacto muito grande” sobre as famílias — “cada casa que vai para AL é menos uma casa que vai para uma família” — foi mais uma vez sublinhado por Costa (e contestado pelo setor que se manifestava à porta da apresentação das medida). O que os municípios farão, é responsabilidade deles. “A partir do momento em que o município considera que está alcançado o equilíbrio deixa de haver suspensão de novas licenças”, detalhou sobre este assunto, embora tenha avisado que “todos os municípios que se tenham considerado em situação carência habitacional” estão impedidos de “conceder novas licenças”.
O tema da habitação é de alta sensibilidade e impacto junto da população e a responsabilidade partilhada, com exigência (política e pública) de resultados a breve prazo. No horizonte não tão longínquo assim, estão as eleições autárquicas (2025), onde a cobrança desses mesmos resultados será posta à prova pela primeira vez e um ano antes de legislativas.
Fasquia mínima de Marcelo
O caminho do que agora ficou definido e que passará agora pela Assembleia da República ainda é incerto. O Presidente da República já admitiu que poderá enviar algumas destas normas para o Tribunal Constitucional, mas também promulgar sem estar totalmente de acordo — dando como exemplo o que fez com a Agenda do Trabalho Digno, em que o PSD se absteve. Marcelo nunca escondeu privilegiar o consenso entre as duas maiores forças políticas numa reforma estrutural, dizendo mesmo esperar que na “negociação no Parlamento, nomeadamente com o PSD, resultem em leis que possam passar e que sobretudo sirvam para resolver problemas.” O que se passou com a Agenda do Trabalho Digno poderá, assim, ser a fasquia mínima para o Presidente.
Para lá chegar, Costa conta com o trabalho da maioria parlamentar, é para ela que remete a fase que se segue de negociação política. E vai ficar afastado dela. Quando questionado se tenciona qualquer abordagem direta com o presidente do PSD Luís Montenegro sobre este pacote concreto, o primeiro-ministro sai de campo: “A regra é que os partidos procurem entender-se entre si.” Neste ponto, se Marcelo sugere conversas privilegiadas com os sociais-democratas, Costa parece menos animado em fazer-lhe o favor, colocando o PSD ao nível das restantes bancadas parlamentares.
O tempo de “apresentar soluções” — tarefa que Costa assume como a do seu Executivo — está consumado, agora segue-se o Parlamento e depois será “o tempo” do Presidente da República. Nas últimas semanas o primeiro-ministro tem insistido em lembrar que o percurso legislativo comum para colocar cada órgão de soberania no seu galho, o que foi entendido como um recado para Marcelo moderar as intervenções públicas sobre medidas que estavam ainda em fase de discussão. Chegou mesmo a existir um despique entre Presidente da República e presidente do PS.
António Costa foi sempre dizendo que Marcelo Rebelo de Sousa é “livre de se expressar” e que exerce “as suas competências como bem entende”, mas ao mesmo tempo faz questão de reforçar que, no caso das propostas de lei, agora é o tempo do Parlamento. E, só depois, é que o diploma (“que ainda não se sabe qual será”) seguirá para Belém. Costa voltou a repetir que “não compete ao Governo comentar as intervenções do senhor Presidente da República. Portanto, não há nenhuma razão para o fazer”. Mas enviava novo recado a Marcelo Rebelo de Sousa: “Tal como gostamos que respeitem as nossas competências, também respeitamos as dos outros”. E avisava ainda: “Aguardemos pela Assembleia da República e depois pelo Presidente. Cada coisa a seu tempo.”
Ainda quanto a um eventual travão de Belém, Costa tem a “convicção” de que nada do que propõe é inconstitucional. “Nós limitamo-nos a utilizar um conceito e uma figura, que já está em vigor na legislação portuguesa há muitos anos e que, tanto quanto eu saiba, nunca foi posta em causa a sua constitucionalidade e seguramente nunca foi declarada inconstitucional”, atirou. É a resposta à pressão de Marcelo, tal como fez na terça-feira, em Tomar, quando disse que — das duas últimas vezes que o Presidente pediu a fiscalização da constitucionalidade — os juízes do Palácio Ratton deram razão ao Governo. Se for inconstitucional, Costa desiste desiste: “Devemos respeitar serenamente.”
Relativamente a um eventual veto político, Costa não esclarece se insiste com Marcelo ao ponto de lutar pela promulgação. Limita-se a fazer uma descrição dos três caminhos de Marcelo: “Se o Presidente tem dúvidas da constitucionalidade, pede a fiscalização constitucionalidade; se não tem, pode promulgar; se discordar politicamente, pode vetar. Faz parte das competências constitucionais de cada um e é assim que a democracia se exerce. É no respeito pela competência de cada um.”
Ao contrário do que é comum, Marcelo foi reservado no comentário ao que foi agora aprovado em Conselho de Ministros e prefere dizer o que pensa esta sexta-feira, ao lado do primeiro-ministro no périplo que os dois vão fazer pelo país do Plano de Recuperação e Resiliência que o Governo quer mostrar ao Presidente. É improvável que tenha guardado o pior para dizer quando Costa estiver ao seu lado — a prática tem sido outra, como se viu na recente conferência de imprensa conjunta, na República Dominicana, depois de uma semana especialmente tensa entre Belém e São Bento.