Ângelo Fernandes é o rosto — e o fundador — da Quebrar O Silêncio, a primeira associação em Portugal dedicada ao apoio de homens e rapazes que foram vítimas (e “sobreviventes”) de violência sexual. O livro que agora lança, e de que o Observador pré-publica um excerto, nasce de um sentido de urgência: o de sensibilizar pais, mães e cuidadores de crianças e adolescentes para o silêncio que muitas vezes encobre um crime de violência sexual. E para dotá-los das “ferramentas” que o autor considera fundamentais para que possam prevenir-se, desde logo, mas também detetar e agir.
Ao longo de cerca de 30 capítulos, Ângelo Fernandes clarifica conceitos e desconstrói ideias sobre a violência sexual praticada contra menores, explica como e por que razões se formam muros de silêncio que acabam por impedir as vítimas de denunciar os abusos que sofreram e abre o caminho para que, no final das pouco mais de 200 páginas, os cuidadores estejam mais (bem) informados e preparados.
Como apoio, no final de cada subcapítulo, o autor apresenta uma pequena lista “em resumo” das principais ideias com que o leitor acabou de ser confrontado.
O livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças”, editado pela Pergaminho, chega às livrarias esta sexta-feira.
Quando pergunto aos pais e às mães por que razão chamam «pilinha» ao pénis e «pipi» à vagina, a resposta costuma ser: «Porque é mais fácil.» Quando questiono para quem é que é mais fácil, revelam: «Para nós, os pais.» A verdade é que a identificação e a nomeação correta dos órgãos genitais é complicada para nós, adultos. As crianças aprendem aquilo que lhes ensinamos. Costumo dizer que se na escola aprendem, por exemplo, os verbos irregulares ou a divisão longa, então creio que podemos tranquilamente ensinar-lhes os nomes corretos da genitália. A identificação e nomeação correta dos órgãos sexuais pode ajudar uma criança a ter mais ferramentas para a prevenção ou para a partilha de um caso de violência sexual. Recordo‑me de um caso em que uma menina era abusada por um familiar e referiu na escola que o tio tinha mexido na sua bolacha. A professora recebeu com naturalidade esta partilha e no meio de tantas outras e da azáfama do dia-a-dia não prestou grande atenção. Após algum tempo, a docente apercebeu‑se de que em casa daquela aluna usavam a palavra «bolacha» para se referirem à vagina. Foi nesse momento que compreendeu o verdadeiro significado da outra partilha. Este é um exemplo que evidencia bem a necessidade de as crianças saberem identificar e nomear corretamente a genitália. Se na primeira ocasião a menina tivesse dito que o tio havia tocado na sua vagina, duvido que a partilha passasse despercebida.
Do mesmo modo que a criança aprende o nome dos pés, mãos, coração, pulmões, deverá aprender com a mesma naturalidade termos como pénis, testículos, vagina e vulva. Quando falamos de modo diferente sobre partes do corpo que consideramos «complicadas», estamos a transmitir o nosso desconforto e também a dar a entender que há zonas do corpo que são tabu, e não é isso que se pretende. Temas e tópicos tabus podem criar vulnerabilidades que, por sua vez, podem vir a ser exploradas por abusadores. O objetivo de mães, pais e pessoas cuidadoras é criar crianças informadas e conscientes do seu corpo e dos seus direitos. Como refere a sexóloga Vânia Beliz nas suas formações, não deixa de ser curioso que mesmo quando se ensina a criança a dizer «pipi», «pilinha», «popó» e «memé», a certa altura o «popó» e o «memé» são atualizados e passam a ser «carro» e «ovelha», mas o mesmo não acontece com o pénis e a vagina. O uso destes termos infantilizantes cria uma aura de fantasia e contribui para a desinformação sobre estas zonas do corpo, promovendo a ignorância sobre elas. Não se esqueça de que um abusador aproveitará todas as oportunidades para conquistar a criança e certamente irá explorar a sua ignorância sobre o corpo e a genitália, especialmente se forem temas tabu.
É certo que, como por vezes dizem os pais e as mães, é complicado fazer esta nomeação correta porque, por exemplo, no pré‑escolar a educadora usa «pipi» e «pilinha», e não querem confundir a criança. Mas a verdade é que as crianças sabem navegar nos diferentes contextos e percebem que em cada um deles há diferentes regras. Por exemplo, sabem que na sua casa têm de comer primeiro a sopa e só depois o prato principal, mas em casa dos avós, com o «choradinho» certo, podem não comer a sopa e se calhar até conseguem uma bela sobremesa, a que na sua casa não teriam acesso. Elas reconhecem essas diferenças e agem de acordo com elas. Nesse sentido, as mães, os pais e as pessoas cuidadoras podem explicar que os nomes corretos para os genitais são «pénis» e «vagina», mas que na escola, por exemplo, a professora usa outros nomes. Todavia, em casa e noutros contextos, como em consultas médicas, serão usados os termos certos.
Aproveite este exercício de identificação e nomeação correta para reforçar os cuidados a ter com as diferentes partes do corpo.
Do mesmo modo que ensinamos a importância de tomar banho, lavar os dentes e cortar as unhas, também devemos incluir os cuidados com os genitais. Há pais e mães que aproveitam a época balnear, nomeadamente o uso de fatos de banho e calções de praia, para exemplificar a importância de proteger essas mesmas regiões. Há quem refira que são as zonas especiais do corpo; pessoalmente prefiro dizer partes íntimas ou privadas. O importante é que a criança identifique que essas são partes que devem ser protegidas e em que circunstâncias os adultos de referência podem tocar nelas e porquê. Lembre-se do exercício do corpo e das suas fronteiras: pode usar esta ideia para explicar à criança uma vez mais a importância de respeitar o limite do corpo dos outros e esperar o mesmo relativamente ao seu.
Em resumo:
- Ensine à criança o nome correto de todas as partes do corpo.
- Não faça das partes íntimas e da genitália um tabu.
- Reforce os cuidados a ter com as diferentes partes do corpo.