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“Deixe-me contar-lhe uma história curiosa…” Daniel Sampaio, que já a seguir nos vai falar sobre O homem que matou Liberty Valance, abriu-nos a porta de sua casa para conversarmos sobre o seu mais recente livro, “Do telemóvel para o mundo: pais e adolescentes no tempo da internet”. O título, como se vê, é auto-explicativo.
Ao longo da conversa, vai partilhando vários episódios do seu dia a dia, embora dizendo que não valem a pena ser referidos nesta entrevista. Este é um deles: “Ontem à noite vi um filme antigo, gosto muito de ver filmes antigos, e entrava o Lee Marvin, um ator de filmes duros. E eu lembrei-me de uma cena de outro filme em que o Lee Marvin atira um café a ferver para cima da namorada e ela aparece com uma cicatriz. Aquilo impressionou-me muito quando vi. Andei à procura na internet e descobri o nome da atriz e o filme onde isso se tinha passado. Isto é uma coisa maravilhosa, é uma recordação minha, antiga. O filme é de Fritz Lang, um filme muito antigo, e eu jamais encontraria esta cena numa enciclopédia de cinema.”
Com este exemplo, o professor de psiquiatria jubilado, de 71 anos, quer exemplificar aquilo que tenta dizer aos pais dos adolescentes no seu 27.º livro: as vantagens da internet superam largamente os riscos. Riscos, como diz, existem em todo o lado, “até quando usamos uma faca”. Frontalmente contra que as famílias se espiem na internet, defende que o importante é saber utilizar esta tecnologia e não deixar que ela se torne motivo de conflito. “Sabe… tenho consultas que nada têm a ver com psiquiatria. As pessoas não estão doentes, estão só a gerir mal a comunicação na família”, diz, sentado no sofá do seu escritório em casa, ao mesmo tempo que faz questão de lembrar que é psiquiatra e não psicólogo. Pelos últimos tem muito respeito, é até a profissão do seu filho, mas ele, Daniel Sampaio é psiquiatra com muito orgulho.
Do seu lado esquerdo vê-se um quadro do surrealista português Raúl Perez que mais tarde irá sugerir ao fotógrafo que aproveite para o enquadramento do seu retrato. “Já sei que o escritório tem pouca luz e que o espaço é pequeno. Também já sei que pestanejo muito. Mas não quer aproveitar este quadro? É surrealista, é lindo, é a melhor peça que tenho cá em casa.” Quanto ao início da conversa, e ao duro Lee Marvin, também nós fomos à internet. O filme de Fritz Lang, de 1953, chama-se Corrupção (Big Heat) e a namorada é Gloria Grahame. A partir daqui, a conversa começa e acaba nos telemóveis e na Galáxia Internet.
Posso deixar aqui o telemóvel? O meu colega fotógrafo vai avisar quando estiver próximo de nós.
Claro que sim. O meu está aqui [diz, pondo a mão no bolso]. Os telemóveis hoje fazem parte de nós, vão connosco para todo o lado.
Nem de propósito, é mesmo sobre telemóveis que vamos falar.
Vamos lá, então.
Nós, como diz, andamos sempre com o telemóvel atrás. Mas como é que devemos agir quando os miúdos nos começam a pedir o telefone?
Quando as crianças começam a exigir — e a palavra é mesmo exigir — é importante que nos sentemos ao lado deles a dizer desde muito cedo: “O que é que estás a ver?”, “Como é que estás a jogar este jogo?”, “Olha que não deves estar muito tempo com esse jogo, vamos interromper, vamos jogar um jogo de tabuleiro, vamos para a rua”. É importante introduzir a ideia de que o telemóvel é para usar durante um curto período de tempo. Mas se deixarmos uma criança sozinha com um tablet como vemos hoje, enquanto os adultos vão fazer outra coisa, passamos a mensagem errada. Hoje estive com uma pessoa que me disse que uma criança com um ano já tem uma grande apetência para pedir o telemóvel. E os pais dão-lho porque para eles o telemóvel é completamente banal. Nós adultos estamos sempre com o telemóvel.
Estamos a falar de crianças de 5, 6, 7 anos?
Ou menos, mesmo com 4! Se observar nos restaurantes, é muito frequente ver crianças de 4 anos com um ipad na mão enquanto os pais ou estão no telemóvel ou estão a comer, não é?
Ainda há dias assisti a isso. Era uma criança que teria uns dois anos, no máximo, e a mãe ainda antes de vir a refeição, preparou o tablet com uns desenhos animados e durante todo o tempo em que esteve a dar de comer à criança, ela esteve a ver o que se passava no tablet.
Seguramente que isso se passa em casa também. Temos de evitar que a criança se habitue a estar a fazer outras coisas enquanto está no tablet. Temos de evitar que ele seja utilizado como uma ama eletrónica. O que estamos a pedir é que seja o dispositivo a tomar conta da criança.
Às vezes, os pais estão desesperados…
Sim, claro, se for por um curto período não tem qualquer problema. Aliás, não há qualquer problema na utilização do telemóvel se tivermos a ideia de que tem de ser um curto período de tempo e de que aquelas horas de que eu falo no livro, que são horas fundamentais para os jovens e a família, sejam preservadas: a hora do pequeno-almoço, a hora de chegar a casa, a hora de jantar e a hora de deitar. Depois pode haver muita abertura… Mas é importante perceber que é preciso ensinar a fazer uma boa utilização quando se dá um telemóvel a uma criança de 10 anos.
“Uma criança com um telemóvel antiquado vai ser alvo de piadas”
É essa a idade certa para a criança ter o seu primeiro telemóvel?
É a altura que eu acho que é adequada. Mas deve dar-se um smartphone, não se deve dar um telemóvel de teclas, porque isso vai fazer com que sejam gozados na escola. Temos de perceber que se damos um telemóvel antiquado a uma criança de dez anos, que até poderia ser adequado para a idade, ela é automaticamente alvo de piadas na escola.
Mas a pedagogia do telemóvel não pode começar só aos 10 anos, pois não?
Não. A pedagogia do ecrã começa com a televisão. Os adolescentes não vêem televisão praticamente nenhuma e se precisarem vêem no telefone. Mas as crianças vêem. Podemos começar a pedagogia do ecrã desde muito cedo para que elas saibam ver televisão moderadamente e para, mais tarde, quando entrarem em contacto com o computador e o telemóvel, também os saberem utilizar de uma forma correta.
A televisão pode então ser uma preparação para mais tarde saberem usar um telemóvel?
É essa a ideia.
E o que devem os pais fazer nessa altura?
Restringir o tempo. No livro, tenho a certa altura uma proposta que não é minha, é do Serge Tisseron [psicanalista], sobre a utilização dos ecrãs. Eles começam com desenhos animados na televisão. Devem ver durante um curto período e não estar muito tempo a ver televisão para criar, desde logo, a ideia de que qualquer visionamento tem de ter uma regra de utilização. O que é fundamental é criar nas crianças e nos jovens a ideia de uma boa utilização. A internet é uma coisa maravilhosa se for bem utilizada.
A internet tem esse lado óptimo, um estudante pode ver uma palestra que se está a passar do outro lado do mundo e já ninguém procura enciclopédias de papel.
Isso é muito importante. Tenho ali uma Enciclopédia Larousse, muito boa, mas que já ninguém utiliza. A internet tem esta coisa maravilhosa, abre para o mundo, permite aumentar o conhecimento, marcar uma viagem, marcar um restaurante, um encontro amoroso… Sou contra que se diga que a internet é uma coisa má. Tem riscos, mas qualquer coisa tem riscos. Uma faca pode ter riscos. É preciso é interiorizarmos esta ideia, desde muito cedo, de que a internet onde eles todos vão viver é uma coisa extremamente positiva, desde que bem utilizada.
É uma porta para o mundo, como diz no livro?
Essa é a perspetiva que tem de ser dada. Porque, se não é trabalhada na infância, transforma-se num instrumento de poder de filhos contra pais. Depois os pais têm necessidade de repor o poder na família e vivemos uma espécie de Big Brother familiar, o Orwelliano, no sentido do livro “1984”, não no sentido da TVI. Tudo a vigiar-se uns aos outros.
Vê isso acontecer nas famílias, essa vigilância excessiva?
O que se passa em algumas famílias é muito preocupante: é a entrada nos telemóveis dos filhos, a vigilância constante do computador de casa, o tal Big Brother Orwelliano. E esse é o principal motivo para não haver confiança entre pais e filhos, porque as pessoas passam a vida a vigiar-se umas às outras. Há casais que também se espiam no telemóvel. Mas quando os pais entram no telemóvel dos filhos, depois ficam prisioneiros por que não podem confessar que o fizeram. Descobriram coisas que não gostaram.
E depois o que é que os pais fazem com a informação que recolheram dos telemóveis dos filhos?
Não conseguem fazer nada. Esta semana tive uma consulta onde estava um rapaz de 14 anos que frequentava sites pornográficos — muito frequente nestas idades — e o pai marcou uma consulta para lhe poder dizer que estava a espiar o telemóvel. A consulta foi muito difícil, porque o filho tomou consciência de que o pai andava a entrar-lhe no telemóvel e ficou extremamente zangado. Tive de trabalhar o conflito, porque o pai ficou preso à sua informação.
Então como é que se pode fazer de outra forma?
Através da confiança. Através de o pai e a mãe estarem habituados a partilhar o mais possível aquilo que os filhos fazem nos ecrãs. Claro que há sempre uma zona que os filhos não vão partilhar, mas se houver algum problema significativo, o filho que está habituado a partilhar os problemas com os pais desde o princípio vai fazê-lo.
“Quando os filhos sabem mais do que os pais, o poder na família é abalado”
Diz-nos no livro que, pela primeira vez, e falando dos telemóveis, os filhos sabem mais do que os pais. Isto cria conflitos na família?
Esse é um ponto fundamental. Escrevi este livro porque sei que há muitos conflitos na família a propósito da internet e do telemóvel. Foi o ponto de partida. Ao longo da história, as gerações mais velhas sempre tiveram maior experiência de vida e souberam mais do que os filhos em praticamente todas as circunstâncias. Pela primeira vez com estas novas tecnologias — que não são tão novas assim, mas continuamos a chamá-las novas — os filhos têm um conhecimento maior de que os pais, sabem mais. Isso faz com que a situação de poder na família, que deve estar sempre do lado dos pais, seja abalada. Donde, uma advertência dos pais aos filhos é rejeitado com a expressão “não sabes nada disto”. E é mesmo esta a expressão que se usa. Não sabes nada disso. Isto gera um desequilíbrio de poder que tem sido fonte de conflitos.
E os pais estão preparados para esta inversão de papéis?
Os pais estão a preparar-se, sobretudo os mais novos. Os pais das crianças estão mais preparados e há uma grande diferença entre eles e os pais dos adolescentes, que têm 45 anos aproximadamente. O que está a acontecer é que a partir dos conflitos de utilização do telemóvel, começam a surgir outros problemas na família que têm a ver com a intimidade, com a privacidade, com a gestão da hora do sono, com a relação com os amigos… Problemas que foram levantados por uma situação que devia ser banal na família e que é a autoregulação da internet.
Está a fazer uma diferenciação entre pais de adolescentes e de crianças. O nível de problemas tem também a ver com o conhecimento que os próprios pais têm das tecnologias?
Claro. Os pais mais novos têm mais experiência, mais conhecimento, estão mais à-vontade e isso facilita. Os pais das crianças atuais estão mais alerta para o problema e quando esses filhos chegarem à adolescência poderão gerir melhor a situação. Muitas vezes o que aconteceu foi que os pais não fizeram nada durante a infância, deram o telemóvel aos filhos aos 10 anos, e continuaram sem fazer nada. Depois surgem os problemas.
Se não os ensinamos a pôr a roupa suja no cesto quando têm 5 anos, não vão passar a fazê-lo só porque um dia fizeram 15 anos. É isso?
Sim, como a história da cadeira que quase todos têm no quarto, onde deixam a camisa usada para vestir noutro dia. Um dia vou escrever sobre isso. Esta regra tem de ser explicada na infância, que a roupa não fica atirada, tem de ser arrumada. Ou seja, uma adolescência saudável ganha-se na infância. É muito importante passar essa mensagem. As pessoas dizem: “Não deu problema nenhum na infância, mas agora está a dar.” É verdade, mas na infância os pais tinham uma grande possibilidade, um grande poder sobre a criança. Depois perdem poder, perdem autoridade. Se as regras não estão interiorizadas, é muito mais difícil na adolescência conseguir isso.
Ou seja, os pais não podem esperar que um dia os jovens passem a respeitar regras que nunca lhes ensinaram na infância. É isso que quer dizer?
Sim, sim. Há outra coisa a propósito disso. É a ideia de que a adolescência é uma fase em que vai haver muitos problemas, mas vai passar. Essa é uma ideia errada. A adolescência, de facto, tem problemas, mas se não tivermos uma intervenção nos problemas, não vai passar. Pelo contrário, vai-se agravar. Como sabemos que a adolescência se prolonga, muitas pessoas chegam à idade adulta com problemas que podiam ter sido resolvidos antes. Deve-se intervir. Os pais devem ter uma atitude muito presente, bastante assertiva, com envolvimento. E isso é muito mais fácil se tiver havido essa relação na infância.
No livro usa a imagem de que os pais devem ir sentados no banco de trás do carro durante a adolescência dos filhos.
É uma metáfora que funciona bem. Primeiro, os pais devem conduzir o carro, depois devem passar para o lado do volante quando ele fizer 18 anos e começar a conduzir, e depois devem ir no banco de trás. Significa que temos sempre de acompanhar a vida dos filhos, mas que o controlo que vamos exercer é menor à medida que eles vão avançando na idade. Os pais nunca podem achar que os filhos podem estar sozinhos — aquilo a que eu chamo a educação indulgente, que é deixar fazer tudo, não haver vigilância nenhuma —, mas também tem de haver envolvimento afetivo.
A tal parentalidade construtiva de que fala?
Quando introduzo o tema da parentalidade construtiva, que é baseado em muitos estudos, não quis maçar o leitor com muita informação, mas há dados consistentes que dizem que se os pais tiverem uma atitude com autoridade, sem autoritarismo, e ao mesmo tempo estiverem envolvidos afetivamente, se partilharem a vida dos filhos, se forem acompanhando, se se interessarem, esta parentalidade é mais eficaz e funciona como modelo. É muito provável que esses filhos quando forem pais tenham esse modelo apreendido. Se os pais forem muito autoritários, ou pelo contrário muito permissivos, é muito pouco provável que funcione.
Aliás, diz isso no livro, que o tipo de parentalidade que exercemos influencia de forma determinante a adolescência.
Não é só os anos da adolescência. Há estudos que dizem que influencia também as gerações seguintes, porque esse modelo, apreendido pelo adolescente, vai ser posto em prática quando ele, mais tarde, for pai ou mãe.
“É utópico pensar que um rapaz de 16 anos não vai beber”
Até porque quando somos pais acabamos por ir buscar memórias de que não nos lembrávamos há anos, não é?
Começando logo pelo parto. As mulheres lembram-se sempre das suas mães na altura do parto, é muito frequente. E quando não têm uma boa relação com a mãe é mais difícil. Os avós também são cada vez mais importantes, vivem mais tempo, têm mais saúde e há muitos divórcios. É um papel muito significativo, como o dos padrastos e das madrastas, a quem se deve tirar a carga negativa, porque em muitos casos são extremamente importantes e positivos para os adolescentes. O importante é ter adultos disponíveis por perto dos adolescentes. As pessoas pensam que os jovens não gostam de falar com adultos e isso não é verdade. Os jovens gostam de falar entre si, mas gostam de ter momentos com os adultos.
Por falar na conversa com os adultos, no livro diz que não faz sentido estar a maçar os adolescentes com conversas muito longas…
As chamadas conversas à séria… Foi um amigo do meu neto que me inspirou, tem 18 anos. Ele dizia: “Eu ficava logo nervoso quando os meus pais diziam que íamos ter uma conversa séria.” Sobretudo no campo da sexualidade. Daí a pequena conversa: um pequeno acontecimento de vida que é comentado, uma série que se está a ver e que serve para uma pequena conversa. Quando a filha fala dos amigos e diz, por exemplo, a Carolina está grávida… Bom, isto é uma mensagem que quer dizer que ela própria está a iniciar a vida sexual e que está com esse problema. Temos de captar essas mensagens e usar esses momentos em vez daquela coisa antiga, que alguns pais ainda tentam, que é ter uma conversa muito a sério sobre a pílula ou as drogas. Nada disso funciona. Funciona a pequena coisa. “Vais sair à noite, já sei que vais beber. Mas o que deves fazer em relação ao beber? Beber pouca quantidade, beberes água e comeres antes de sair.” São três coisas fundamentais.
E isso chega?
Não chega, porque há excessos. Não digo que isto, do álcool, não é um problema. Mas é mal abordado. Para já, a grande maioria dos jovens não se vai tornar alcoólico como às vezes oiço dizer. Eles bebem em excesso e isso não é bom, mas é preciso desdramatizar o consumo e dar-lhes regras de utilização. É utópico pensar que um rapaz de 16 anos vai sair à noite e não vai beber. Se o pai lhe diz para não beber, perde autoridade. É preferível não dizer. O que deve fazer é ensinar-lhe as regras fundamentais: comer, não ter o estômago vazio, beber água, beber com moderação e não misturar as bebidas. Quando o adolescente está a sair e vai cheio daquele entusiasmo é preciso lembrar estas regras.
Essa pequena conversa funciona melhor do que sentá-los para a conversa séria?
Funciona melhor do que a dos perigos do álcool, dos jovens que acabam na esquadra ou em coma alcoólico. Eles já sabem isso tudo. O que é preciso é saber beber.
Esse estilo de conversa passa também por falar com os filhos através de mensagens ou WhatsApp?
O mais possível. É uma ferramenta que é extremamente importante e que é a comunicação instantânea. Sem ter a preocupação de estar sempre a controlar, mas ter alguma noção de onde eles estão e o que estão a fazer. Em relação aos meus netos, que me introduziram no WhatsApp, foi muito bom. Mas disseram-me: “Instagram não, avô. Não é para ti.” Mas o WhatsApp é muito bom porque podemos comunicar.
E se calhar os adolescentes respondem mais depressa a uma mensagem do que a 4, 5 ou 6 telefonemas, não é?
Completamente. Eles não gostam muito de falar ao telefone, a não ser quando namoram. Eles próprios comunicam muito rapidamente. Eles não gostam de conversas prolongadas. E os pais, a falar com eles, dizem: “Como foi a escola? Já lanchaste? Trouxeste o caderno? Ligaste à avó?” E eles respondem com monossílabos: “Sim, pai, sim, mãe.”
É o nagging de que fala no livro?
O nagging é o ralhar persistente. É muito importante deixá-los descontrair um bocadinho quando chegam a casa e isso pode passar pela ida ao computador, ao telemóvel e à internet. Não faz mal nenhum. Não se deve começar logo a dizer tens de estudar, tens teste amanhã, vai tomar banho… Este tipo de persistência, o nagging, nos jovens de hoje que são mais cientes dos seus direitos, vai provocar uma contra-reação.
Essa é uma das grandes angústias dos pais de adolescentes, a perda do controle?
Sim, é o grande problema. Antes, quando os filhos ficavam na casa de um amigo, era muito fácil saber o que se passava. Telefonava-se à mãe do amigo. Hoje, o mundo é diferente, é a tal Galáxia Internet do Manuel Castells [sociólogo espanhol]. Os pais não sabem o que se passa: se eles estão a ver pornografia, se estão num site perigoso, se estão a dar elementos de identificação a um estranho… Há novos riscos, mas eles só se podem obviar com confiança.
“A confiança nas famílias é mais importante do que o diálogo”
A confiança é fundamental no mundo de hoje?
É, é a palavra-chave. A confiança nas famílias é mais importante do que o diálogo. Se vir os meus livros anteriores, eu falava muito no diálogo. O que tenho vindo a perceber é que a palavra-chave, neste momento, é a confiança. Tem de haver confiança entre as gerações. Por isso é que sou completamente contra que se espie o telemóvel, ou que se entre no quarto de um adolescente sem bater à porta. É preciso que os pais se habituem a conceder alguma privacidade, mas também é importante os filhos perceberem que estão numa casa de família e têm de ter respeito pelas convicções dos pais. Eles têm de ter o seu território privado, que é o seu quarto, mas o quarto não está fechado em relação ao que se passa à volta.
Mas os adolescentes são desconfiados por natureza…
São desconfiados porque têm muito receio de ser controlados. E quando temos só a perspetiva do controlo, sem envolvimento, o controlo torna-se excessivo e eles ficam muito preocupados com isso. Por isso é que digo sempre que é preciso tender para a autonomia. E como se vence a desconfiança? Com confiança. Parece uma coisa de La Palice, mas é verdade. Se temos uma relação de abertura — há coisas que nos vão sempre escapar como pais — mas, de uma forma geral, as coisas correm bem.
Estes pais que agora vão espreitar os telemóveis dos filhos são os mesmos que há uns anos não gostavam que as mães lhes fossem ler os diários…
Não tinha pensado nisso, mas sim, é o correspondente. Lembra-se que os diários tinham uma chave? Uns livrinhos muito bonitos, mais para as raparigas do que para os rapazes, mas tinham essa pequena chave que depois se escondia. É a mesma coisa. Havia mães que às vezes até tentavam arrombar a fechadura. É a mesma coisa, mas muito ampliada porque a internet é uma coisa muito constante.
Faz sentido sermos amigos dos nossos filhos nas redes sociais?
Acho que se pode ser amigo, mas sem ter a preocupação de controlo excessivo. Por outro lado, toda a excessiva camaradagem entre pais e filhos não é uma coisa boa, é preciso saber-se separar o que é ser pai do que é ser pai camarada. No livro conto a história de um pai que fumava charros ao pé do filho. Isso é o pai camarada e o pai camarada perde autoridade. Não é suposto sermos amigos dos nossos filhos, somos pais. Evidente que há pais amigos, mas não somos os amigos deles. A partir dos anos 1980, as gerações tornaram-se mais próximas e os pais de hoje — o Eduardo Sá diz isso e eu concordo — são muito próximos dos filhos. Isso é muito bom do ponto de vista dos afetos. Mas há o reverso, o excesso de camaradagem com a respetiva perda de autoridade. E é preciso recuperar a autoridade, mas não passa pelo regresso do não… não é isso. O caminho é a confiança e caminhar lado a lado com os filhos desde a infância.
Mas é preciso dizer não de vez em quando?
É preciso dizer não muitas vezes, mas tem muito mais força dizer não se se tiver uma relação de confiança com os filhos.
Em relação aos pais que são amigos dos seus filhos nas redes sociais, temos de pensar bem nos comentários que fazemos?
Claro que sim. Não se deve fazer comentários, devemos evitá-los, tal como as imagens que podem ser contestadas mais tarde. É preciso muita prudência com as imagens que se põem dos nossos filhos. As que parecem muito adequadas e fáceis na infância podem, mais tarde, ser detestadas. Conto-lhe um exemplo: um pai disse-me que estava radiante porque conseguiu que o filho de 7 anos fosse fotografado ao lado dos jogadores do Benfica, e perguntou-me se devia pôr no Facebook. Eu disse para não pôr. Ele vai achar maravilhoso agora, mas se calhar aos 14 ou 15 anos pode não gostar dessa imagem. Tire antes a fotografia e partilhe através do telemóvel com as pessoas amigas. Se põe no Facebook fica uma marca para sempre.
E nós não temos isso, mas os nossos filhos vão ter uma pegada digital desde o dia em que nascem.
Sabe que agora quando vão a uma festa de anos e sabem as pessoas que lá estão, a primeira coisa que vão fazer é ver o perfil dessa pessoas na redes sociais? Quando vão a uma seleção para uma entrevista de emprego, a primeira coisa que o empregador vai saber é o que consta na internet sobre essa pessoa. Descobrem-se coisas que depois não são boas paras as pessoas.
É difícil ser pai de um adolescente e ter de lidar com tantas preocupações e cuidados e alertas…
A adolescência é uma época difícil por definição. Nunca disse que é fácil, o que eu proponho e torná-la mais fácil e divertida. Não temos de ter aquela ideia de que é uma época trágica e de crise. Mas é difícil. É muito mais fácil ter as crianças com 5, 6, 7 anos. Um pai de um adolescente está permanentemente preocupado. Tem é de compensar a preocupação com as coisas positivas que tem a adolescência.
“Os adolescentes sempre viram pornografia, agora o acesso é mais fácil”
Falta-nos falar da questão da pornografia.
Adoro o tema. Adoro porque temos de falar sobre ele. O que me preocupa na pornografia — os adolescentes sempre viram pornografia— é que agora o acesso é muito simples e mais fácil. A grande questão é que nós não temos educação sexual em Portugal. Não temos sítios onde as pessoas possam falar sobre o que é a sexualidade saudável. E os adolescentes podem estar a ser influenciados por visões de imagens sexuais que não correspondem à sexualidade das pessoas.
Que tipo de visões?
O corpo da mulher é explorado, o corpo do homem é exagerado… As imagens que parecem proezas do ponto de vista sexual não correspondem à vida das pessoas e isso pode dar a ideia, sobretudo nos rapazes que vêem mais pornografia do que as raparigas, que assim é que deve ser. Isso é mau. O que é que vamos fazer? Não vamos entrar no telemóvel e ver se eles estão a ver pornografia, vamos normalmente falar sobre o tema: “É natural que estejas a ver sites pornográficos. O que é que estás a pensar sobre isso?” Isto costuma acontecer por volta dos 12, 13, 14 anos.
Um adolescente que consome pornografia com muita frequência pode acabar viciado?
Claro, é viciante. Completamente viciante porque está ligado à masturbação. E é antes do início da vida sexual ativa que o fazem, quando a iniciam vêem muito menos pornografia. Corresponde à fase da descoberta do corpo e da sexualidade. É muito possível que ao evitar falar sobre a pornografia, ela se torne viciante e o adolescente acaba com um problema de dependência.
Mas o que se pode fazer para evitar uma situação de dependência? Como disse, é certo que vão vê-la. Antigamente era mais difícil, era preciso ter coragem para ir ao quiosque, encarar o vendedor e comprar a revista pornográfica.
Devemos falar sobre a pornografia, abrir a porta de nossa casa aos amigos deles, não os deixar estar muito tempo sozinhos. Quando temos um grupo de rapazes e raparigas é muito pouco provável que vão ver pornografia em conjunto. Antigamente dizíamos que eram preocupantes os casos de adolescentes que saíam muito e que iam muito para as discotecas. Hoje, devemos preocupar-nos com um jovem que está muitas horas no quarto sem nenhum controle. Não se pode entrar lá de repente, mas deve-se chamar a atenção. E, aos poucos, eles vão falando. Temos de fazer isso: falar da sexualidade normal, não ter medo de abordar o tema, até porque é uma fase passageira.
A pornografia pode influenciar as relações futuras dos adolescentes?
Ainda não há estudos sobre isso, mas há esse receio entre os investigadores. Pode estar relacionado com a violência sexual no namoro, por exemplo. Alguns estudos dizem que eles podem estar a reproduzir comportamentos que vêem em sites pornográficos. Aí, entra novamente a educação sexual: o que se pode ver e o que se pode fazer a partir daí. Mas há esse risco, daí ter abordado este tema.
Falou sobre a necessidade de uma boa educação sexual. O que é que devia estar a acontecer nas escolas?
Como sabe, pertenci a um grupo de trabalho que lançou a Educação Sexual nas escolas através de uma lei de 2009. O que se verifica, penso que sobretudo por falta de vontade política e porque o tema não está na agenda do Ministério da Educação, é que depende muito da vontade dos professores. É uma pena. Como vimos, é muito difícil eles falarem com os pais sobre este assunto, o acesso à internet é muito fácil, e se a escola não faz nada… Temos um problema. Espero que a disciplina prometida de Cidadania não seja apenas com conteúdos muito teóricos e muito gerais, mas que seja com coisas muito práticas e que a Educação Sexual seja recuperada. Falar de educação sexual é uma oportunidade para falar de educação. À volta dela tem tudo: o respeito entre pessoas, a privacidade, o amor. A escola não é só o Português e a Matemática. Os pais são o mais importante, mas a escola pode dar um contributo, tem de dar instrução e educar.
A internet também mudou as amizades e o amor dos jovens?
Sobre a amizade, seguramente. Sobre o amor, não se sabe, é uma questão muito complexa. Não sabemos muito sobre o amor. Sobre a amizade, sim. Havia a ideia de que havia jovens com poucos amigos reais e muitos virtuais. Hoje sabe-se que não. Têm muitos amigos reais e depois continuam a contactar com os amigos reais através da internet. A amizade aumentou muito com a internet e aumentou para além fronteiras, porque há muitos jovens que através do Erasmus têm amigos estrangeiros. E isto é uma coisa completamente nova. Em relação ao amor, acho que seguramente vai ter influência, mas ainda não sabemos qual é a repercussão. Nos casais, sim, há casos de ciúmes potenciados pela internet. Nos adolescentes, ainda vamos ter de esperar alguns anos para ver.