E ao segundo dia de visita a Kiev, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a surpreender: o Presidente começou o dia a fazer um discurso em ucraniano e acabou por defender de forma entusiástica, entre outras coisas, a adesão da Ucrânia à União Europeia e à NATO. Mais: fez questão de garantir que Portugal não faz “jogo duplo” nesta matéria e que “quer mesmo” a Ucrânia nas instituições europeias. Uma declaração que parece bem mais taxativa em comparação com as posições sempre cautelosas que o Governo, e o primeiro-ministro em particular, têm assumido nestes dossiês.

Se o Presidente disse em tempos que o primeiro-ministro era tão otimista que chegava a ser “irritante”, desta vez o ânimo foi trazido pelo chefe de Estado, que ao contrário de Costa falou sem grandes reservas sobre a integração futura da Ucrânia, particularmente no quadro da tão antecipada adesão à UE. “Quando o Presidente da República portuguesa diz que Portugal quer que a Ucrânia venha a integrar a União Europeia, essa é uma palavra que não precisa de garantia adicional”, atirou aos jornalistas, ao lado de Volodymyr Zelensky.

A aparente diferença nas declarações poderá ser uma questão de forma — ou de entusiasmo do momento, admite-se no Governo. Ao Observador, fontes do Executivo recordam que, sendo esta uma questão delicada — e, como Marcelo frisou depois, sendo a política externa portuguesa “uma só” — é “evidentemente articulada” entre Executivo e Presidência.

Daí que no Governo o entusiasmo das declarações do Presidente tenha sido relativizado: o Governo — mais concretamente através de declarações do primeiro-ministro, António Costa, e por vezes do ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho — costuma ser mais explicativo (ou mais duro) do que Marcelo, embora garanta que a sua posição de fundo também é favorável à adesão da Ucrânia.

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Por outras palavras: as declarações do Governo têm sido sempre construídas no sentido de elencar todos os fatores que complicam a adesão de Kiev às instituições europeias e lembrar que não deve haver excesso de “emoções” (Costa dixit) na análise deste tema, para não “frustrar” as expectativas do país. E, apesar de Marcelo vir agora dizer que isto não invalida que a posição de fundo seja um claro “sim”, os avisos e cautelas já valeram a Portugal um reparo de Zelensky — e levaram a que o governo ucraniano incluísse Portugal num grupo de países “céticos” sobre a adesão de Kiev às instituições europeias.

Já esta quinta-feira, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, foi questionada pelos jornalistas e fez questão de frisar mais uma vez que a posição de Portugal em relação à Ucrânia — “apoio inequívoco” — é “consensual desde o primeiro dia”, apesar de ter garantido que não ouviu as declarações do Presidente da República. Mas, puxando a fita do tempo atrás, nem sempre o Governo e o Presidente falaram, pelo menos, no mesmo tom ou com a mesma clareza sobre o assunto.

Abrir o caminho sem “mentiras” (8 de abril de 2022)

“É evidente que um país que está em guerra tem muita dificuldade em preencher uma série de requisitos jurídicos, políticos, económicos, financeiros. Mas abrir o caminho é dar uma esperança da parte da União Europeia ao povo ucraniano.” (Marcelo Rebelo de Sousa)

Uma das raras vezes em que o Presidente da República se pronunciou sobre a adesão da Ucrânia à UE aconteceu depois de a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ter entregado ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a documentação para o início do processo de candidatura, durante uma visita a Kiev. Marcelo saudou a iniciativa por “abrir o caminho” para o processo de adesão, mas nessa altura mostrava-se quase tão cauteloso como Costa se mostraria depois em várias ocasiões: “Acho que a União Europeia fez o que devia ter feito, que é não estar a criar condições que sabe que a Ucrânia não pode preencher neste momento — isso seria de parte a parte uma mentira –, mas abrir o caminho”.

O risco de “colocar todas as fichas” na adesão (20 de abril de 2022)

A urgência da Ucrânia nunca se resolve com o alargamento. Só se resolve com soluções que sejam compatíveis com a urgência. Por isso, o aprofundamento do acordo de associação com a União Europeia é o espaço ideal. Colocar todas as fichas num processo que é incerto, necessariamente moroso e sujeito a múltiplas vicissitudes é um risco que acho muito grande. Há outra dimensão, que é a de saber se a União Europeia, ela própria, está preparada para novos passos de alargamento. Até agora, a União Europeia não tem sido capaz de acolher países como a Albânia, Montenegro, que têm uma dimensão bastante diferente da Ucrânia.” (António Costa)

Dias depois, chegava a vez de o primeiro-ministro explicar detalhadamente a sua posição sobre a hipotética entrada da Ucrânia na UE. Costa aproveitou a entrevista que concedeu ao Clube de Jornalistas, numa altura delicada: Zelensky estava a dias de aparecer em vídeo no Parlamento português e tinha, no mês anterior, exercido pressão pública sobre Portugal, garantindo estar “quase” a convencer o país dos benefícios da sua adesão.

No Clube de Jornalistas, Costa colocaria água na fervura e defenderia claramente que a grande aposta na adesão poderia sair furada, dado que o processo é incerto e cheio de dificuldades. E chegaria até a defender uma alternativa: a Ucrânia deveria em vez disso apostar no aprofundamento do seu acordo de associação com a UE. Por seu lado, a UE teria de perceber se tinha capacidade para ser “efetivamente capaz de acolher” o maior país em território da Europa, com 40 milhões de habitantes. Costa recusava, nesta altura, contribuir para as divisões no seio da UE, lembrando que outros países recusariam uma entrada da Ucrânia enquanto Estados que estão em lista de espera há mais tempo não fossem acolhidos.

A visita de Costa e o reparo de Zelensky (21 de maio de 2022)

“Temos de ser criativos em encontrar soluções. Tenciono identificar quais as necessidades em concreto requeridas pelas autoridades ucranianas e, a partir daí, procurar construir uma solução imediata que una toda a União Europeia. Acho que é muito importante a integração da Ucrânia no mercado comum, com a libertação das regras aduaneiras. O papel de Portugal é ouvir todos e procurar encontrar um ponto de consenso.” (António Costa)

Quase um mês depois, o primeiro-ministro aterraria em Kiev para se encontrar com Zelensky e insistiria noutras alternativas e em soluções “criativas” para a Ucrânia, incluindo a integração aprofundada no mercado comum. Com os habituais cuidados ao referir a questão da adesão, o primeiro-ministro frisaria que, se por um lado acolhia “de braços abertos a opção clara que a Ucrânia fez pela Europa” e que Portugal “nunca tem a posição do não”, por outro lado a Ucrânia “conhece a casa em que quer entrar”.

A partir daí, Costa, ao lado de Zelensky, aproveitaria para relembrar que estes processos são altamente complexos, oferecendo ajuda “técnica” à Ucrânia para compor a sua candidatura, e recordando que o processo de adesão português demorou “nove anos” a completar. Não sem ouvir uma resposta do chefe de Estado ucraniano, na conferência de imprensa conjunta de ambos: “Compreendo que há países que esperaram muitos anos, mas não penso que seja correto comparar a Ucrânia com países que fizeram o caminho de adesão em paz. Estamos em guerra e a lutar pela liberdade e pelos valores europeus”.

Costa desaconselha “emoções” em excesso (17 de junho de 2022)

É preciso termos todos consciência de que não há alargamento sem que isso implique alterações da arquitetura da União Europeia. A minha convicção é de de que todos os meus colegas que têm de uma forma tão emotiva manifestado o apoio à adesão da Ucrânia seguramente estão cientes de que essas alterações são absolutamente essenciais.” (António Costa)

A alfinetada chegou na altura em que a União Europeia se preparava para conceder à Ucrânia o estatuto de país candidato, o primeiro passo no longo caminho para a adesão à UE. Costa estava claramente reticente e falou com os partidos com assento parlamentar, já convencido de que essa concessão iria acontecer, tendo sido “ultrapassado pelos acontecimentos”, analisavam então fontes partidárias que conversaram com o primeiro-ministro. No final, Costa criticaria o excesso de emoção dos colegas que, pareceu sugerir, ignoravam as dificuldades do processo.

À porta fechada, o primeiro-ministro pareceria, segundo as mesmas fontes, “relutante” e preocupado com dois fatores. Por um lado, os “temores geopolíticos” provocados pelo desequilíbrio dos blocos e o facto de, aceitando a Ucrânia, a União Europeia estar a estender-se cada vez mais para Leste. Por outro lado, uma explicação mais prática e que afeta diretamente Portugal, que o nosso país poderia ser prejudicado a nível económico, tendo em conta os efeitos que a entrada de um país que tem quatro vezes a população portuguesa poderia criar na distribuição de fundos e do envelope financeiro europeu. Nesse mês, o portal europeu Euroactiv noticiava que o Governo ucraniano incluía Portugal num grupo de países “céticos” que preocupavam a diplomacia de Kiev.

Dias antes, o primeiro-ministro tinha defendido que, sobre este assunto, seria preciso “pensar para lá das emoções” para evitar “frustrações e falsas expectativas” e frisado que seria mais vantajoso garantir outras concessões à Ucrânia: “Por que não garantimos a liberdade de circulação [aos ucranianos]? Por que não levantamos essas barreiras, permitindo uma maior integração da economia ucraniana no mercado comum?”.

A reestruturação da UE e o risco de um “drama” (21 de novembro de 2022)

[A UE] não tem condições para cumprir as expectativas que agora está a criar.” (António Costa)

Na CNN Summit, o primeiro-ministro afirmou taxativamente que a Europa não teria condições para cumprir as expectativas que está a criar junto da Ucrânia. Nessa altura, explicou que se estava a referir a dois riscos: por um lado, se depois a adesão não se pudesse concretizar por falta de condições objetivas da Ucrânia para aderir à UE, o “efeito ricochete” seria “um enorme drama”, como aconteceu com a Turquia, exemplo a que Costa recorre frequentemente. Por outro lado, a UE precisará de se “reestruturar” para isto acontecer, como tem avisado constantemente, porque neste momento, na visão de Costa, “claramente não há condições institucionais nem orçamentais” para isso.

As condições lá de casa (8 de fevereiro de 2023)

“É como a nossa casa. Quando nós convidamos alguém para nossa casa, temos de ter condições para receber quem convidamos (…) A Europa não pode prescindir de fazer este debate.” (António Costa)

O primeiro-ministro estava a discursar na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, pouco antes de se cumprir um ano desde o início da invasão russa, e voltou a explicar a sua opinião sobre a eventual adesão da Ucrânia, neste caso à UE. Neste caso, colocou o ónus na União, que tem de estar em “condições” para receber novos membros, ou convidados, fazendo o paralelismo doméstico. Tudo porque “a maior tragédia” para a Europa seria “a frustração das expectativas” desses mesmos convidados, como aconteceu no passado com a Turquia, lembrou. E foi mais longe: alimentar essas expectativas da Ucrânia inutilmente seria “uma traição”, se depois não fossem concretizadas.

O primeiro-ministro explicou em pormenor o que queria dizer com as tais condições em que é preciso pôr a “casa” europeia. Por um lado, porque já é difícil, como acontece agora, “ter uma UE com 27 comissários” e “ninguém terá imaginação para criar 36 portefólios” de forma a representar os diferentes países. E ironizou: “O Tratado de Lisboa já hoje diz que a Comissão Europeia não tem de ter 27 membros, mas eu gostava de saber quem é o primeiro país que se oferece para não estar sentado na Comissão Europeia”.

Além disso, o chefe do Governo português avisou que seria preciso praticamente dobrar os recursos da Política Agrícola Comum para que a Ucrânia, “um dos maiores produtores agrícolas” da Europa, pudesse entrar, além de que a distribuição de fundos comunitários seria afetada. Só o “efeito estatístico”, explicou, tendo em conta o PIB de 2019 da Ucrânia, significaria uma alteração “radical” no que são as regiões da coesão. Mais importante: “Todo o Portugal passaria a ser, estatisticamente, “rico”, sem que isso significasse crescimento no nosso PIB”. Este será o ponto em que Costa poderá estar a pensar sobretudo nos interesses da economia portuguesa e nos prejuízos que a entrada da Ucrânia pode trazer.

“UE não seria bom local de acolhimento. Tem de se adaptar” (30 de junho de 2023)

A UE tem de refletir desde já e preparar-se para compreender o que é que tem de alterar para poder acolher de uma forma positiva não só a Ucrânia, mas também a Moldova, os países dos Balcãs Ocidentais. Com a atual arquitetura institucional e orçamental, a UE não seria um bom local de acolhimento para nenhum país que queira entrar (…). Se queremos honrar, e temos de honrar as expectativas criadas, a UE tem de se adaptar previamente.” (António Costa)

Muito recentemente, o primeiro-ministro voltou a falar sobre o assunto: no final de junho, António Costa participou numa reunião informal com outros nove líderes europeus sobre o alargamento da União Europeia a outros países e não falou apenas do caso ucraniano. Para Kiev e não só, as mesmas cautelas, ainda que colocando o ónus nos anfitriões e não nos convidados: a arquitetura institucional e orçamental da própria UE é que dificulta o processo, defendeu. Nessa altura, o primeiro-ministro antecipou, já depois de ter deixado os seus avisos, que o debate prosseguiria “de uma maneira mais formal” durante os próximos meses, no contexto da presidência espanhola do Conselho da União Europeia (que começou no dia 1 de julho e durará seis meses).

A conversa com Zelensky (8 de julho de 2023)

Portugal vai continuar a apoiar a Ucrânia no seu caminho rumo a uma futura adesão e apoia a Ucrânia para se tornar membro da NATO quando as condições o permitirem.(António Costa)

O “sim” está cá, o aviso também. Desta vez, a 8 de julho deste ano, António Costa falou com o Presidente ucraniano ao telefone para coordenar posições para a cimeira da NATO, no dia em que passavam 500 dias sobre a invasão da Rússia. Depois da conversa, os dois países lançaram uma declaração conjunta em que relatavam esse apoio prometido por Portugal, sempre com o “mas”: só “quando as condições o permitirem” será possível contar com a Ucrânia na NATO. No Twitter, o líder do Governo português frisava que Portugal “tem apoiado a Ucrânia desde o primeiro dia” e assim continuará “pelo tempo que for necessário”.

As condições e o requisito da “paz” (10 de julho de 2023)

Devemos respeitar o princípio de que a Aliança tem as portas abertas a quem pretende aderir e reconhecemos toda a legitimidade da Ucrânia vir a aderir à NATO, quando as condições adequadas estiverem reunidas. Da mesma forma que, em paralelo, se discute qual é o grau de participação da Ucrânia na UE. Como é sabido, foi-lhe atribuído o estatuto de candidato, a comissão está a fazer a avaliação de preenchimento por parte da Ucrânia de diferentes requisitos e eu diria que em dezembro devemos estar a tomar a decisão se avançamos ou não avançamos para a abertura formal das negociações.(António Costa)

Antes da cimeira da NATO, António Costa foi à Lituânia e visitou militares em missão naquele país. Foi ali que aproveitou para falar dos processos — e das expectativas — quanto à adesão da Ucrânia tanto à UE como à NATO. No primeiro caso, explicou que no final do ano se tomará a decisão sobre se é possível abrir formalmente as negociações para que se torne um Estado membro. No segundo, há logo uma “primeira condição” à partida: que a adesão da Ucrânia “seja um fator que garanta uma paz justa e duradoura e não um fator de perturbação, neste momento, na guerra”. Além disso, haveria questões “de natureza militar, mas também política e económica” a ter em conta, frisou. Acima de tudo, disse e insistiu o primeiro-ministro, é importante ter em conta que a questão “não é de tempo, é das condições efetivas”.

A desilusão de Zelensky e a resposta de Costa (12 de julho de 2023)

“Houve seguramente um momento de mal-entendido. E a reafirmação de todos de que a Ucrânia possa ser membro logo que possível pressupõe, naturalmente, um convite. Um convite que se possa concretizar quando as condições estiverem reunidas.” (António Costa)

Depois da cimeira da NATO, para a qual o Presidente ucraniano foi convidado — e no decorrer da qual esperava receber um convite formal para iniciar o processo de adesão à Aliança Atlântica –, Costa veio responder a essa frustração de Zelensky, falando num “mal-entendido”. Mais uma vez, a mesma linha: o convite informal está feito, a vontade também existe, mas faltam condições para que a entrada da Ucrânia passe de boas intenções.

O entusiasmo de Marcelo (24 de agosto de 2023)

“Não temos jogo duplo. Quando dizemos que queremos a Ucrânia na UE e na NATO é porque queremos mesmo a Ucrânia na UE e na NATO. Pode contar coma nossa clareza e frontalidade.” (Marcelo Rebelo de Sousa)

O Presidente português foi taxativo: a partir de Kiev, onde falou ucraniano, entrou numa trincheira e prometeu vários tipos de ajuda à Ucrânia, Marcelo defendeu de forma entusiástica a entrada tanto na UE como na NATO, por onde considera que “o futuro” da Ucrânia passará.

Assegurando que se o diz é porque não é preciso mais nenhuma “garantia adicional” sobre a vontade da diplomacia portuguesa, Marcelo fez depois por assegurar que isto não significa que haja um desentendimento com o Governo. “A política externa é uma só” e isso significa que “o poder político em Portugal quer que, no futuro, a Ucrânia faça parte da família europeia em termos políticos. E a família europeia em termos políticos significativos, com um papel a desempenhar no mundo.” Questionado pelos jornalistas, Marcelo ainda lembrou que Portugal “tem sido claro” sobre o facto de isso exigir uma preparação dos dois lados, tanto da UE como da Ucrânia. Mas o que é certo é que o primeiro-ministro tem-se dedicado bem mais longamente a explicar e insistir nesses obstáculos, transmitindo a imagem de uma posição mais recuada.

Isso mesmo foi, aliás, reconhecido pelo próprio Zelensky, que esta quinta-feira lembrou os primeiros encontros com António Costa. “De facto, não foi fácil”, admitiu, frisando já que nessa altura “havia vários países que não acreditavam que pudesse haver um consenso em torno da União Europeia”. Ainda assim, o líder ucraniano garantiu que as reservas se foram dissipando e que “Portugal passou a apoiar a Ucrânia completamente”, pelo menos no seu entendimento.