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Vladimir Putin assumiu-se como sucessor de Boris Ieltsin e comanda os destinos da Rússia desde 2000

AFP via Getty Images

Vladimir Putin assumiu-se como sucessor de Boris Ieltsin e comanda os destinos da Rússia desde 2000

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De espião do KGB à presidência da Rússia: os bastidores da ascensão de Vladimir Putin ao poder

A história da subida de Putin no aparelho de Estado russo é o foco de "Um Espião no Kremlin", o novo livro da jornalista do Observador Cátia Bruno, baseado no podcast narrativo com o mesmo nome.

Assinalam-se este mês dois anos desde o começo da invasão da Ucrânia por parte da Rússia,  acontecimento transformador da geopolítica mundial no século XXI. Um dos principais protagonistas é o Presidente russo, Vladimir Putin, que personaliza autoridade e poder de acordo com os princípios forjados nos escritórios do KGB, os serviços secretos da era soviética.

Dos começos na Faculdade de Direito à engrenagem da URSS, dos primeiros passos na política de São Petersburgo à subida a pulso até ao topo do aparelho de Estado do Kremlin, a história de Vladimir Putin é uma de ambição e conquista, geralmente contada a partir das sombras e de golpes de bastidores dignos de um enredo de espionagem.

Baseado no podcast narrativo do mesmo nome — um dos capítulos da série Podcasts+ do Observador —  baseado em dezenas de entrevistas e numa investigação extensiva, “Um Espião no Kremlin — Intrigas, Traições e Mentiras: a Ascensão e a Conquista do Poder de Vladimir Putin”, da jornalista do Observador Cátia Bruno, chega esta segunda-feira às livrarias. A pré-publicação que se segue consiste em dois excertos: o prólogo do livro, detalhando as conhecidas ligações de Putin aos serviços secretos russos e a antecâmara da sucessão de Boris Ieltsin, em plena crise dos atentados de 1999; e uma viagem até aos bastidores dos começos do Presidente russo na política, enquanto número dois da Câmara de São Petersburgo, altura em que serviu como “elo de ligação” entre a autarquia e o mundo do crime organizado.

Título: “Um Espião no Kremlin”
Autora: Cátia Bruno
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 203

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O início da Operação Especial

Já é de noite quando um carro branco, um Zhiguli de matrícula russa, pára ao pé do número 14 da Rua Novosyolov. Dois homens saem do carro. Abrem o porta-bagagem e retiram um saco pesado, também branco, que transportam a custo para a cave do prédio. Os vizinhos, alertados pelo ruído, abrem as cortinas.

Estamos a 22 de setembro de 1999 e a Rússia está em estado de alerta. Nas últimas semanas, várias explosões em edifícios de diferentes cidades mataram mais de 300 pessoas. A primeira foi há menos de um mês, no centro comercial que fica por baixo da Praça Manezh, em Moscovo. Três dias depois, uma carrinha explodiu perto de uns apartamentos onde viviam soldados e as suas famílias em Buynaksk. Cinco dias mais tarde, nova explosão: desta vez num prédio residencial da Rua Guryanov, em Moscovo.

O jornalista Sergei Kanayev foi um dos primeiros a chegar à Rua Guryanov e recordou o cenário de caos: «A poeira ainda não tinha assentado. Ouvíamos gritos e gemidos, havia chamas a vir dos tubos de gás», afirmaria numa entrevista. «Corremos para um homem que estava vestido apenas com a sua roupa interior e que gritava pela mulher e pela neta – elas viviam no primeiro andar e, quando a parede ruiu, ficaram debaixo de um guarda-roupa em chamas. Conseguimos ouvir a menina a chorar durante algum tempo. Mas, a certa altura, deixou de fazer barulho.»

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AFP via Getty Images

O rescaldo dessa explosão ainda não estava concluído quando, quatro dias mais tarde, se registaria outra num apartamento residencial da capital russa. O número de mortes foi o maior até à altura: 119. Três dias depois, mais uma carrinha com uma bomba explodia ao pé de prédios, desta vez na cidade de Volgodonsk.

No meio desta vaga de terrorismo – que já havia provocado mais de 300 mortes e deixado 1500 pessoas feridas –, dois homens a descarregarem sacos de um porta-bagagem, naquela noite de 22 de setembro, parecem suspeitos. Ao espreitar pela janela, os moradores do bloco de apartamentos na cidade de Ryazan veem-nos a transportar mais sacos para a cave. Quando terminam, fecham o porta-bagagem, entram no carro e partem apressadamente. Preocupados, alguns dos residentes telefonam para a polícia.

Quando os agentes chegam e descem à cave encontram três sacos, de 50 quilos cada um, cheios de uma substância granulada branca. Há também um detonador e um relógio em contagem decrescente com uma hora programada: cinco e meia da manhã.

O prédio é rapidamente evacuado e é chamada a equipa de explosivos para que se impeça o desastre iminente. Ao mesmo tempo, nas estradas nos arredores de Ryazan, começa a caça ao Zhiguli branco. Não demorará muito a ser encontrado: menos de 24 horas depois, os dois homens são apanhados. Mas, quando baixam o vidro da janela para mostrar os documentos, aquilo que entregam deixa os polícias surpreendidos. Na mão do agente que os aborda estão agora dois distintivos, onde se vê claramente uma sigla reconhecida por todos os russos – FSB.

Pouco antes do fim da União Soviética, em 1988, os siloviki ocupavam menos de 5% dos principais cargos de liderança do país; vinte anos depois, mais de 30% desses lugares estavam já preenchidos por homens com este perfil, a larga maioria vindos do FSB.

O Serviço de Segurança Federal (FSB na sigla original) é o herdeiro do antigo KGB. O que estavam dois agentes da polícia secreta a fazer naquela cidade de Ryazan, transportando o que pareciam ser explosivos para a cave de um prédio, é uma pergunta que ainda hoje não tem uma resposta definitiva. Mas as hipóteses levantadas ilustram o elevado nível de entrosamento entre agentes secretos e o poder político na Rússia, já evidente naquele ano de 1999. Desde então, só viria a aumentar.

Chamam-lhes siloviki. O nome em russo significa literalmente «homens fortes» e passou a representar as figuras do aparelho de Estado que têm autorização para recorrer à força: polícias, militares e, sobretudo, espiões. De acordo com um estudo de Maria Snegovaya, pouco antes do fim da União Soviética, em 1988, os siloviki ocupavam menos de 5% dos principais cargos de liderança do país; vinte anos depois, mais de 30% desses lugares estavam já preenchidos por homens com este perfil, a larga maioria vindos do FSB.

O denominador comum ao longo deste período é um político chamado Vladimir Putin. Quando se deu o incidente em Ryazan, ele já exercia o cargo de primeiro-ministro da Federação Russa. Até então, tinha responsabilizado os separatistas da região da Chechénia pelas explosões das últimas semanas. Desta vez, a história seria diferente.

Depois de serem apanhados numa estrada nos arredores da cidade, os dois agentes do FSB são detidos. Acabam, porém, por serem rapidamente libertados, após uma chamada direta da sede. Mas essa informação não é logo tornada pública. Oficialmente, as autoridades dizem que foi um atentado terrorista que acabou por ser abortado. E foi essa a versão que vingou durante praticamente 48 horas.

Até que o diretor dos serviços secretos, Nikolai Patrushev, fala a um canal de televisão e apresenta uma versão totalmente nova. «Isto não foi uma bomba», garante. «Este exercício pode não ter sido bem executado, mas era só um teste. O dito explosivo eram apenas sacos de açúcar.» A versão oficial é de que tudo não passaria de um simulacro para testar a vigilância dos russos. Mas as explicações de Patrushev não convencem. As suspeitas de que os serviços secretos russos podem, afinal, ser responsáveis por todos os atentados surgem de imediato.

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Suspeitas de envolvimento do Kremlin adensaram-se após declarações do diretor do FSB, Nikolay Patrushev (à esquerda na imagem, ao lado do então primeiro-ministro Vladimir Putin)

POOL/AFP via Getty Images

A 13 de setembro, quando o incidente em Ryazan ainda nem tinha acontecido, um tabloide publicara um artigo polémico. Sob o título «Andou o Kremlin a fazer bombas?», o texto citava uma fonte das secretas que responsabiliza o FSB pelos ataques. Depois de Ryazan, as suspeitas crescem ainda mais.

Vladimir Milov, que trabalhava nessa altura para o Estado na área da energia, contou-me numa entrevista a partir da Lituânia, onde vive agora, como até dentro do Kremlin se falava abertamente sobre essa possibilidade. «Sabe qual é a grande diferença da perceção pública deste incidente agora e na altura? É que nós adivinhámos, afirmou. «Discutíamos isso dentro do governo, nos nossos locais de trabalho. “Quem anda a fazer explodir os nossos apartamentos: são os chechenos ou o FSB?”»

À medida que o tempo passa depois de Ryazan, a teoria da conspiração adensa-se. Um advogado que investiga a possível ligação do FSB aos atentados, Mikhail Trepashkin, é condenado a quatro anos de prisão por posse ilegal de arma e divulgação de segredos de Estado. A sua detenção acontece uma semana antes de prestar declarações na comissão de inquérito parlamentar que decorre a propósito das explosões.

Dois deputados dessa mesma comissão morrem também em circunstâncias estranhas: em 2003, Sergei Yusehnkov é atingido a tiro na rua, em Moscovo; dois anos depois, Otto Latsis morre num acidente, quando um jipe abalroa o seu carro. Desde então, os trabalhos da comissão parlamentar ficaram parados. E a teoria da conspiração foi fazendo o seu caminho.

Muitos especialistas no funcionamento dos serviços secretos duvidam, contudo, que o FSB tivesse intenção de fazer explodir aquele prédio em Ryazan. Para compreender melhor esse possível envolvimento, falei com o jornalista Andrei Soldatov, que investigou a fundo o tema e que admite que o FSB parecia ter algo a esconder. Contudo, este russo que passou a vida a estudar as secretas do país afirma que tudo indica que o incidente em Ryazan foi exatamente como disse Patrushev, o diretor do organismo. «Aquilo foi muito estúpido da parte do FSB. Mas, na altura, falei com as forças especiais que fizeram aqueles exercícios em Ryazan. Às vezes estas pessoas são realmente estúpidas. Às vezes são mesmo, mesmo estúpidas», resume.

Até hoje, desconhecemos quem colocou os explosivos naqueles prédios ao longo do mês de setembro de 1999. Sabemos, contudo, que muitos russos acham que pode ter sido o próprio Estado – 40%, segundo uma sondagem da altura.

Não é o único. Um dos antigos chefes da norte-americana CIA em Moscovo, Rolf Mowatt-Larssen, disse-me que, até ver provas em contrário, continua a não acreditar na ideia de os atentados serem responsabilidade do Estado russo: «Não a excluo de todo, porque já li coisas que me fizeram duvidar, mas nunca o afirmaria taxativamente. Temos de ter muito cuidado com teorias da conspiração que não podemos provar.»

O que não significa, contudo, que o FSB não tenha qualquer relação com o que aconteceu. «Às vezes não tem de se fazer tudo. Aproveita-se simplesmente a oportunidade e deixa-se as coisas correrem», nota Andrei Soldatov. O jornalista, que passou anos a investigar o funcionamento dos siloviki, não fecha a porta a uma terceira hipótese: a de que os atentados tenham sido executados por separatistas chechenos, mas não tenham sido impedidos pelos serviços secretos russos, apesar de estes estarem a par do que iria acontecer. «Isso nunca foi investigado a sério», acrescenta Soldatov.

Até hoje, desconhecemos quem colocou os explosivos naqueles prédios ao longo do mês de setembro de 1999. Sabemos, contudo, que muitos russos acham que pode ter sido o próprio Estado – 40%, segundo uma sondagem da altura. Há quem diga que as explosões foram levadas a cabo pelo Presidente Boris Ieltsin para ter um melhor resultado eleitoral. Há quem levante a possibilidade de o FSB ter feito o «exercício» de Ryazan para tentar restaurar a sua imagem. Há quem fale em incompetência. Seja qual for a hipótese levantada, todas ilustram o grau de desconfiança profunda dos russos nas suas instituições.

Retrospetivamente, há também quem aponte o dedo a um homem que todos conhecemos: Vladimir Putin. A vaga de explosões serviria de justificação ao primeiro-ministro Putin para lançar uma segunda guerra na Chechénia. O conflito faria disparar a sua popularidade e consolidar a sua influência junto de Ieltsin, que lhe passaria o poder pouco depois. Teria sido ele a engendrar uma vaga de ataques terroristas para impulsionar a sua ascensão política?

É possível, mas improvável. Talvez nunca venhamos a conhecer os detalhes de Ryazan e dos ataques que o precederam – mas não precisávamos de Ryazan para saber que a ligação de Putin aos serviços secretos é profunda.

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Antigo major do KGB, Vladimir Putin foi subindo na hierarquia do Estado russo até ser nomeado como sucessor de Boris Ieltsin

POOL/AFP via Getty Images

Antigo agente do KGB, Vladimir Vladimirovich Putin é um produto do meio onde estudou e trabalhou. Isso mesmo notou logo a jornalista Natalia Gevorkyan, quando lhe encomendaram uma biografia do homem pouco antes de ele chegar à presidência – First Person, a obra onde há mais declarações do próprio Putin do que em qualquer outro momento ao longo de mais vinte anos no poder. «Passei cinco anos a escrever sobre o KGB. Ele não era melhor ou pior do que os outros. Era mais esperto do que alguns e mais astuto do que outros», diria a jornalista sobre a sua primeira impressão de Putin.

Na mesma altura em que dava entrevistas aos biógrafos oficiais, o antigo major do KGB ia preparando a sua chegada ao poder. Em dezembro de 1999 – três meses depois de Ryazan e a poucos dias de ser anunciado como substituto de Ieltsin –, participou numa cerimónia para restaurar uma placa em memória de Yuri Andropov, antigo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética que é mais conhecido pelos seus 15 anos de terror na liderança do KGB.

Andropov ocupa um lugar central na ideologia de alguns dos agentes secretos russos: «Seja para os agentes seniores, seja para os novos funcionários, Andropov é um verdadeiro estadista e representante da elite estratégica do país, que colocou os interesses nacionais acima de tudo.» A frase não foi dita por um antigo dirigente do KGB, durante a vigência da União Soviética; foi escrita nos últimos anos por Nikolai Patrushev, o homem que era diretor do FSB aquando do incidente em Ryazan. E ilustra o pensamento de alguns dos siloviki, para quem a repressão soviética não é uma mancha do passado, mas antes um modelo a seguir no presente.

Um modelo onde os agentes de segurança ocupam um lugar de destaque no aparelho do Estado, como o próprio Patrushev descreveria um ano depois de Putin chegar à presidência. Na cerimónia do aniversário da Cheka, a polícia política precursora do KGB, Patrushev dirigiu-se assim aos veteranos ali presentes: «Quando condecoro alguém, escrutino o seu rosto. Temos os intelectuais analistas, os homens espadaúdos das forças especiais, os taciturnos especialistas em explosivos, os rigorosos investigadores e os discretos operacionais de contraespionagem. Todos parecem diferentes, mas todos têm uma característica especial a uni-los – e é uma qualidade muito importante –: o seu sentido de serviço. Eles são, digamos assim, a nossa nova nobreza.»

Há quem diga que Patrushev instrumentaliza Putin, que o comanda como uma marioneta. Mas o antigo ministro Vladimir Milov acha que não; em vez disso, os dois homens e Bortnikov formam aquilo a que chama «as três cabeças do dragão».

Patrushev vê-se como o líder desta «nova nobreza», os siloviki que influenciam o líder e dirigem o país. De tal forma que, quando deixou os serviços secretos, Patrushev passou a ocupar o cargo de líder do Conselho de Segurança Nacional, o órgão de aconselhamento mais importante da presidência. O homem que lhe sucedeu no FSB é o seu protégée Alexander Bortnikov, que cultiva exatamente o mesmo pensamento.

Há quem diga que Patrushev instrumentaliza Putin, que o comanda como uma marioneta. Mas o antigo ministro Vladimir Milov acha que não; em vez disso, os dois homens e Bortnikov formam aquilo a que chama «as três cabeças do dragão». Três figuras com a mesma visão do mundo, os mesmos interesses e a mesma forma de funcionar, aprendidos na escola do KGB. «Imagino-os todas as noites reunidos, a beber um conhaque e a felicitarem-se mutuamente por serem os mestres do universo. Eles gerem juntos este país», sentenciou durante a nossa conversa.

Esta geração de siloviki chegou ao poder com Putin. Um homem que, apesar das poucas palavras em público, nunca escondeu as suas origens na polícia secreta. «Para mim, regressar aos órgãos da segurança do Estado é regressar a casa», havia dito quando foi nomeado diretor do FSB.

Nove meses depois de ser eleito Presidente, Vladimir Putin organizou um jantar-buffet para um grupo de veteranos do KGB. À luz dos grandes lustres do palácio presidencial, o antigo major celebrou o sucesso de um plano, disfarçado em tom de piada: «Quero reportar que o grupo de colegas do FSB a quem foi incumbida a missão de trabalhar de forma clandestina no governo cumpriu o primeiro estágio da sua missão. A operação especial para assumir o controlo dos degraus mais altos do poder foi bem-sucedida.»

Para este espião no Kremlin, a chegada ao poder foi uma operação especial. Não seria a última.

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Anatoly Sobchak foi professor de Putin e era presidente da Câmara de São Petersburgo em 1990 quando o convidou para ser seu assistente. À época, Putin era agente no ativo do KGB

Gamma-Rapho via Getty Images

“Diz-me com quem andas”

Anatoly Sobchak era um homem carismático. Deputado e professor de Direito, tinha o dom da oratória. Naqueles tempos de abertura de Mikhail Gorbachev, durante as reformas da perestroika, os seus discursos cativantes impressionavam e os casacos de xadrez que usava contrastavam com o estilo cinzento da maioria dos burocratas soviéticos.

Sobchak já estava na liderança da Câmara de São Petersburgo quando voltou a cruzar-se com um antigo aluno da Faculdade de Direito, que tinha acabado por fazer carreira nos serviços secretos. Agente do KGB regressado de Dresden, Vladimir Putin trabalhava naquela altura como infiltrado na universidade, durante o período incerto dos últimos dias da União Soviética.

Um dia, Sobchak abordou-o diretamente e perguntou-lhe se gostaria de colaborar com ele na Câmara. «Devo dizer-lhe que não sou apenas assistente do reitor. Sou um agente no ativo do KGB», respondeu-lhe Putin. Sobchak calou-se, hesitante. Depois de pensar alguns segundos, deu a resposta «Que se lixe!»

Foi assim que ambos recordaram publicamente o convite. Mas há quem diga que Sobchak talvez já soubesse que Putin era agente do KGB – e que tenha sido precisamente por isso que o convidou. Não por acaso, o presidente da Câmara tratava habitualmente o subordinado por «Stierlitz». Esse é o nome da personagem principal da série televisiva Dezassete Momentos de Primavera, um dos produtos encomendados por Andropov para valorizar o KGB nas décadas de 1960 e 1970. Stierlitz era um espião soviético infiltrado na Alemanha Nazi, cuja imagem solitária e séria marcou a cultura popular russa. Não por acaso, muitos lhe chamam o «James Bond soviético».

Sobchak não se preocupava com a rotina do dia a dia. Era um orador brilhante, mas não era um bom gestor. (...) Todas as questões burocráticas, mesmo que importantes, pareciam-lhe aborrecidas. Portanto, ele delegava em alguns subalternos, onde se incluía Putin.

Putin claramente gostou da alcunha. Nos primeiros tempos na autarquia, em 1991, participou num documentário sobre a Câmara intitulado Vlast(Poder, em russo). Numa das cenas, emulava diretamente Stierlitz, conduzindo o seu GAZ Volga ao som da música do genérico de Dezassete Momentos de Primavera.

A proximidade entre Vladimir e Anatoly consolidou-se rapidamente em poucos meses. Nomeado vice-presidente da Câmara para as Relações Exteriores, Putin tratava frequentemente de assuntos que lhe eram confiados diretamente pelo presidente. Isso mesmo notou na nossa conversa Vladimir Gelman, antigo ativista pró-democracia de São Petersburgo: «Sobchak não se preocupava com a rotina do dia a dia. Era um orador brilhante, mas não era um bom gestor», contou. «Todas as questões burocráticas, mesmo que importantes, pareciam-lhe aborrecidas. Portanto, ele delegava em alguns subalternos, onde se incluía Putin.»

Quando uns antigos colegas do KGB tentaram pressionar Vladimir para que usasse essa proximidade a seu favor, Putin garante que não lhe passou pela cabeça aproveitar-se do mentor: «Tirei a pasta e mostrei-lhes as folhas em branco com a assinatura de Sobchak. E eles perceberam que isso era uma prova do alto grau de confiança que Sobchak tinha em mim», contou aos biógrafos oficiais. «”O que querem de mim?” Eles imediatamente recuaram.»

Sobchak parecia inspirar em Putin um nível de lealdade nunca mais visto ao longo da sua vida. Quando o presidente da Câmara perdeu a reeleição, Vladimir Putin preferiu ficar desempregado a trabalhar para o sucessor. Quando mais tarde Sobchak começou a ser investigado pela procuradoria-geral, Putin arriscou a sua posição dentro da administração Ieltsin para ajudar Sobchak a sair do país. Quando o político russo morreu, em fevereiro de 2000, o à altura primeiro-ministro foi ao seu funeral e chorou em público.

Outro funeral ilustra as possíveis razões pelas quais Sobchak escolheu um antigo agente do KGB para trabalhar consigo – e como este lhe estaria grato pela proteção que Sobchak sempre lhe concedeu. Estamos a 27 de setembro de 2004 e o parque de estacionamento perto da Catedral Príncipe Vladimir, em São Petersburgo, está cheio. As estradas em volta estão cortadas e o funeral decorre sob apertadas medidas de vigilância da polícia. Muitos dos convidados, rodeados de seguranças, vêm em carros com matrículas do governo.

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Viktor Zolotov, chefe da Guarda Nacional e desde sempre um homem de confiança do aparelho de segurança de Putin

SPUTNIK/AFP via Getty Images

Entre eles estão representantes da Câmara, membros do Ministério do Interior, agentes do FSB e alguns dos líderes mais conhecidos da máfia russa. Um dos presentes mais destacados é Viktor Zolotov – nada menos do que o guarda-costas de sempre do Presidente, conhecido como «A Sombra de Putin». É Zolotov quem faz o elogio fúnebre final, antes de o caixão ser enterrado ao lado dos marinheiros do desastre do Kursk, ao som de uma salva de três tiros.

O morto é Roman Tsepov, conhecido como «O Produtor». Foi durante anos sócio de Zolotov na Baltik-Eskort, empresa que prestava serviços de segurança em São Petersburgo, inclusivamente ao presidente Sobchak. A sede da empresa fica no mesmo prédio onde viveu durante anos Svetlana Krivonogikh, antiga amante de Putin da década de 90 e mãe da sua filha Luisa Rozova.

Tsepov morreu subitamente, depois de um almoço com agentes do FSB. A autópsia confirmou que ingeriu grandes quantidades de uma substância usada para tratar leucemia, muito embora «O Produtor» não tivesse cancro. Apesar das suspeitas, nunca se provou que tivesse sido envenenado. Mas, em São Petersburgo, ninguém parecia ter dúvidas sobre isso. A única dúvida que pairava era se o autor do homicídio pertencia às forças do Estado ou à máfia, com quem Tsepov sempre manteve bons contactos. «Toda a gente sabia que os seus assassinos estiveram presentes no funeral»resumiu o jornalista russo Arkadiĭ Vaksberg.

Mas como se explica que o guarda-costas do Presidente e vários membros de agências do Estado estivessem presentes num funeral ao lado de mafiosos encartados? Essa é uma história que remonta à década de 90, quando São Petersburgo era uma cidade sem regras. No rescaldo do fim da União Soviética, com uma economia desfeita, o ambiente era de caos. As discotecas e a prostituição andavam a par e passo com a chantagem, os tiroteios e os assassinatos a soldo. E a máfia rapidamente passou a dominar a cidade.

Franz Sedelmayer é alemão e tentou entrar na cidade como empresário, vendendo armamento à polícia local. Quando conversámos, recordou como, naqueles anos, contornar as regras era a única lei – fosse para os mafiosos, fosse para o cidadão comum. «O ambiente era um pouco de anarquia. As pessoas não queriam respeitar a lei e não queriam novas leis. Queriam liberdade. Estavam dispostas a experimentar coisas novas», disse. «Para os que ali viviam e para mim, acabado de chegar, era um mundo novo. Fiquei completamente surpreendido pelo que encontrei. Esperava encontrar uma sociedade restritiva e cheguei a um lugar que só posso comparar a Berlim depois da queda do Muro.» A Baltik-Eskort ilustrava essa zona cinzenta onde as leis significavam pouco. Como agência de segurança privada, foi uma das primeiras na cidade a receber licenças de porte de arma. Tsepov tinha um papel oficial que impedia o seu carro de ser revistado pelas autoridades e vários dos seus empregados conduziam veículos com sirenes e luzes semelhantes às da polícia. Durante a violenta década de 90, nunca nenhum dos clientes do «Produtor» morreu, nota o historiador Yuri Felshtinsky. «Na maioria das vezes, Tsepov estava ao ataque e não à defesa», explica, destacando os seus laços ao grupo mafioso Tambov.

Oficialmente, o vice-presidente da Câmara era responsável pelas Relações Exteriores. Mas na sombra, era o elo de ligação entre o poder político e o crime organizado.

A máfia estava por toda a cidade e escondia-se nos sítios mais insuspeitos. Um deles era uma loja de antiguidades nas traseiras de um bar, que tinha sido aberta ainda durante o tempo da União Soviética – ilegalmente, é claro. O dono chamava-se Ilya Traber. Mas era a alcunha de «Antikvar» («Antiquário» em russo) que realmente provocava calafrios um pouco por toda a cidade. Traber começou por fazer contrabando de antiguidades, mas não consta que alguma vez tivesse sido perseguido pela polícia. E era um dos líderes do Tambov, que estava por trás de assassinatos e lavagem de dinheiro.

Ainda assim, entre os seus clientes, estavam o próprio presidente da Câmara, Anatoly Sobchak, e a mulher. E recebia muitas vezes a visita de um homem que começava a ser conhecido por toda a cidade. Esse homem era Vladimir Putin, garante um dos antigos guarda-costas do «Antiquário».

Oficialmente, o vice-presidente da Câmara era responsável pelas Relações Exteriores. Mas na sombra, era o elo de ligação entre o poder político e o crime organizado. E, assim, os interesses de Traber cresceram muito para além das relíquias do passado. Estenderam-se à gestão do porto da cidade e do terminal petrolífero. Tudo com licenças passadas pelo próprio Putin, a partir do seu gabinete no edifício da Câmara, cuja sala de espera era controlada por Igor Sechin (o homem que viria a tornar-se no «Darth Vader» do Kremlin). 116

Logo no verão de 1992, o comité controlado por Putin na autarquia registou uma empresa russo-alemã conhecida como «St Petersburg Immobilien Aktiengesellschaft» (SPAG), que viria a ser investigada mais tarde por Berlim – os procuradores suspeitavam que o grupo Tambov usava a empresa para lavar dinheiro. Vladimir Putin fez durante anos parte do conselho consultivo da SPAG.

E é também nesse ano de 1992 que rebenta um escândalo que alimenta as suspeitas de que Putin possa ter estado envolvido em atividades ilícitas e de favorecimento da máfia. A presidente da Assembleia Municipal de São Petersburgo, Marina Salye, apresenta um relatório altamente danoso para o vice-presidente da Câmara: nele, acusa Putin de ter facilitado um esquema que favoreceu indivíduos e prejudicou a população da cidade.

Tudo remontava ao ano anterior, quando São Petersburgo tinha enfrentado uma grave crise de escassez alimentar. A Câmara criara um programa com privados para resolver o problema: vendia-lhes matérias-primas como madeira e metal e usava este dinheiro para comprar alimentos. As encomendas já estavam feitas, assegurou Putin em frente às câmaras no documentário Vlast: «Manteiga: 2000 toneladas. Leite em pó: 2000 toneladas. Isto cobre as nossas necessidades. Vou ser honesto consigo, isto é muito impressionante», gabava-se um jovem Putin, engravatado, ao cineasta. Só que, no ano seguinte, o «relatório Salye» provaria que os alimentos nunca chegaram a São Petersburgo. A venda das matérias-primas aos privados, contudo, tinha sido assegurada em negócios vantajosos assinados pelo vice-presidente. Os deputados pediram a demissão de Putin, mas Sobchak não acedeu.

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Mulher de Sobchak descreveria Putin anos mais tarde como uma espécie de «relações públicas» da autarquia com os grupos criminosos

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Franz Sedelmayer comentou comigo que não tem dúvidas de que havia corrupção na autarquia naqueles primeiros anos da década de 90. Mas não está assim tão certo de que quem era favorecido com isso era Putin. «Ele estava basicamente a cumprir ordens do presidente. Não tinha nenhuma iniciativa, o presidente é que beneficiava com aquilo», afirmou. «Putin era o seu fixer, a pessoa que organizava tudo. Mas beneficiava com isso? Não, financeiramente não.»

O ex-ativista Vladimir Gelman contou-me uma história que crê ilustrar como Sobchak não era um tipo tão recomendável como queria fazer parecer em público: a do único encontro privado que teve com ele, quando este estava na liderança da Câmara. «Entrei no gabinete dele e ouvi-o fazer um discurso interminável, como se estivesse a falar para centenas de pessoas», disse. «Quando acabou, fiz-lhe uma pergunta: “Como é que avalia a situação democrática da cidade?” E a resposta dele foi ao mesmo tempo muito sincera e muito cínica: “Nós já estamos no poder. Isso é a democracia”. Saí do gabinete sem sequer me despedir dele.»

Nem todos consideram, porém, que as falhas morais de Sobchak ilibam totalmente Putin de responsabilidades. Vladimir Ashurkov, ex-banqueiro e atualmente diretor da fundação anti-corrupção de Alexei Navalny, acha que o líder russo foi hábil a esconder ao longo dos anos o que realmente se passou em São Petersburgo: «Houve muito esforço por parte de Putin e dos seus comparsas para eliminar estas provas, não é fácil obtê-las. Mas, para mim, é um facto: muitos empresários russos que operavam nos anos 90, senão todos, tinham algum tipo de contacto com o crime organizado. Porque este era o ambiente em que se tinha de operar. E Putin estava no meio de vários negócios na segunda maior cidade da Rússia, São Petersburgo. Portanto estava muito envolvido nesta rede de negócios, corrupção e crime.»

Anos mais tarde, a mulher do presidente da Câmara clarificaria: Putin tinha sido uma espécie de «relações públicas» da autarquia com os grupos criminosos. Pelo menos – garante Lyudmila Narusova – numa ocasião. Para preparar os Jogos da Boa Vontade, o vice-presidente teve de negociar com a máfia para garantir que nada iria perturbar um evento tão importante para a cidade. Nessa altura, notou o amigo «Violoncelista», Putin trazia sempre consigo uma pressão de ar. «Achas que é isso que te vai salvar?», perguntou-lhe Sergei Roldugin. «Não me vai salvar, mas faz-me sentir mais seguro», terá respondido o amigo.

Dizem que Ilya Traber ainda hoje é amigo de Putin. O certo é que, já depois da chegada de Vladimir ao Kremlin, há quem garanta ter visto o «Antiquário» em pelo menos duas festas de aniversário do Presidente, em 2004 e em 2016. A fonte, que falou ao site russo The Insider, diz que em ambas as festas o chefe da máfia recebeu «umas calorosas boas-vindas».

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