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Autor desconhecido / Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

Autor desconhecido / Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

Apaixonou-se pelo Alentejo e viveu num "castelo" em Lisboa. A vida notável de Maria Teresa Eugénio de Almeida

Sobreviveu 42 anos ao marido e filantropo Vasco Maria Eugénio de Almeida, mas nunca deixou de dar seguimento à sua obra. Amante de vela, viajada e culta, a mecenas Maria Teresa faria 100 anos.

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Contar a história de Maria Teresa é contar a história do marido e dos seus antepassados. Da família Eugénio de Almeida. Uma e outra são indissociáveis, não só por casamento, mas pela missão auto-imposta de continuar o legado do homem que morreu 42 anos antes de si. Mulher do mundo, culta e viajada, de uma vida familiar intensa apesar de não ter deixado descendência, Maria Teresa acompanhou Vasco Maria Eugénio de Almeida nos projetos de filantropia e, muito após a morte deste, prolongou o mecenato que herdou por amor. Esta quinta-feira, 16 de setembro, teria feito 100 anos.

Dividida entre o mar e a planície alentejana, fez a vida entre Lisboa — numa casa a lembrar um castelo escondido no centro da cidade — e Évora, num paço secular hoje aberto ao público, não deixou nunca de seguir a atualidade e de dar continuação ao trabalho do marido, cuja obra mais notável será a criação da fundação eborense que leva consigo o nome da família (FEA).

Infância: o mar, os livros e Ramalho Ortigão

Maria Teresa Burnay de Almeida Bello Eugénio de Almeida nasceu em 1921 na Casa de Massarelos, em Caxias. Do outro lado da rua estava o mar com o qual teve ligação até ao fim da vida: aos 75 anos ainda saltava do barco para mergulhar na água gelada. De facto, só encontrou devoção paralela no Alentejo, tendo em conta os horizontes que se podiam observar no mar e na planície. Na infância e juventude, nos meses de verão, a praia foi por diversas vezes extensão da casa onde cresceu, uma espécie de átrio onde o tempo podia ser despendido em leituras, em passeios à beira-mar ou na prática de desportos. A mulher que até bastante tarde foi sócia ativa do Ginásio Clube Português tinha gosto na corrida, no salto em comprimento, na natação e no lançamento do peso.

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Mas era na vela e na participação de regatas que concentrava grande parte da energia, um gosto, aliás, partilhado por outros membros da família: os primos Duarte Bello e Fernando Bello ganharam em 1948 a primeira medalha de Prata para Portugal nos Jogos Olímpicos de Londres em vela desportiva, Classe Swallow — ficaram a 14 segundos do ouro. A quinta de seis irmãos — dois rapazes e quatro raparigas — passou grande parte da infância na companhia dos primos (a casa estava frequentemente cheia), tanto que chegou a considerar-se maria-rapaz pela contínua presença masculina que a rodeava. A família alargada significava atividades em conjunto, o que a predispõe desde logo para uma vida social e ativa.

O pai, Manuel de Almeida Bello, foi engenheiro dos Caminhos de Ferro de Portugal e responsável pela eletrificação da linha Lisboa-Cascais; a mãe, Maria Isabel Ortigão Burnay, era neta de Ramalho Ortigão. Ser bisneta do escritor português era motivo de orgulho e assunto que fugia frequentemente boca fora em conversas com as relações mais próximas e com as visitas que recebia.

No escritório em Lisboa, recorda ao Observador Rui Carreteiro, arquivista e responsável pelo Arquivo e Biblioteca Eugénio de Almeida, uma das paredes estava forrada com imagens de Ramalho Ortigão e com retratos das figuras intelectuais do século XIX que ficariam conhecidas pelo grupo informal e “jantante”, segundo Eça de Queirós, “Vencidos da Vida”. O hábito da leitura foi, talvez por isso, incutido desde muito cedo e nunca mais a largou, bem como a busca incessante por se manter atualizada. “Ela leu a obra do bisavô, é evidente na bibliografia de Ramalho Ortigão que existe na biblioteca em Évora.”

A mecenas era grande adepta da vela e do mar

Autor desconhecido / Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

O casamento com o “homem do mundo” e o peso dos antepassados

O casamento com Vasco Maria Eugénio de Almeida, Conde de Vill’Alva, em 1948, marca de forma profunda a vida da mulher que viveu para contar 95 anos. “Não foi uma festa, foi uma cerimónia íntima, só com a família e os amigos mais próximos. Não foi uma coisa mundana, mas foi divertidíssimo”, recordaria Maria Teresa naquela que muito provavelmente foi a última entrevista que deu (em 2013 à revista “Portefólio” da FEA). Sobre o casamento diria que foi “o momento alto” da vida, ao salientar a “sorte notável” e a vida “extraordinária” em conjunto, também ela marcada por constantes viagens, incluindo destinos como África, continente onde uma das irmãs chegou a viver, ou a então União Soviética. Questionada sobre o que mais lhe deixava saudades, Maria Teresa responderia uma vez mais “o meu marido”. “Sem ele a vida não é vida. Hoje vivo de outra forma, muito protegida, mas não é a mesma coisa”.

"Éramos muito amigos e a amizade é essencial num casamento. Não tivemos filhos é certo, mas tivemos muitos amigos e familiares que nos encheram os dias."
Maria Teresa Teresa Eugénio de Almeida, em entrevista à revista Portefólio da FEA

Vasco Maria, como também era tratado, era considerado pela mulher “um homem fora de série” e de “grande sensibilidade”, com o rol de elogios a estender-se ao prólogo da primeira e única biografia que dele existe, “Vasco Vill’Alva – Uma presença no Alentejo”, criada a pedido da própria Maria Teresa para que a vida e obra do mecenas não caísse em esquecimento. E é por lá que o distingue como pessoa “de raras virtudes” e “exemplo de um verdadeiro cristão”. “O meu marido considerava-se um ‘fiel depositário’ dos bens com que foi contemplado em vida e, sempre que possível, colocava-os ao serviço da comunidade de acordo com determinados princípios e valores: os da humanidade e da solidariedade.”

Autor desconhecido / Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

O conde de Vill’Alva — título meramente indicativo após a extinção da monarquia — vinha de uma situação familiar bastante distinta da de Maria Teresa. O único irmão que teve faleceu cedo, pelo que foi “adotado” pelos parentes da mulher. “Casar comigo deu-lhe este rol de gente que animava os dias. Era uma vida que era mesmo vivida.”

Vasco Maria pertencia a uma das mais poderosas famílias em Portugal em pleno século XIX, sendo ele descendente de José Maria Eugénio de Almeida (1811-1872), cuja fortuna, transposta para os valores atuais, seria a “terceira maior em Portugal”, garante Rui Carreteiro, que cita o biógrafo José Miguel Sardica. O empresário chegou a ser proprietário do Casal do Monte Almeida que abrangia o que hoje é a zona do Parque Eduardo VII e as avenidas contíguas compreendidas entre as ruas Marquês de Fronteira e Marquês de Subserra, mas também de uma parte significativa do Parque Florestal de Monsanto, em Lisboa.

José Maria, que se matriculou em Direito na Universidade de Coimbra onde aí privou com o pai do escritor Eça de Queirós, acumulou uma vasta fortuna em vida. Além de ter casado com uma senhora cujo pai era abastado, de nome José Joaquim Teixeira — e que viu nele qualidades de gestor —, tinha dinheiro de família (era proveniente da burguesia). Segundo Rui Carreteiro, José Maria investiu na indústria do tabaco na sequência do casamento com Maria das Dores Silva e Teixeira. A entrada na concessão do monopólio foi a “alavanca para os restantes negócios”, incluindo investimentos na indústria, participações financeiras em Portugal e no estrangeiro, e ainda a aquisição de imóveis e de terras, sobretudo no Alentejo (mas também no Algarve, em Lisboa e no Ribatejo, por exemplo).

Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

Descendo na árvore genealógica é possível perceber que Vasco Maria nasceu fora do casamento do neto do fundador da larga fortuna, também ele de nome José Maria Eugénio de Almeida, primeiro conde de Vill’Alva (1873-1937), que não teve filhos com a esposa Alice Irene de Sousa Araújo. “Por alguma razão, entre pai, madrasta e filho a relação foi distante e fria”, constata Carreteiro. Vasco Maria foi até bastante tarde proibido de usar o apelido que haveria depois de imortalizar com a conhecida fundação em Évora — e, curiosamente, um conjunto de circunstâncias faria dele, aos 27 anos, o principal herdeiro da fortuna Eugénio de Almeida.

Na vida dele teve importância acrescida a avó paterna, Maria do Patrocínio Barros Lima, que lhe transmitiu afetos, mas também a história e os valores da família — no testamento frisa o desejo de que o neto se case para que o nome Eugénio de Almeida não se extinga na linha do tempo. É certo que o irmão de Vasco morreu cedo, também ele vindo da mesma relação extraconjugal, e que o casamento com Maria Teresa não deixou descendência, no entanto, a fundação criada em 1963 ficaria encarregada de perpetuar o legado familiar, além de promover o desenvolvimento cultural, educativo, social e espiritual da região de Évora.

Árvore genealógica da família Eugénio de Almeida

Versão adaptada da genealogia da família Eugénio de Almeida, integrada na 2.ª edição da obra «José Maria Eugénio de Almeida: negócios, política e sociedade», da autoria do Professor José Miguel Sardica

Mosteiro, fundação e até um hospital. O ADN da filantropia

A maior aventura da filantropa foi ter casado com o marido, como diria em entrevista em 2013, acompanhá-lo nas causas em que acreditava e andar de um lado para o outro. O marido “aventureiro”, o “homem do mundo”, não passava sem a sua opinião. E se, de facto, Vasco Maria destacou-se em vida pela obra mecenática e filantrópica desenvolvida entre Lisboa e Évora, onde se encontrava grande parte do património fundiário da família, o que dizer de Maria Teresa que o acompanhou nos desígnios da arte e da solidariedade? As décadas seguintes ao casamento atestam precisamente esse percurso enquanto o marido arregaça as mangas e dedica-se à intervenção cultural e educacional em Évora.

O nascimento da Fundação Eugénio de Almeida, em 1963, instituição portuguesa de direito privado e utilidade pública sediada em Évora, resulta indiscutivelmente da obra de maior projeção de Vasco Maria, mas não a única. Rui Carreteiro — o arquivista que trabalhou junto de Maria Teresa durante 13 anos — assinala a criação do Instituto Superior Económico e Social de Évora (ISESE), que ocupou o antigo Palácio da Inquisição e sinalizou o regresso do ensino superior à cidade depois de a universidade ser extinta no século XVIII na sequência da expulsão dos jesuítas (o objetivo era formar quadros técnicos superiores em Sociologia, Economia e Gestão de Empresas, isto em 1964). “Ele achava que a família tinha uma dívida para com a população de Évora”, comenta. A atividade do instituto privado terminou no período pós-25 de Abril, embora a abertura de portas tenha servido de “impulso” para a Universidade de Évora.

© Cartuxa/Reprodução

Num período marcado pela ditadura, o mecenas repartiu ainda a Herdade do Álamo da Horta em 150 courelas — 235 hectares foram distribuídos pelos trabalhadores assalariados da sua Casa Agrícola que, pela primeira vez, puderam cultivar a própria terra, um gesto com implicações na economia familiar dos locais. Mas também a recuperação do Convento da Cartuxa figura na lista de obras e projetos a assinalar — o Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli foi construído no século XVI para acolher os monges cartuxos, no entanto, em 1834 estes foram expulsos e o edifício tornou-se pertença do Estado, sendo aproveitado enquanto escola de agricultura (e a igreja a servir de celeiro).

Tudo mudou quando em 1871 a família Eugénio de Almeida comprou o mosteiro, cabendo a Vasco Maria restaurá-lo e devolvê-lo à Ordem de São Bruno (foram sete os fundadores em 1587 e sete os restauradores em 1960). Para a sua recuperação, Vasco Maria e a mulher visitaram vários mosteiros da mesma ordem, incluindo a casa-mãe em França, a Grande Chartreuse, onde ficam dois dias solitários e em silêncio, apenas a escutar o som da água corrente de uma montanha — de acordo com a biografia de Vasco Vill’Alva, o mecenas trouxe para a Cartuxa de Évora o modelo da chave das celas, iguais em todas as Cartuxas.

Em 2019, os quatro monges cartuxos que viviam no mosteiro em Évora despediram-se da comunidade, rumo a Espanha, com o espaço religioso a ser ocupado por uma congregação feminina — no interregno entre a partida da Ordem da Cartuxa e a vinda das irmãs do Instituto das Servidoras do Senhor e da Virgem de Matará, o mosteiro está aberto a visitas.

Anda em meados da década de 50, milhares de pessoas sairam às ruas de Évora — à época o Diário de Notícias dava conta de 20 mil participantes, enquanto o Diário Ilustrado disse que chegavam aos 40 mil — num gesto de agradecimento a Vasco Maria a propósito do Hospital do Patrocínio. Através de uma doação significativa, no valor de 5 mil contos, o filantropo procurou impulsionar a construção de um hospital vocacionado para as doenças do foro oncológico cujo nome era uma homenagem à avó paterna. O projeto só ficaria concluído no início do milénio (hoje faz parte do Hospital do Espírito Santo de Évora), mas isso não impediu que quatro décadas antes um mar de gente enchesse as ruas da cidade, mais precisamente a 12 de maio de 1957. As primeiras notícias à época sobre o gesto não identificavam Vasco Maria, mas logo o Notícias d’Évora escreveria: “Acobertado pelo pseudónimo de ‘Um Eborense’, sabemos esconder-se uma das mais destacadas personalidades filantrópicas”.

No dia 12 de maio de 1957, milhares de pessoas encheram as ruas de Évora em sinal de agradecimento a Vasco Maria Eugénio de Almeida

Autor desconhecido / Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

Depois de adoecer no final de 1974, Vasco Maria morreu no ano seguinte, num período conturbado da história portuguesa. No início da década de 1980, lembra Carreteiro, tornou-se possível reaver as propriedades então perdidas no rescaldo da revolução de abril, o que determinou um novo período na vida da fundação, que pôde voltar a retomar a atividade produtiva (incluindo os vinhos) e o cumprimento da missão. “Maria Teresa nunca saiu do país nesse período conturbado, acompanhou sempre o destino dos bens que foram deixados pelo marido sem deixar de ter esta ligação profunda a Évora.”

Maria Teresa foi sombra e ombro do marido em todas as decisões tomadas. João Silveira, seu testamenteiro, de 83 anos mas a largos passos dos 84, recorda o contributo daquela que diz ser uma “pessoa inteligente, determinada e com um coração fantástico”. “No meu entender, acho que se não fosse ela o motor talvez a FEA não tivesse ido para a frente. Ela motivou o marido a avançar com a FEA. Ela gostava de fazer o bem.” João Silveira diz ter sido “muito amigo do marido” e conviveu muito com o casal. “Acompanhei a morte do marido, a situação da ocupação das terras. Fui sempre próximo, dávamo-nos muito bem. Fomos fundadores do Instituto de Cultura Vasco Vill’Alva.” Criada em 1995, e entretanto extinta, a entidade promoveu a publicação de várias obras, cria a Coleção de Carruagens (que ainda hoje existe) e contribui para a conservação do arquivo da família Eugénio de Almeida.

"Não foi uma filantropia avulsa, houve antes doações muito importantes que marcaram Évora e o Alentejo."
José Maria Sousa Rego, familiar de Maria Teresa Eugénio de Almeida

Num testemunho idêntico, o familiar José Maria Sousa Rego recorda como Maria Teresa sobreviveu 42 anos ao marido e como se “empenhou na continuação dessa obra”. “Não foi uma filantropia avulsa, houve antes doações muito importantes que marcaram Évora e o Alentejo.”

Após a morte do marido tornou-se administradora da fundação, a qual coube recuperar, salienta o familiar. “A sustentabilidade da fundação estava em causa. Maria Teresa libertou o usufruto das propriedades em Évora para a fundação poder exercer a sua atividade. Como administradora debateu-se pela recuperação das propriedades agrícolas”, diz. Maria Teresa foi membro do Conselho de Administração da FEA até ao ano de 1999.

José Maria Sousa Rego destaca ainda os “cargos de responsabilidade” na Fundação do Patrocínio (que determina o arranque do hospital), na Cruz Vermelha Portuguesa e na Associação D. Pedro V. Pessoa discreta e sem gosto pela ostentação, Maria Teresa “debateu-se para perpetuar o legado do marido”, ao invés de se acomodar aos “bens suficientes” capazes de lhe proporcionarem uma vida boa e tranquila. “Ela foi a continuidade da obra dele.”

Em testamento, a mulher que em vida recebeu várias distinções e condecorações deixou ainda grande parte dos bens financeiros a instituições de Évora ligadas à assistência e solidariedade social.

O “castelo” escondido no meio de Lisboa

A viúva enérgica física e mentalmente viveu entre Lisboa e Évora em duas casas com um legado histórico difícil de igualar. Na capital, passava os dias na Casa de Santa Gertrudes, edificação a lembrar um castelo plantado no centro da cidade e paredes-meias com a Fundação Calouste Gulbenkian. Mais do que antigas cavalariças reformuladas a mando de Vasco Maria para daí fazer a residência do casal, em 1958, a estrutura terá sido a resposta a uma afronta feita, certo dia e há muitos anos, por um escocês. Esta é, pelo menos, a história que passou de geração em geração.

Quando o bisavô de Vasco Maria estava a orientar a reedificação do Palácio de São Sebastião da Pedreira, adquirido no final dos anos 50 do século XIX, que foi a residência oficial em Lisboa, viajou para se inspirar do ponto de vista arquitetónico. Uma dessas viagens levou-o à Escócia onde ficou alojado no castelo de um aristocrata. Conta Rui Carreteiro, que José Maria Eugénio de Almeida terá tentado comprar uma parelha de cavalos ao amigo escocês que, em resposta, foi pouco cortês e indicou que os portugueses não sabiam tratar de tais animais — assim reza a história.

As cavalariças — edificadas do outro lado da rua do palácio — teriam sido, então, construídas à imagem e semelhança desse castelo. “Concluídas as obras, terá mandado um postal ao amigo a convidá-lo para conhecer o palácio.” O encantamento do aristocrata pelo edifício de estilo neoclássico francês terá esmorecido, porém, assim que conheceu as cavalariças e encontrou nelas uma réplica da fachada do castelo que havia deixado na Escócia. “A box principal seria réplica do quarto principal na Escócia. Eugénio de Almeida terá dito algo como, ‘Onde vocês dormem, nós deitamos os cavalos’.” 

Em 1947, o palácio foi convertido no Quartel General do Governo Militar da Região de Lisboa e o vasto jardim que o acompanhava acolhe hoje as instalações da Fundação Calouste Gulbenkian. Já as cavalariças seriam posteriormente transformadas, a mando do marido de Maria Teresa, naquela foi que a residência do casal em vida, pelo menos na capital. As características mais vistosas e marcantes são indiscutivelmente os dois pisos e o aspeto fortificado concedido pelos torreões que a rodeiam e o “remate acastelado da construção, sugerindo o reticulado de muralhas”, tal como se lê no site da FEA.

Tanto Maria Teresa como o marido morreram na Casa de Santa Gertrudes, em Lisboa

Autor desconhecido / Fundação Eugénio de Almeida, ABEA

Dessa mansão, que outrora fez o papel de cavalariças, Maria Alice Lopes recorda os grandes salões e a grande escadaria em caracol da Torre do Relógio, com mais de 100 degraus que a mecenas subiu várias vezes até ao topo já na terceira idade, mas também os quartos de vestir de verão e de inverno da senhora.

Também o Paço de São Miguel, onde Maria Teresa viveu em Évora, tem que se lhe diga. Foi adquirido por Vasco Maria Eugénio de Almeida em 1957, com o objetivo de aí fixar residência durante as estadias na cidade alentejana, instalar o arquivo e biblioteca da família e fazer sede da FEA, que viria a criar em 1963 — a aquisição está também associada à venda ao Estado, anos antes, do Palácio de São Sebastião da Pedreira e à necessidade de realojar bens móveis da família.

À data da compra, a intervenção feita no secular Paço de São Miguel, hoje casa-museu, durou 15 anos. Maria Alice Lopes ainda se recorda do orgulho de Maria Teresa em mostrar a “casa linda”. “Ela fazia de propósito, deixava a porta aberta e metia-se a apanhar sol no pátio. Quando via um turista a querer entrar, fazia visitas guiadas à própria casa”, conta. E quando os turistas não entravam, era ela quem os chamava. Anos depois, a estrutura voltou a sofrer uma intervenção (entre 2011 e 2013, sensivelmente, no âmbito do projeto Acrópole XXI) para ficar com a aparência tal qual a conhecemos hoje.

Tardes a ler jornais e o copo de vinho aquecido: os últimos dias

À medida que foi perdendo mobilidade, a capital tornou-se cada vez mais ponto de referência para Maria Teresa que sempre encontrou repouso na Casa de Santa Gertrudes, no Largo de S. Sebastião da Pedreira. Foi precisamente aí que morreu, a 14 de julho de 2017, no mesmo local onde 42 anos antes morrera o marido, a 11 de agosto, a poucos dias de completar 62 anos.

A Maria Alice Lopes, secretária pessoal desde 2010, coube dar-lhe o último pequeno-almoço, o último banho e a última chávena de chá: a mecenas morreu-lhe nos braços aos 95 anos. “Faleceu mesmo à minha mão, estava a dar-lhe o chá. Nesse dia era para ter vindo para Évora”, comenta ao Observador. “Ainda bem que fiquei. O meu medo era que acontecesse quando eu não lá estivesse.” A mecenas morreu a uma sexta-feira e Maria Alice ainda se recorda como, dois dias antes, estranhou as dificuldades acrescidas desta em subir as escadas lá de casa, ela que era especialmente ativa e orgulhava-se dessa capacidade. “Só a costumávamos agarrar por uma mão. Da última vez fraquejou e começou a sentir falta de ar”, diz, referindo-se ao verão quente de 2017, o mesmo que viu o país mergulhado em incêndios devastadores.

"Faleceu mesmo à minha mão, estava a dar-lhe o chá. Nesse dia era para ter vindo para Évora", comenta ao Observador. "Ainda bem que fiquei. O meu medo era que acontecesse quando eu não lá estivesse."
Maria Alice Lopes, antiga secretária pessoal da mecenas

Até maio de 2013, quando uma infeção respiratória a obrigou a um internamento temporário, Maria Teresa era muito ativa. Gostava particularmente de andar de carro com motorista ao volante e música ligada (Frank Sinatra e Ella Fitzgerald faziam parte das preferências). A secretária pessoal, que trabalhou primeiro com a filantropa no Instituto de Cultura Vasco Vill’Alva ainda na década de 90, ficou com um gramofone antigo, ainda a funcionar, e com uma coleção de discos de vinil. “De vez em quando ponho-me a ouvir e a matar saudades. No final éramos uma mãe e uma filha”, comenta.

Maria Teresa Eugénio de Almeida fotografada por Rui Carreteiro

© Rui Carreteiro / Fundação Eugénio de Almeida

Passear entre Lisboa e Évora, almoçar nas Furnas do Guincho ou lanchar no Muchaxo bar, também junto ao mar, era teima recorrente. “Tinha amigas em Évora e em Lisboa e marcava chás e almoços semanalmente”, conta Maria Alice. Ainda antes de 2013, as idas ao Ginásio Clube Português eram frequentes, às segundas, quartas e sextas lá ia Maria Teresa fazer ginástica de manutenção. Mas também praticava ioga. “Ela tinha uma forma extraordinária. Gozava connosco porque não conseguíamos esticar os braços como ela”, diz, aludindo a uma contorção nem sempre fácil, que implica unir os braços atrás das costas e levá-los à volta da cabeça. A isso acresciam ainda os passeios no jardim à porta de casa (hoje pertença da fundação vizinha). “O jardim da Gulbenkian é grande, mas o da senhora também era. Dávamos muitas voltas. Chegávamos ao ponto de, quando chovia, dar voltas dentro do carro.”

Lia imenso, quer livros, quer jornais. O hábito da leitura ficou até ao fim e “deu-lhe cabo da vista”. Todos os dias a secretária e a equipa compravam jornais — Público, Diário de Notícias, Independente ou Diário do Sul. “Ela passava as tardes à volta daquilo.” Mas não só lia como recortava o que lhe interessava. Às vezes guardava páginas inteiras. Era metódica nos apontamentos e fazia por acompanhar notícias sobre os temas que lhe eram mais próximos, sobre as pessoas também, como Miguel Sousa Tavares (era prima afastada de Sophia de Mello Breyner Andresen, garante a antiga secretária) ou Paulo e Miguel Portas. Adorava ouvir as opiniões de Marcelo Rebelo de Sousa, ainda antes deste ser Presidente. Sobre o gosto da atualidade, a própria Maria Teresa diria na entrevista de 2013: “Tento saber o que se passa na atualidade. Não estou fora do mundo, nem quero. Compro o jornal todos os dias. Gosto de estar up to date“. Porque estar a par das coisas era “fundamental”.

"Faleceu mesmo à minha mão, estava a dar-lhe o chá. Nesse dia era para ter vindo para Évora", comenta ao Observador. "Ainda bem que fiquei. O meu medo era que acontecesse quando eu não lá estivesse."
Maria Alice Lopes, antiga secretária pessoal da mecenas

Na casa de Maria Alice, a secretária pessoal, estão imensas coisas do tempo da mecenas: entre as ofertas simbólicas a povoar a habitação há uma bengala de cortiça com o símbolo da família Eugénio de Almeida, com um recado para que o seu uso nunca seja necessário, e também uma garrafa de aguardente da Cartuxa. Sobre os vinhos produzidos sob esta chancela, a viúva era adepta e apenas bebia os rótulos da FEA, em particular o EA (entrada de gama) — aos almoços de inverno, no piso térreo da casa que era particularmente frio, a senhora colocava o copo de vinho em cima do aquecedor a gás. No verão a preferência era pelos brancos. E em altura de oferendas a amigos especiais, sacava a cartada do Pêra-Manca, um dos vinhos tranquilos mais caros do país.

Mesmo tendo sido viúva durante 42 anos, até ao fim da vida falou do marido com carinho. Afinal, teve “uma vida notável”. “A nossa vida foi extraordinária. Se eu não existisse parecia que lhe faltava tudo. E isso agradava-me imenso.”

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