Os vírus não se erradicam. Mais correto: os vírus dificilmente se erradicam. Eles habituam-se a nós, nós a eles, e a coexistência vai-se tornando mais ou menos pacífica dependendo das mortes que provocam e das que estamos dispostos a aceitar. “Se me pergunta se vamos erradicar o vírus da Covid-19, digo-lhe já, diretamente, que não”, garante Elisabete Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologistas. “Só podemos erradicar doenças que não têm também um hospedeiro animal, e não é o caso. Se temos dificuldade em controlar vírus que circulam apenas entre a população humana, imagine os que circulam também em populações animais… Essa foi uma das vantagens da varíola.”
Não há virologista que falhe o nome desta doença quando a conversa é sobre exterminação de vírus — ou erradicação, para se usar a terminologia correta. Ao longo do século XX, a varíola terá causado entre 300 a 500 milhões de mortes e o seu vírus tinha algumas vantagens (a nosso favor) em relação ao da Covid, que soma mais de 4,6 milhões de óbitos: os seres humanos eram os seus únicos hospedeiros e a vacina, quando descoberta, tinha 100% de eficácia.
Em Portugal foi de toma obrigatória até 1977, ano em que foi diagnosticado na Somália o último caso natural da doença. Em 1978 registou-se uma outra infeção, no Reino Unido, mas relacionada com um acidente num laboratório onde se manipulava o vírus. Dois anos depois, em 1980, a Organização Mundial de Saúde certificou a erradicação da doença.
Apesar disso, o vírus continua a existir, mesmo que não circule entre nós: está guardado no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) norte-americano, em Atlanta, e no Instituto Vector, na Rússia. Já no século XXI, em 2011, um outro vírus foi considerado erradicado — o da peste bovina —, mas esse nunca saltou dos animais para o homem e, por isso, não entra nesta história.
Outros vírus não foram erradicados, mas desapareceram misteriosamente, como o primo direito do vírus da Covid, o SARS-CoV-1. Em 2003, o mundo ouviu falar pela primeira vez em pneumonia atípica depois de um alerta da OMS. O vírus circulou entre 2002 e 2004 por 26 países, e a síndrome respiratória aguda grave (SARS) afetou mais de 8 mil pessoas, matando 10% dos infetados (774). Por agora, a sua história fica por aqui, sem mais registos, desde 2004, de infetados entre humanos.
Poderá o coronavírus seguir o caminho do vírus da varíola e desaparecer da face da Terra? Ninguém arrisca responder que sim. O bastonário da Ordem dos Médicos acredita que vamos ter de aprender a viver com o SARS-CoV-2 de forma endémica, pelo menos no médio prazo. “Neste momento, não é possível erradicar o vírus, mas não diria que essa hipótese está afastada para sempre. A tecnologia avança muito rapidamente e até a forma como fazemos medicina está a mudar”, explica Miguel Guimarães. Por isso, a sua postura é otimista e não se admiraria se, no espaço de dois ou três anos, houvesse evolução científica suficiente para eliminarmos alguns vírus que circulam entre nós, incluindo o SARS-CoV-2.
Ao contrário da varíola, o vírus da Covid circula entre animais e terá sido através de um salto zoonótico (de animal para humano) que chegou até nós. Sabe-se que os morcegos são hospedeiros e terá sido através de um outro intermediário animal que o primeiro humano foi contaminado: morcego — animal desconhecido — homem. Desde então, o vírus já foi encontrado em cães, gatos, tigres, leões e gorilas. Como refere Elisabete Ramos, mesmo que a doença fosse controlada e se tornasse inexpressiva entre humanos, dificilmente se conseguiria cessar a circulação do vírus na natureza.
Jaime Nina e Francisco Antunes, ambos infectologistas, professores catedráticos e habituados a estudar a fundo o ciclo de vida dos vírus, frisam que o da Covid não foge aos padrões dos zoonóticos: são responsáveis por muitas mortes quando saltam, pela primeira vez, de um animal para o homem. Depois, acalmam.
O mundo conhece sete coronavírus, lembra Jaime Nina, também médico no Hospital Egas Moniz. Três deixaram marcas recentes — provocando a Covid-19, a SARS e a MERS (síndrome respiratória do Médio Oriente), enquanto os outros quatro são responsáveis por constipações e resfriados tão banais que não lhes damos importância. O NL63 foi descoberto em 2004 e o HKU1 em 2005. Mas se hoje não se escrevem notícias nem sobre eles, nem sobre o HCoV-229E e o HCoV-OC43, descobertos na década de 1960, a primeira vez que infetaram um humano deverão ter deixado um rasto de mortalidade, acreditam especialistas de todo o mundo.
No início dos anos 2000, o virologista belga Marc Van Ranst dedicou-se a olhar com mais atenção para o OC43 e colocou a hipótese — não provada por falta de amostras — de que este coronavírus terá estado na origem da pandemia de gripe russa que matou entre 1 milhão a 1 milhão e meio de pessoas entre 1889 e 1890 (com surtos até 1895 e que chegaram aos EUA), e que é habitualmente atribuída a um vírus influenza. Van Ranst discorda que se tenha tratado de uma gripe. A seu favor tem a sequenciação genómica do vírus, conseguida pela sua equipa, e os passos que deu para trás: terá sido por volta de 1890 que este coronavírus saltou dos animais para o homem, altura que bate certo com o surgimento da gripe russa.
“Encontramos indicações genéticas disso em 2005”, disse Van Ranst numa entrevista recente. “Só podemos prová-lo se encontrarmos o vírus em amostras daquela época, e isso não é fácil. Mas os sintomas que causou e a natureza da epidemia são muito semelhantes à atual pandemia, por isso, é uma hipótese plausível.” Muitos dos doentes, segundo os registos históricos, viam o seu sistema nervoso central ser afetado. Hoje, o OC43 está associado a constipações leves, mas também se sabe que pode infetar o tecido nervoso.
Como é que passou de vírus mortal a constipação leve e, mais importante para a situação atual, ao fim de quanto tempo? “Não sabemos”, confessa Van Ranst, explicando que tão pouco se sabe se aconteceu de repente ou muito gradualmente.
Já chegámos lá? A Covid já é uma doença endémica?
Os nossos sistemas imunitários não estavam à espera do vírus da Covid. E o vírus da Covid também não estava preparado para sobreviver em humanos. À medida que mais pessoas vão sendo imunizadas naturalmente ou artificialmente (através da vacinação), o nosso corpo vai aprendendo a reagir ao SARS-CoV-2. Por outro lado, o vírus — a quem interessa que o hospedeiro se mantenha vivo, já que precisa dele para viver e se multiplicar — vai evoluindo para se propagar mais depressa, deixando menos hospedeiros mortos ao longo dessa evolução.
“A culpa não é do vírus, é do hospedeiro que não tem defesas”, diz Jaime Nina, explicando que foi a nossa falta de defesas naturais que permitiu o surgimento da pandemia. Será a criação delas que, em conjunto com outros fatores, irá ajudar à passagem de pandemia para endemia. “Nos últimos anos, tem havido uma série ininterrupta de novos agentes que entraram no ser humano — como o sarampo. O vírus da Covid é apenas o último. Adaptaram-se e ficaram por cá”, lembra o infectologista. O sarampo, recorda, era uma doença do Velho Mundo que quando entrava em aldeias dos Estados Unidos matava populações inteiras. Hoje é uma doença endémica, assim como também o são a malária, a febre amarela, a cólera ou a dengue e apenas em alguns pontos do mundo.
Erradicar a Covid é hipótese cada vez mais improvável. “Este vírus está aqui para ficar”, admite OMS
“A varíola foi erradicada com uma vacina, mas não só. Havia rastreio de casos, quarentena, vacinação obrigatória”, sublinha o especialista, lembrando que ninguém sai dos aeroportos de Angola ou da Bolívia, ainda hoje, sem estar vacinado contra a febre amarela. Idem para o Bangladesh, no que toca à cólera. Situações, apesar de tudo, diferentes, porque são vírus que saltitam entre vários hospedeiros, defende Jaime Nina.
“O que sabemos sobre este vírus é que houve um episódio zoonótico único, por volta de novembro de 2019, quando o vírus saltou de um hospedeiro animal para o ser humano”, refere o especialista, o que mostra que o seu ciclo de vida entre humanos ainda agora começou. Mas se este coronavírus chegou com taxas de letalidade elevadas, isso acabará por mudar à medida que for dando os seus passos evolutivos. “A agressividade depende do próprio vírus e o original era menos transmissível do que as variantes que circulam atualmente. O vírus está mais transmissível também por ser menos letal”, explica Jaime Nina.
Paradoxo? Não. Um vírus que mata rapidamente o hospedeiro (ou que o deixa gravemente doente) tem menos hipótese de circular porque ou morre com o hospedeiro ou este é isolado e não contagia mais ninguém. Quantos mais hospedeiros assintomáticos houver mais facilmente um vírus circula — e esse é o seu objetivo.
Aos hospedeiros humanos cabe garantir que esta transformação em doença endémica deixa o menor número de mortos pelo caminho. Deixar o coronavírus circular livremente entre pessoas não vacinadas poderia fazer-nos chegar à doença endémica mais depressa, mas o número de óbitos seria muito superior ao atual.
“Hoje em dia, todos nós somos descendentes de sobreviventes do sarampo. A longo prazo, mas a muito longo prazo, daqui a mil gerações, todos os humanos serão descendentes de pessoas que não morreram com o vírus da Covid-19”, sublinha Jaime Nina.
Um ponto de vista que já foi defendido pelo virologista neozelandês, investigador e colaborador da Organização Mundial de Saúde: “Mais cedo ou mais tarde vamos todos apanhar esta coisa. Seja hoje, amanhã, no próximo ano ou daqui a vários anos, não sabemos quando, mas vai acontecer de certeza”, argumentou Richard Webby numa entrevista. “Em algum momento penso que irá tornar-se em algo semelhante à constipação ou à gripe”, acrescentou. Algumas pessoas acabarão internadas, mas será “mais fácil de lidar” com os números enquanto sociedade.
Nessa altura, o coronavírus deixará de ser novo para os nossos sistemas imunitários e apelidá-lo de “gripezinha” deixará de ser sinónimo de atitude negacionista. Mesmo que a gripe não seja vista como uma doença assustadora, em 2018/19 morreram 3.331 pessoas com o vírus da influenza em Portugal. Na época gripal anterior foram 3.700, segundo dados do Instituto Ricardo Jorge.
Francisco Antunes resume o futuro: “O vírus deverá tornar-se endémico com alguns surtos epidémicos.” O especialista em doenças infecciosas lembra que haverá sempre um número residual de não vacinados e o vírus continuará a circular, enquanto as mutações vão ocorrendo. “A infeção vai manter-se como a da gripe, mas não tanto relacionado com as estações do ano.”
O bastonário dos Médicos também prevê a existência destes surtos. “A Covid continuará endémica, de forma global, não apenas num país ou noutro, e sem ter um mês certo para aparecer como a gripe que surge sempre no inverno.”
Vacinar é fundamental, mas não chega
Para controlar a pandemia, não basta aquilo que tem sido feito, defende Francisco Antunes. “A interrupção da transmissão do vírus, a limitação da circulação das pessoas, a vacinação em massa é o que se tem feito sempre contra as pestes”, diz o professor da Universidade de Lisboa. “Há medida que conhecemos mais esta doença, percebemos que tem maior gravidade porque há interação com outras doenças não transmissíveis”, diz, apontando a obesidade e a diabetes como exemplo, para além dos problemas cardíacos e respiratórios. “É neste cruzamento com estas doenças que se encontra a gravidade da doença Covid.”
Por isso, embora defenda a importância da vacinação, não acredita que ela baste para controlar a pandemia. “Sabemos que as vacinas têm eficácia limitada contra o risco da infeção, embora sejam eficazes contra a doença grave, a hospitalização e a morte. Mas à medida que são vacinadas milhões de pessoas percebemos que algumas não respondem como se esperaria e outras perdem imunidade ao longo do tempo”, diz. O exemplo? Idosos e pessoas com algumas doenças crónicas e compromisso de imunidade.
À vacina, defende, seria preciso juntar o combate contra as desigualdades sociais, já que estas exacerbam a gravidade da Covid-19. “Não nos podemos concentrar só no vírus, temos também de olhar para o hospedeiro, o homem, e ir para lá da abordagem epidemiológica”, sublinha Francisco Antunes, para quem as medidas biomédicas não serão suficientes nem para a eliminação nem para o controlo da doença.
Se não houvesse estas doenças crónicas, a pandemia teria sido escrita de outra forma? “Não tínhamos tido tantas mortes, seguramente. Estas doenças, associadas ao contexto social desfavorecido, trouxeram muitas mortes acrescidas”, diz o infectologista. De novo, a varíola é o exemplo: “Foi erradicada muito à conta da vacina, mas foi também com a melhoria das condições de vida, do acesso a água potável, de medidas sanitárias, das melhorias nutricionais da população que se conseguiu acabar com a varíola.”
E termina lembrando que as alterações climáticas tendem a piorar as situações de desigualdade que, no seu entender, tornaram a pandemia muito pior do que poderia ter sido. “É uma infeção de todos, mas não é uma doença de todos. Não vamos resolver um problema global, com soluções locais.”
Vacinas: 3.ª dose, 4.ª dose, ou reforço anual?
A administração de uma terceira dose da vacina contra a Covid-19 já acontece em vários países (em Portugal também os doentes imunodeprimidos estão a receber esta dose), mas cada vez mais os especialistas percebem que o futuro é a vacina fazer parte da nossa rotina, tal como a coexistência com o vírus. Em que moldes? É nesse ponto que é mais difícil encontrar consenso.
Para Jaime Nina, o mais provável é que a vacina se torne mais uma na panóplia de imunizações que já são feitas às crianças. “Se mantiver o mesmo nível de mutação baixo, vai tornar-se numa vacina de criança, talvez como a do tétano, que repetimos de muitos em muitos anos.” É que apesar de haver várias variantes do SARs-CoV-2, ele está longe de se alterar tanto quanto um vírus influenza.
Já Elisabete Ramos, embora frisando que é preciso mais tempo para ter certezas, vê como cenário possível algo semelhante às vacinas do sarampo ou do tétano — para evitar a primeira doença basta uma administração, para a segunda o reforço é feito de 20 em 20 anos. Tornar-se em vacinação anual como a da gripe, como sugere o bastonário dos Médicos, não lhe parece viável. “Não deverá ser com uma regularidade tão próxima como a da gripe, porque o vírus da Covid não tem uma adaptação tão rápida. O da gripe adapta-se muito mais, daí ser necessário uma vacinação anual.”
Para o bastonário Miguel Guimarães, o futuro pode ser o dois em um. “Se a indústria conseguir poderemos ter uma vacina que dê para a Covid e para a gripe sazonal.” Essa hipótese está em cima da mesa e, depois de a Novavax anunciar ter dado início aos ensaios clínicos nesse sentido, também a Moderna quer desenvolver uma vacina única para a Covid-19 e a gripe sazonal.
Pelo caminho, a Organização Mundial de Saúde não para de pedir equidade na vacinação, e Tedros Adhanom, o diretor geral da OMS, voltou a insistir, na semana passada, para que não se inicie a terceira dose da vacinação enquanto houver países em desenvolvimento que não conseguem sequer administrar a primeira dose. Apelos semelhantes tinham sido feitos quando a Europa, Israel e os Estados Unidos começaram a vacinar crianças e adolescentes.
Quatro dias depois do apelo da OMS, a 12 de setembro, chega um anúncio de Israel na direção oposta. O diretor-geral do Ministério da Saúde, Nachman Ash, anunciou que o país está a preparar-se para que nada falhe se for preciso administrar uma quarta dose. “Não sabemos quando vai acontecer”, disse Ash. “Espero bem que não seja nos próximos seis meses, como desta vez, e que a terceira dose dure mais tempo.”
A estratégia de países como Israel não agrada a Jaime Nina, que discorda que a terceira dose seja dada como rotina. Elisabete Ramos aponta para a importância de uma estratégia global para a vacinação se o objetivo é, de facto, controlar a pandemia.
“Não concordo com a abordagem atual. Temos maneiras de medir a imunidade, de medir os anticorpos, e se eles batem no teto, vou administrar uma terceira dose para quê? Olhe para a hepatite B. Ninguém dá uma terceira dose da vacina por rotina, sem medir antes a imunidade. Depois, mediante os resultados, decide-se”, defende o infectologista. Em alguns casos, sublinha, já há evidência de que esse reforço vai ser necessário, como nos doentes HIV positivos ou em pessoas mais idosas.
Jaime Nina lembra ainda que as vacinas são um bem muito precioso e que quando se está a avançar para as terceiras doses em certos países isso significa que nos países mais pobres se está a adiar a toma da primeira.
“Os próximos tempos vão depender muito de como vai ser feita a distribuição vacinação a nível global. Se continuarmos a ter países com elevada incidência, ninguém pode imaginar que controlou esta patologia”, defende a epidemiologista Elisabete Ramos. “O mundo é global. De pouco serve uns terem muitas vacinas e outros não terem nada.”