A notícia correu vários meios de comunicação social em alguns países, que replicaram um texto do jornal desportivo espanhol Marca onde se analisava o suposto impacto do gesto de Cristiano Ronaldo na conferência de imprensa de antevisão do jogo entre Portugal e a Hungria, ao afastar do lugar em que estava sentado duas garrafas de Coca-Cola. O artigo dizia que, por causa desse gesto do internacional português que se tornou viral, as ações da empresa tinham afundado mais de 4 mil milhões de dólares (3,6 mil milhões de euros). A informação acabou por ser também dada como certa e replicada milhares de vezes nas redes sociais. Os dados, porém, mostram uma realidade diferente.

O jornal Marca dizia que na abertura da bolsa nova-iorquina, erradamente indicada como tendo ocorrido às 15h de Madrid, ou 14h de Lisboa (na verdade, Wall Street abre às 14h30), as ações da Coca-Cola valiam 56,10 dólares — ou seja, estariam a ser negociadas nesse valor momentos antes da conferência de imprensa em que Ronaldo protagonizou as cujas imagens que acabaram por correr o mundo. O gesto ocorreu pelas 14h45, hora de Lisboa, e tornou-se viral nas horas seguintes, quando as ações da empresa já tinham aberto negativas (às 14h30, hora de Lisboa).

Na realidade, esse preço de 56,10 não se verificava naquele momento — apenas se registou algures durante a sessão da sexta-feira anterior. Na segunda-feira, como se pode ver aqui, as ações já abriram a 55,69 dólares (numa segunda-feira que foi muito positiva para empresas tecnológicas com maior risco, como as do Nasdaq, por exemplo, e por isso menos positivo para empresas sólidas e previsíveis, como a Coca-Cola).

A cotação mais elevada a que a Coca-Cola foi negociada esta segunda-feira foi de 55,71 dólares e o valor mais baixo a que, nesse dia, os investidores negociaram títulos da empresa foi de 55,20 dólares. Uma amplitude, portanto, de 51 cêntimos.

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A variação da Coca-Cola no início da sessão de segunda-feira impressiona, mas as perdas verificaram-se logo na abertura porque foi um dia moderadamente negativo para a ação – o gesto de Ronaldo ainda nem sequer tinha acontecido. Fonte. MarketWatch

Quando as notícias do gesto de Cristiano Ronaldo correram as redes sociais, não houve variação negativa significativa no preço — ainda mais, note-se que é sempre difícil atribuir uma variação tão pequena a um único acontecimento ou declaração de alguém influente.

Não foi, nem de perto nem de longe, algo semelhante que aconteceu nas ações da Coca-Cola.

Quatro especialistas em mercados ouvidos pelo Observador dividem-se entre não haver qualquer influência do gesto do jogador português e essa influência ter sido simbólica ou residual, mas concordam que não foi esse gesto a causar “prejuízos avultados à empresa”. Filipe Garcia, economista do IMF e especialista em mercados financeiros, defende que “é incorreto associar o comportamento da cotação das ações da Coca-Cola com o gesto de Cristiano Ronaldo”. “Verificando a cotação minuto a minuto após o gesto de Cristiano Ronaldo, verifica-se que não houve uma alteração significativa da cotação, algo que se manteve até muito perto do final da sessão, altura em que os títulos até recuperaram“, acrescenta o especialista.

Além disto, há um outro fator essencial: esta segunda-feira foi a data conhecida como o ex dividend, o dia em que os títulos deixam de dar direito à distribuição de dividendos periódicos. Ou seja, quem comprasse uma ação da Coca-Cola na sexta-feira e quem comprasse uma ação na segunda-feira estava, no fundo, a comprar uma coisa diferente – porque na sexta-feira o investidor tinha direito ao dividendo e na segunda-feira já só ganhava direito ao próximo dividendo.

Como explica Filipe Garcia, “o preço de abertura na segunda-feira já foi mais baixo para refletir o facto de as ações detidas a partir daquela data já não conferirem o pagamento do dividendo”, que é de 42 cêntimos de dólar. Este efeito técnico até reforça a ideia de que não houve impacto significativo nas ações.

Ângelo Custódio, trader do Banco Best, concorda. “Apesar da grande visibilidade do Cristiano Ronaldo nos media, para mim é uma clara coincidência. Se verificarmos o horário de abertura nos Estados Unidos, o Ronaldo ainda não tinha tido o tal gesto, foi uma situação que ocorreu posteriormente à abertura do mercado”.

E coincide com o quê? “Coincide com um evento corporativo sobre o dividendo dos acionistas que leva a uma desvalorização teórica do título. Não passou pelo gesto do Cristiano Ronaldo na conferência de imprensa. É uma mera coincidência e o horário em que acontece não está em linha com o que a comunicação social tentou passar, que teria sido este incidente que levou à desvalorização do título”.

Então e a variação que se seguiu ao gesto, em que o título continua a cair nos minutos seguintes? “Quando está a negociar em ex-dividend, o título acaba por ter variações muito distintas do que é a variação num dia de sessão normal sem um evento corporativo. Olhando para o gráfico da Coca-Cola ao longo da sessão, eu diria que não teve qualquer impacto uma situação com a outra. O gesto do Ronaldo, para mim, não teve aqui qualquer tipo de impacto relativamente ao que foi a sessão da Coca-Cola”, conclui Ângelo Custódio.

Isto porquê? “Caso houvesse algum movimento [das ações da Coca Cola] face ao ato do Cristiano, seria descontado durante a sessão e iria verificar-se claramente na cotação de fecho do título, algo que não se verificou“.

Steven Santos, responsável da plataforma de Mercados e Corretagem do BiG – Banco de Investimento Global, diz que o gesto teve um impacto “diminuto a inexistente”. E depois precisa. “É um impacto neutro, há ‘n’ fatores que influenciam a negociação diária de uma ação. Este de que falamos – o regime de ex-dividendos – é o relevante, porque começou nesse dia. Tudo o resto é um bocadinho espuma do dia e é difícil estar a imputar isso [a desvalorização das ações da empresa] a um gesto mais um menos mediático”.

Mesmo nos minutos logo a seguir ao gesto? “É uma variação normalíssima. Para o comportamento de uma empresa daquela dimensão é normal”, diz o responsável do BiG.

Já Henrique Tomé, da XTB, analista da XTB prefere falar no “impacto muito muito simbólico” do gesto de Ronaldo. “De facto, as ações da Coca-Cola acabaram por ser impactadas (de forma muito ligeira) durante a abertura do mercado norte-americano” por fatores externos, incluindo decisões futuras das autoridades federais sobre juros nos EUA que afetaram todas as ações em geral, e não apenas as da Coca-Cola. Mas não o gesto de Ronaldo. “De maneira alguma tal ação [de Cristiano Ronaldo] acabou por causar prejuízos avultados à empresa, tampouco alterou o rumo das ações”, salienta ao Observador.

O analista da XTB nota ainda que “as ações da Coca-Cola estão em máximos pós-
pandemia” – quando devido aos confinamentos e consequente redução do consumo o valor em bolsa da marca americana chegou a cair 40% – e que “estas fases de correção [ou seja, quedas no valor] são naturais e saudáveis no mercado”.

Outra abordagem é verificar a amplitude de 51 cêntimos de dólar (a diferença entre o valor mais alto e o valor mais baixo da sessão) nas ações da Coca-Cola na segunda-feira. Numa sessão em que o melhor futebolista do mundo teve um gesto pretensamente arrasador para a empresa isto é significativo? De modo algum: na sexta-feira anterior, bem antes de tudo isto se ter passado, a ação oscilou 55 cêntimos (mínimo de sessão 55,66 e máximo 56,21), na quinta-feira anterior variou 36 cêntimos (mínimo de sessão 55,76 e máximo 56,12) e na quarta-feira anterior 44 cêntimos (mínimo de sessão 55,48 e máximo do dia 56,12 dólares).

“Isto significa que a ação da Coca-Cola teve uma oscilação perfeitamente banal na sessão de segunda-feira. Contando com o efeito do destaque do dividendo, a ação caiu, é verdade, mas apenas 0,25% naquele dia (entre os 55,69 da abertura e os 55,55 dólares do fecho).”

E mesmo comparando com o fecho da sessão anterior, como é mais usual fazer nos mercados financeiros, a variação negativa foi de apenas 1,08% – repita-se, perfeitamente enquadrável no dia negativo que teve o índice de pesos-pesados Dow Jones Industrials e também o índice S&P 500 e na questão do desconto do dividendo.

Sessão de dia 14 no Dow Jones. Repare-se que o índice também começou o dia negativo, piorou nas primeiras horas da sessão e recuperou um pouco na reta final do dia (exatamente como aconteceu nas ações da Coca-Cola). Fonte: Google Finance

Repare-se que no ponto mais baixo da sessão de segunda-feira, em que se poderia espelhar mais intensamente a pressão criada pelo gesto do futebolista, a ação esteve a cotar em 55,20 dólares. Nessa altura, a empresa, que tem 4,31 mil milhões de ações cotadas, esteve a valer 237,9 mil milhões de dólares.

Quando abriu, antes do gesto de Ronaldo, a Coca-Cola valia 240 mil milhões e dois minutos antes do gesto — pelas 14h43 — a ação valia 55,35 dólares. Ou seja, a empresa valia 238,56 mil milhões de dólares. Uma desvalorização de 1.440 milhões de dólares em cerca de 13 minutos, numa linha mais ou menos regular. O ponto mais baixo da sessão acontece seis minutos depois de Ronaldo ter feito o gesto, quando a ação esteve a cotar em 55,20 dólares. Nessa altura, a empresa, que tem 4,31 mil milhões de ações cotadas, esteve a valer 237,9 mil milhões de dólares, uma desvalorização de 660 milhões de euros face a dois minutos antes do gesto. A seguir valorizou e desvalorizou na mesma proporção ao longo da sessão, numa tendência crescente até ao final.

Gráfico cedido por Filipe Garcia, da IMF.

No final da sessão, a Coca-Cola recuperou e fechou a valer 239,4 mil milhões, ilustrando como numa gigante como a Coca-Cola, uma das empresas mais valiosas do mundo, a valer cerca de 240 mil milhões de dólares, uma variação de 1% pode significar um par de milhares de milhões de dólares em capitalização de mercado — mas isso é uma variação normal numa empresa com esta dimensão e que se enquadra perfeitamente na evolução recente dos preços. A ação nunca fugiu dos níveis normais a que tem negociado todo o mês de junho, como se pode ver aqui.

A variação das ações da Coca-Cola foi perfeitamente banal à luz do que tem sido a oscilação e as cotações nas últimas semanas. Fonte: MarketWatch

Com impacto significativo ou sem ele, a Coca-Cola reagiu ao gesto de Ronaldo. Através de uma declaração de um “porta-voz” da marca de bebidas, citada pelo Daily Mail, a Coca-Cola lembra que “aos jogadores é oferecida água, assim como Coca-Cola e Coca Zero, à chegada às nossas conferências de imprensa” e acrescenta que “toda a gente tem direito às suas preferências no que se refere a bebidas”.

Coca-Cola responde a Ronaldo: “Toda a gente tem direito às suas preferências de bebidas”

Conclusão

Não é rigoroso afirmar que o gesto de Cristiano Ronaldo, na conferência de imprensa de segunda-feira, teve como consequência a desvalorização de 4 mil milhões de dólares em bolsa da Coca-Cola.

Por um lado, desde o início da sessão desse dia — que tinha arrancado cerca de 15 minutos antes —, a empresa estava a negociar em baixa. Perdeu 1.440 milhões de euros nos 13 primeiros minutos da sessão (até ao gesto de Ronaldo) e, ao mesmo ritmo, outros 660 nos seis minutos que se seguiram ao gesto (quando atingiu o valor mais baixo). A partir daí a tendência da ação foi de subida até ao final da sessão.

Quatro especialistas em mercados ouvidos pelo Observador consideram que o gesto de Cristiano Ronaldo ou não teve qualquer impacto na ação, ou não causou “uma alteração significativa da cotação”. Também qualificam este impacto como “diminuto a inexistente”, “neutral” ou “muito muito simbólico”. E três deles valorizam como elemento relevante para a descida das ações da Coca-Cola na sessão “o evento corporativo sobre o dividendo dos acionistas”. Todos concordam que não foi a ação de Cristiano Ronaldo que acabou por causar “prejuízos avultados à empresa”, nem tampouco alterou o rumo das ações.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

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