Entre os escassos méritos das Cruzadas esteve o de colocar os rústicos europeus em contacto com a requintada civilização islâmica, que se encontrava então mais avançada, não só no domínio das ciências e das letras, como no dos confortos e prazeres da vida quotidiana – a nível das classes altas, entenda-se, pois para as massas as privações, a ignorância e a falta de horizontes eram similares sob o deus da Bíblia ou do Corão. Entre os deleites que, nesse período, os europeus importaram do Próximo Oriente estiveram os refrescos à base de frutos, adoçados com mel, açúcar de cana ou xarope (não por acaso, “açúcar” e “xarope” são palavras de origem árabe) e, por vezes, temperados com especiarias (como a canela).

Em 1676, surgiu a primeira empresa de refrescos de que há registo, a Compagnie des Limonadiers, que detinha o monopólio da venda de limonada em Paris. Os refrescos de limão foram dominantes durante tanto tempo que nalgumas regiões das Ilhas Britânicas, “lemonade” ainda é usado como sinónimo de refresco, seja qual for o fruto (ou simulacro químico de fruto) que lhe confere aroma e sabor.

Um rapaz oferece um copo de limonada a uma rapariga, sob o olhar vigilante de uma mulher mais velha. Quadro por Gerard ter Borch, c.1666-68

Em 1767, o químico britânico Joseph Priestley descobriu a forma de adicionar dióxido de carbono à água, conferindo a esta o sabor e o efeito refrescante (descreve a água carbonatada causaram-lhe uma tão “peculiar satisfação” que em 1772 publicou um artigo, Impregnating water with fixed air, onde descreve o procedimento). Os rápidos progressos realizados no domínio da carbonatação da água permitiram que na década seguinte, Thomas Henry, um boticário de Manchester, se tornasse no primeiro a comercializar água gaseificada, seguido de perto por Johann Jacob Schweppe, em Genebra.

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Nos primeiros tempos, a água gaseificada era vendida sobretudo como produto medicinal e o mesmo aconteceu com os primeiros refrigerantes gaseificados, que surgiram no final do século XIX, nos EUA. Estes últimos são também designados, informalmente, como “gasosas” e no mundo anglófono são conhecidos, consoante os países e regiões, como “soft drinks” (por oposição às bebidas “hard”, i.e., alcoólicas), “carbonated drinks”, “fizzy drinks”, “soda pops” ou simplesmente “sodas”. A progressiva sujeição da actividade publicitária ao cumprimento de critérios de rigor, a partir do início do século XX, forçou os “marqueteiros” a reorientar o seu discurso: uma vez que as alegações de benefícios para a saúde eram impossíveis de provar, consumir refrigerantes gaseificados passou a ser uma “proclamação” de estilo de vida e afirmação pessoal, sendo as bebidas associadas a abstrações como felicidade, descontração, juventude, confraternização (o que pressupõe pertença a um grupo) e irreverência (o que pressupõe, paradoxalmente, independência em relação a “rebanhos”).

Esta estratégia foi coroada de sucesso e continua hoje a ser seguida por quase todos os fabricantes de refrigerantes gaseificados: graças a ela, as vendas destes produtos à escala global atingiram em 2020 os 994.000 milhões de dólares – sendo os EUA o maior consumidor, com uma quota de 27%. As continuadas advertências dos especialistas em saúde e nutrição para os efeitos nefastos do consumo sistemático e maciço deste tipo de refrigerantes não têm perturbado o crescimento das suas vendas, quer nos países desenvolvidos quer nos países em desenvolvimento, que se estima que possam chegar aos 4 biliões de dólares em 2027.

O “Jogo da Garrafa” tem uma nova versão pós-Ronaldo. “Coca-Cola, Heineken, por favor contactem-me!”, pede Yarmolenko

Inesperadamente, a ameaça mais séria a este futuro radioso para os fabricantes de refrigerantes de cola veio, não de um nutricionista, mas de um jogador de futebol: na passada segunda-feira, numa conferência de imprensa antes do jogo Hungria-Portugal, Cristiano Ronaldo afastou para o lado duas garrafas de Coca-Cola que estavam colocadas à sua frente e agarrou numa garrafa de água e disse “água”.

O episódio durou alguns segundos mas bastou para que, pouco depois, quando a bolsa de Nova Iorque abriu, o valor global das ações da Coca-Cola desse um tombo (ainda que longe de ser apenas por causa dele). O patrocínio de eventos desportivos tem múltiplas vertentes e uma delas – a mais insidiosa – é o “product placement” (também usual em séries televisivas e telenovelas): o produto surge como “adereço” e integra-se sub-repticiamente na “narrativa”. Não é preciso que alguém exalte as suas virtudes, basta-lhe estar em cena para instilar nos espectadores a ideia de que o seu consumo, mesmo que não opere o milagre do converter um “futebolista de sofá” no melhor marcador de sempre em fases finais de Campeonatos Europeus de Futebol, o aproxima, de alguma forma, dos “deuses do estádio”. Estes “deuses” costumam ter chorudos contratos publicitários com as mais diversas marcas comerciais (de champôs a relógios, passando por cuecas), mas assiste-lhes o direito de recusar serem associados subliminarmente a um produto com o qual não se identificam ou que até reputam como nocivo. O risco de uma estratégia publicitária passiva, como o “product placement”, é que um protagonista com especial talento para o drible pode, através de um firme “product displacement”, desdourar uma imagem comercial longamente construída.

Este é o 1.º de uma série de seis artigos sobre marcas de bebidas não-alcoólicas.

Coca-Cola

No final do século XIX, as fronteiras entre medicina e charlatanismo eram ainda vagas e alguns estupefacientes cujo comércio e consumo são hoje legalmente interditos eram encarados com permissividade e bonomia. Assim, a cocaína era usada na preparação de bebidas alcoólicas com alegadas propriedades medicinais e fortificantes, que eram vendidas sem qualquer entrave legal e que gozavam de grande popularidade. O mais famoso destes “vinhos de coca” era o Vinho Tónico Mariani (com Coca do Peru), criado em 1863 pelo farmacêutico corso Angelo Mariani.

No período que antecedeu a I Guerra Mundial vendiam-se anualmente 10 milhões de garrafas de Vin Mariani, um sucesso propulsionado pelo apurado sentido de marketing de Angelo Mariani, que fez publicar regularmente o Album Mariani: Figures Contemporaines, uma recolha de biografias de personalidades célebres que era acompanhada por um retrato e uma mensagem do biografado, elogiando as qualidades da beberagem, e por um longo arrazoado sobre os benefícios desta para a saúde. O álbum teve 14 edições entre 1894 e 1925 e acolheu elogios ao “vinho de coca” vindos de homens de Estado, magistrados, generais, almirantes, senadores, aristocratas, anarquistas, políticos, médicos, atrizes, arqueólogos e cantores líricos. Entre os consumidores do Vin Mariani que acederam figurar no álbum estavam a atriz Sarah Bernhardt, a soprano Rose Delaunay e até figuras tão insuspeitas quanto o Grande Rabino de França e o papa Leão XIII, que fez a sua aparição da edição de 1899 e terá até outorgado uma condecoração do Vaticano a Mariani, ou pelo menos era o que o marketing da casa propagandeava (nota: presume-se que a célebre Vivenda Mariani, situada em Montechoro e pertencente a um destacada figura política portuguesa – e depois trocada por outra vivenda na Praia da Coelha – não terá relação com o dito “tónico”).

O papa Leão XIII num anúncio ao Vinho Mariani para o mercado britânico

O sucesso do Vinho Mariani inspirou John Pemberton (1831-1888), que lutara na Guerra Civil Americano como coronel do Exército Confederado e geria um drugstore em Columbus, no estado da Georgia, a desenvolver um “tónico para os nervos” cuja patente registou em 1886 e a que deu o nome de Pemberton French Wine Coca – em relação ao Vinho Mariani, este “tónico” tinha a novidade da adição de um extrato de noz-de-cola.

Quis o acaso que, nesse mesmo ano, por pressão dos movimentos pela “temperança”, fosse interditada a venda de bebidas alcoólicas em parte da Georgia, mas Pemberton não desarmou: apresentou uma versão não-alcoólica da sua mistela, publicitou-a como “a bebida da temperança” e reivindicou para ela a cura de maleitas tão variadas quanto a histeria, a melancolia e a impotência à dependência da morfina (problema que afligia o próprio Pemberton, em resultado de ferimentos sofridos na guerra). A bebida foi batizada como “Coca-Cola”, numa alusão aos seus ingredientes mais importantes, cocaína e noz-de-cola, provindo a ideia do nome bem como o inconfundível logótipo (ainda hoje em uso) de Frank Robinson, o guarda-livros de Pemberton.

A Coca-Cola começou a ser vendida na farmácia Jacobs em Atlanta, Georgia, em 1886, mas Pemberton não assistiria ao seu sucesso: doente e enredado em dívidas (parte delas decorrentes do seu vício na morfina) vendeu a sua parte no negócio e a fórmula da Coca-Cola a Asa Griggs Candler, um farmacêutico de Atlanta. Porém, Charles, o filho de John Pemberton, ficara com os direitos do nome “Coca-Cola”, que usava para comercializar uma variante (bera) da fórmula do pai, o que forçou Candler a vender o seu preparado sob as designações “Yum Yum” e “Koke”, que mostraram ter escasso apelo comercial. Assim que soube da morte de John Pemberton, em 1888, Candler comprou as participações dos outros sócios e persuadiu Charles Pemberton – aproveitando-se de este ser alcoólico e viciado em ópio – a vender-lhe os direitos do nome “Coca-Cola”, ficando assim com o controlo absoluto da marca.

Candler continuou, pelo menos nos primeiros anos, a vender a Coca-Cola não como um simples refrigerante, mas como “um maravilhoso tónico cerebral e nervoso e notável agente terapêutico” (conforma reza um anúncio de 1890), decorrendo estes efeitos das “propriedades estimulantes da planta da coca e da noz-de-cola” (como proclama explicitamente um anúncio de c.1886-88).

Em 1906, o Departamento de Agricultura dos EUA decidiu, através do Pure Food and Drug Act, meter na ordem as empresas que faziam alegações não-comprovadas sobre os efeitos benéficos de produtos alimentares e banir produtos contendo substâncias consideradas nocivas – entre as quais estava a cafeína.

A noz-de-cola, que é o fruto de árvores do género Cola, em particular a C. acuminata e a C. nitida, era uma componente essencial do sabor da Coca-Cola e continha um elevado teor de cafeína. Os povos das zonas de África Ocidental onde a noz ocorre naturalmente há muito que a mascavam pelos seus efeitos excitantes e revigorantes, tal como os índios do altiplano andino faziam com as folhas de coca (Erytroxylum coca) – a designação “coca” provém da palavra da língua Aymara (do Peru e Bolívia) para “arbusto” ou “árvore”

A Coca-Cola estava bem consciente de que boa parte do sucesso do “maravilhoso tónico cerebral e nervoso” estava no elevado teor de cafeína, pelo que ofereceu resistência à directiva do Departamento de Agricultura, mas, em 1909, o diretor desta entidade invocou o Pure Food and Drug Act e ordenou a apreensão de 40 barris de Coca-Cola, dando origem a um retorcido imbróglio judicial que só terminou em 1916 (ano em que Candler, após ter sido eleito mayor de Atlanta, deixou a gestão da empresa). Apesar de a decisão judicial ter sido inconclusiva, a Coca-Cola acabou por aceitar diminuir voluntariamente o teor de cafeína para um valor que se manteria até aos nossos dias, em que uma lata de Coca-Cola “clássica” contém hoje 46 mg, o que representa 1/3 do teor de cafeína presente no café.

Entretanto, o outro agente estimulante presente na formulação inicial – a cocaína – também fora progressivamente eliminado: o seu teor, que inicialmente era bastante elevado, foi reduzido por um fator 10 quando Candler tomou conta do negócio, e sofreu novo corte em 1904, quando as folhas de coca frescas foram substituídas por folhas resultantes da extração da cocaína, em que a presença desta era residual. Posteriormente, estas folhas “usadas” foram substituídas por um extrato de folha de coca isento de cocaína e hoje a Coca-Cola Company afirma perentoriamente que a bebida “não contém cocaína ou qualquer outra substância nociva e a cocaína nunca foi um ingrediente adicionado à Coca-Cola”.

Finalmente, em 1983, a Coca-Cola lançou uma versão descafeinada da Coca-Cola, como reação à apresentação pela Pepsi de um produto similar mo ano anterior, a Pepsi Free. Nem uma nem outra lograram cativar os consumidores e, embora continuem a ser produzidas, as suas vendas são residuais. Fossem ainda vivos os apreciadores do produto original, a Pemberton French Wine Coca, a Caffeine-Free Coca-Cola teria parecido o abastardamento final do “maravilhoso tónico”: “primeiro tiraram o álcool, depois a cocaína e agora a cafeína – que motivo sobra para engolir esta beberagem”?

Para todos, em qualquer altura do dia ou situação, é sempre ocasião para a “pura e salutar” Coca-Cola. Anúncio de 1954

Hoje a Coca-Cola pode ser encontrada em todos os países do mundo exceto Coreia do Norte e Cuba (que, por ironia, foi o primeiro país, depois dos EUA, em que foi comercializada, em 1899) e a Coca-Cola Company tem receitas anuais de cerca de 40.000 milhões de dólares e afirma vender diariamente 1900 milhões de doses da bebida – porém, não é fácil apurar que parte deste volume corresponde a Coca-Cola, já que a Coca-Cola Company comercializa atualmente 3500 produtos diferentes, que se desdobram pelas categorias de refrigerantes, águas minerais, aperitivos, bebidas energéticas e chás e cafés engarrafados/enlatados e incluem marcas de renome, como Fanta e Sprite.

No centro deste império está a “fórmula da Coca-Cola”, que John Pemberton apenas terá partilhado com quatro pessoas e que, de acordo com a empresa, será apenas conhecida de dois funcionários, cuja identidade é desconhecida, que nunca podem viajar juntos (não vá o diabo – ou a Pepsi – tecê-las) e que, na devida altura, transmitem o seu segredo a um sucessor. A casa-mãe produz um xarope concentrado, de acordo com a “fórmula secreta”, que envia para as sucursais em todo o mundo, que lhe juntam água e adoçantes.

Como acontece com a esmagadora maioria das “fórmulas secretas” comerciais, a aura mítica criada em torno da “fórmula da Coca-Cola” talvez não passe de uma manobra publicitária posta em prática mal Asa Candler tomou conta da empresa. Não só a formulação do “tónico” inventado por John Pemberton em 1886 pouco terá a ver com o refrigerante hoje comercializado sob esse nome (caso contrário as autoridades de saúde ordenariam de imediato a sua retirada do mercado), como é legítimo questionar qual é a identidade de uma bebida que já passou por tantas mutações e hoje se desdobra em centenas de variedades, combinando diferentes teores em calorias e cafeína, sabores que incluem baunilha, lima, limão, laranja, gengibre, canela ou café (mas não “alho” nem “bacon”, como sugerem alguns hoaxes maliciosos), variações regionais e nacionais ajustadas aos palatos e hábitos alimentares de cada povo e uma profusão de “edições limitadas” que servem para que a Coca-Cola seja notícia e para testar a reação dos consumidores. Em todo este processo de mutação e diversificação, um dos elementos que se manteve pouco alterado foi a icónica garrafa desenhada em 1916 por Earl R. Dean, embora coexista hoje com vasilhame das mais diversas formas, capacidades e natureza.

É possível que a “fórmula da Coca-Cola” ciosamente guardada no cofre-forte da sede da companhia, em Atlanta se resuma a “água, cafeína, ácido fosfórico, um corante sintético (E150d), doses generosas de açúcar, doses mínimas de extractos vegetais e doses cavalares de marketing”. É quanto basta para que a Coca-Cola seja a 5.ª marca mais valiosa do mundo (66 mil milhões de euros, dados de 2018), atrás da Apple, Google, Amazon e Microsoft e à frente da Samsung e Toyota.

Pepsi-Cola

É impossível falar da Coca-Cola sem mencionar a sua rival, criada em 1893 por Caleb Bradham (1867-1934), um farmacêutico estabelecido em New Bern, Carolina do Norte. A bebida, que começou por denominar-se “Brad’s Drink” foi rebaptizada em 1898 como Pepsi-Cola, tirando partido da voga pelas “bebidas de cola” com alegados poderes medicinais e poderes “revigorantes”. Um dos efeitos reivindicado pelo tónico comercializado por Bradham era o de combater a dispepsia (indigestão), daí o nome (do grego “pépsis”, digestão).

Tal como a Coca-Cola Company, também a PepsiCo é um colosso (45.ª no ranking das 500 maiores empresas americanas elaborado pela Forbes em 2018) que engloba várias marcas conhecidas e com difusão planetária, como Tropicana (sumos de frutas), Gatorade (bebidas energéticas), Mountain Dew (refrigerantes), Mirinda (refrigerantes), Lipton (chás, em parceria com a Unilever), Aquafina (águas), Cheetos, Doritos, Fritos, Lay’s, Ruffles e Tostitos (snacks), Quaker Oats (cereais de pequeno almoço, snacks, etc.). Como a PepsiCo abrange mais áreas de negócio do que a Coca-Cola Company, as suas receitas são também mais volumosas (67.000 milhões de dólares em 2020), com a componente Pepsi-Cola e suas variantes a representar, por larga margem, o maior peso. Ainda assim, a fatia de mercado dos refrigerantes pertencente à Coca-Cola (17.8%) está bem acima da Pepsi (8.3%, com tendência de queda nos últimos anos).

O top 10 dos refrigerantes mais vendidos no mundo é dominado por produtos das duas companhias rivais: 1.º Coca-Cola Classic (Coca-Cola Company), 2.º Diet Coke (Coca-Cola Company), 3.º Pepsi, 4.º Mountain Dew (PepsiCo), 5.º Dr. Pepper (grupo Keurig Dr. Pepper), 6.º Sprite (Coca-Cola Company), 7.º Diet Pepsi (PepsiCo), 8.º Diet Mountain Dew (PepsiCo), 9.º Fanta (Coca-Cola Company), 10.º Diet Dr. Pepper (grupo Keurig Dr. Pepper).

Anúncio à Pepsi-Cola na revista Life, 1951

A rivalidade entre Coca-Cola e Pepsi-Cola não é meramente empresarial: cada uma das marcas arregimenta legiões de fanáticos que juram pela superioridade de uma delas, embora seja provável que os ingredientes da Pepsi pouco difiram dos que acima se listaram para a Coca-Cola (nos primórdios, a Pepsi-Cola incluía como ingrediente a baunilha, mas esta foi descartada). É um espantoso e assustador testemunho do poder da publicidade para subjugar as massas ignaras e incutir-lhes crenças absurdas e levá-las a adorar ídolos ocos, que haja quem esteja disposto a envolver-se em polémicos sobre as “virtudes” comparadas de beberagens com o aspeto e o sabor de águas residuais da indústria de tinturaria a que foi adicionada uma generosa quantidade de açúcar – uma descrição que é extensível a boa parte da vasta oferta da indústria de refrigerantes. Em tempos, houve quem resistisse à “água suja do capitalismo”, mas há muito que as objeções ideológicas foram dissolvidas pela acidez das colas…

O que é mais irónico no duelo sem quartel entre Coca-Cola e Pepsi é que a segunda passou por sérias dificuldades financeiras nas primeiras décadas do século XX (chegando mesmo a declarar insolvência) e por três vezes os seus proprietários propuseram a venda da empresa à Coca-Cola, que, julgando a sua supremacia inabalável, sempre recusou.

Uma nota final para o refrigerante de laranja Mirinda, criado em Espanha em 1959 e comprado pela Pepsico em 1970. Nunca foi comercializado em Portugal, desapareceu do seu país de origem em 1992, quando, após a aquisição da marca espanhola Kas, a PepsiCo preferiu apostar nesta última, e tem hoje o seu principal mercado no Próximo Oriente. A menção a Mirinda justifica-se pela peculiaridade de ser a única bebida produzida em massa que tem um nome que provém do esperanto: “mirinda” significa “admirável”.

Royal Crown Cola

A Royal Crown Cola não só é um dos três refrigerantes de cola surgidos na viragem dos séculos XIX/XX que se manteve em produção ininterrupta até aos nossos dias, como durante anos fez frente à Coca-Cola e à Pepsi, chegando a deter, no final da década de 1960, 10% do mercado dos EUA. Na verdade, a Royal Crown Cola (também conhecida como RC Cola) nasceu como resposta a alguma soberba da Coca-Cola, que estava empolgada com o sucesso do seu refrigerante.

Na mesma Columbus, na Georgia, em que Pemberton inventara a Pemberton French Wine Coca, Claud Hatcher (1876-1931), que se diplomara como farmacêutico, geria, com o pai, Lucius, uma empresa grossista de produtos de mercearia que escoava um considerável volume de Coca-Cola, pelo que Hatcher tentou obter do representante local da marca um desconto nas aquisições; ao receber uma negativa inflexível, Hatcher decidiu nunca mais comprar Coca-Cola e desenvolver os seus próprios refrigerantes.

Após alguma pesquisa no seu laboratório, Hatcher lançou, através da Union Bottling Works, em 1905 o Royal Crown Ginger Ale, seguido, pouco depois, pela Chero-Cola, com sabor a cereja (“cherry”, em inglês), cujo sucesso levou a que, em 1912, a Union Bottling Works fosse rebaptizada como o seu nome. Na época, a Coca-Cola Company lutava para conter a proliferação de refrigerantes que tentavam aproveitar-se da popularidade do seu produto e adoptavam marcas similares a “Coca-Cola”, pelo que interpôs uma acção em tribunal a fim de impedir Hatcher de designar a sua gasosa como “Chero-Cola” e, em 1923, um tribunal deu-lhe razão. O resultado foi que as vendas da Chero começaram a declinar, o que foi compensado pela boa aceitação da Nehi, uma linha de refrigerantes com sabor a fruta, lançada por Hatcher em 1924, e cujo nome aparentemente exótico resulta de a pronúncia inglesa de “Nehi” ser idêntica à de “knee-high”, que significa “pela altura do joelho” e que tinha representação pictórica nos anúncios com pernas femininas. O sucesso da nova linha de refrigerantes foi tal que, quatro anos depois, o grupo empresarial foi rebaptizado como Nehi Corporation.

Todavia, isto não representou o fim da Chero(-Cola), que, em 1934, ressurgiu como Royal Crown (mas perdendo pelo caminho o sabor a cereja) e que em 1944 ganhou o direito a ser nomeada como Royal Crown Cola, quando outro tribunal decidiu que a Coca-Cola não tinha direito ao uso exclusivo da designação “Cola”.

Nas décadas de 40-50, a Royal Crown Cola foi promovida por uma impressionante galeria de estrelas de Hollywood, de que fizeram parte Anne Baxter, Gary Cooper, Joan Crawford, Bing Crosby, Paulette Godard, Betty Grable, Rita Hayworth, Sonja Henie, Betty Hutton, Hedy Lamarr, Virginia Mayo, Lizabeth Scott, Barbara Stanwyck, Shirley Temple, Gene Tierney e John Wayne, e obteve um sucesso que levou a que, em 1959, a Nehi Corporation fosse rebaptizada como Royal Crown.

Rita Hayworth promove a Royal Crown Cola

A necessidade de lutar contra os gigantes Coca-Cola e Pepsi forçou a empresa a não dormir à sombra dos louros e a ser inovadora: em 1954, foi a primeira a comercializar cola em lata e em 1962 lançou a Diet Rite, a primeira cola com teor calórico próximo do zero. Durante a década de 1960, o topo de vendas de colas nos EUA tinha a Coca-Cola em 1.º lugar, a Pepsi em 2.º, a RC em 3.º e a Diet Rite em 4.º.

As suspeitas sobre os efeitos na saúde do ciclamato (o adoçante artificial usado na Diet Rite), decisões empresarias pouco atiladas (investimentos sem relação com a indústria alimentar) e a incapacidade para acompanhar os investimentos cada vez mais exorbitantes da Coca-Cola e da Pepsi em publicidade (a verdadeira pedra de toque do negócio dos refrigerantes) foram levando ao declínio da Royal Crown, cujas vendas foram sendo confinadas ao Sul dos EUA e a zonas rurais, pelo que a empresa acabou por ser comprada pela Cadbury Schweppes no ano 2000. A Royal Crown foi integrada no grupo Keurig Dr. Pepper em 2018 e, face à continuada quebra nas vendas, foi anunciado que seria rebaptizada como Vision Beverages e que a marca Royal Crown Cola seria extinta nos EUA.

Inca Kola

Quase 8000 anos antes do Vinho Mariani e da Coca-Cola, os habitantes do Peru já tinham descoberto as propriedades estimulantes da coca (Erytroxylum coca) e o hábito de mascar as folhas deste arbusto enraizou-se nos habitantes do Império Inca e continua em voga nos povos que habitam hoje nos seus antigos territórios. Porém, ao contrário da célebre cola yankee a Inca Kola nunca empregou folhas de coca na sua formulação: o seu ingrediente fulcral é a lúcia-lima ou bela-luísa (Aloysia citrodora), um arbusto da família das verbenas nativo das regiões andinas do Peru, Bolívia e Chile, cujas folhas exalam um odor cítrico, que justifica o seu nome científico (citrodora) e a referência à lima (os anglófonos chamam-lhe “lemon verbena”, os hispanófonos “cedrón” ou “cidrón”, “hierbaluisa”, os francófonos “verveine citronelle” ou “verveine du Pérou”).

A Inca Kola foi lançada em 1935 por Joseph Robinson Lindley, um imigrante britânico, que dera os primeiros passos no fabrico de bebidas em 1910, com uma empresa familiar, em Lima. Em 1928, esta ganhara dimensão e fora formalizada como Corporación José R. Lindley e, no início dos anos 30, já tinha um razoável catálogo de refrigerantes – em 1935, a pretexto do 350.º aniversário da fundação da cidade, Lindley apresentou a Inca Kola, que se tornaria no produto de maior sucesso da firma, graças à sua promoção como “bebida nacional do Peru”.

Anúncio à Inca Kola, década de 1960

Durante mais de 60 anos, nem sequer a concorrência da toda-poderosa Coca-Cola conseguiu destronar a Inca Kola do 1.º lugar das vendas de refrigerantes no Peru – até que, em 1999, a Corporación José R. Lindley se viu em apuros financeiros e, para evitar a falência, teve de negociar um acordo com a Coca-Cola. Esta adquiriu 40% das acções por 300 milhões de dólares e ficou com o direito a produzir e comercializar Inca Kola em todos os países excepto no Peru, país em que a marca passou a ser detida conjuntamente pela Coca-Cola e pela Corporación José R. Lindley. Algumas pequenas marcas peruanas tentaram apoderar-se do conceito de “bebida nacional do Peru”, alegando que a Inca Kola era agora uma marca yankee, mas, apesar desta concorrência, a Inca Kola continua a ser o refrigerante mais vendido no Peru.

Kola Román

A história “oficial” dos refrigerantes de cola estabelece que o primeiro refrigerante de cola foi inventado em 1886 por John Pemberton, mas uma versão alternativa defende que desde 1865 que, em Cartagena de Indias, na Colômbia, Carlos Román Polanco já produzia um refrigerante carbonatado com noz-de-cola como ingrediente.

Anúncio à Kola Román

É possível que esta cola-antes-da-Coca-Cola não passe de uma lenda: os Laboratorios Román e a Botica Román que lhe estava associada vendiam águas e refrigerantes gaseificados desde meados do século XIX, mas só há vestígios concretos da Kola Román em 1934, como reacção à concorrência da Kola Walter, introduzida no final dos anos 20 por um empresário britânico e que logo ganhara o favor dos colombianos. Foi obra de um sobrinho de Carlos Román, Henrique Pio Román, que consagrou cinco anos à busca de uma fórmula que se aproximasse o mais possível do sabor da cola rival. A Kola Román não teve muito tempo para gozar do sucesso, pois em 1940 a Coca-Cola chegou à Colômbia e começou a tomar conta do mercado. a Román resistiu até 1967, ano em que a sucursal colombiana da Coca-Cola adquiriu a Embotelladora Román e a Kola Román. Esta cola de peculiar cor vermelha-viva esteve à beira da extinção, mas, face à sua popularidade em Cartagena, o ramo colombiano da Coca-Cola voltou a apostar na sua produção, após mais um reajuste na fórmula.

OpenCola

A OpenCola tem vendas irrelevantes e é praticamente desconhecida, mas vale a pena ser mencionada por surgir em oposição à Coca-Cola e à (ridícula) aura criada em torno da sua “fórmula secreta”. A OpenCola, lançada em 2001, em Toronto, por Grad Cohn, Cory Doctorow e John Henson, é preparada segundo uma receita “open source” (daí o seu nome), ou seja, pode ser usada (e alterada) por quem entender, sem pagar quaisquer direitos (a única condição imposta é que qualquer evolução da receita tem de ser registada também em regime “open source”).