“Porque é que anda a brincar? Onde estão os contratos?” Não é comum ver o Presidente russo enervado, uma vez que Vladimir Putin raramente mostra emoções em público. Foi por isso surpreendente que tivesse perdido as estribeiras com Denis Manturov, vice-primeiro-ministro e ministro do Comércio e da Indústria — a videoconferência foi gravada e divulgada recentemente pelos meios de comunicação russos. “Então? Quando é que isto fica fechado? Não estou a ver contratos nenhuns”, insistiu o chefe de Estado russo, que sugeriu “terminar a reunião” no imediato.
O momento, lido como uma demonstração de força, poderá até ter sido previamente ensaiado e não ocorrido de forma espontânea. É isso que considera o professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa e diretor do OBSERVAR, Luís Tomé: “Não me parece muito relevante, faz parte da coreografia”. O especialista também realça que este episódio está integrado numa “estratégia” de Vladimir Putin para “responsabilizar membros do governo pelas falhas seja em que aspeto for”.
Já Liliana Reis, diretora do curso de Relações Internacionais da Universidade Lusófona, afirma, em declarações ao Observador, que o momento captado “vem na sequência” de, “desde o final do verão, [haver] alguma contestação interna à liderança de Vladimir Putin” — e isso ser uma maneira de se afirmar perante outros membros do Kremlin.
A docente universitária salienta que esta contestação ao poder do Presidente russo está “sobretudo dentro do Kremlin” e tem como origem “o insucesso militar” no conflito da Ucrânia. Além disso, Liliana Reis destaca que as críticas a Vladimir Putin não se ficam apenas pelos corredores da presidência russa, visto que a sociedade já mostrou igualmente alguns sinais de insatisfação, principalmente após o anúncio da mobilização parcial em setembro.
Tendo em conta estas circunstâncias e estas demonstrações de poder que Vladimir Putin tem realizado em resposta a esta contestação interna e consequente perda de autoridade, até onde o chefe de Estado russo pode esticar a corda? Pode criar anticorpos suficientes para ser deposto e eventualmente sair da presidência russa por via desta perda de poder? E quem podem ser os seus principais adversários?
Existe risco de insurreição no Kremlin?
Vladimir Putin assumiu as rédeas do poder no ano 2000 e, até ao momento, foram poucos os seus opositores. Todos aqueles que se atreveram a desafiá-lo acabaram no exílio, presos (como aconteceu com Alexei Navalny) ou mesmo mortos. O medo das represálias serve como uma forma de dissuadir um possível dissidente a insurgir-se contra o Presidente da Rússia. “Os opositores que estão na Rússia acabam presos, ou não têm margem para qualquer oposição, pois acabam eliminados ou com a reputação destruída pelos canais de informação russos”, frisa Luís Tomé.
A repressão é um dos métodos, mas o chefe de Estado da Rússia também tem outros para conseguir se manter no poder sem grande contestação. Ao Observador, Mikhail Troitskiy, analista de Assuntos Internacionais, natural de Moscovo, descreve que “Putin se mantém no poder por desempenhar o papel de árbitro supremo dentro da fação dominante. De certa forma, ele está no centro de uma teia e consegue controlá-la na maior parte das vezes”.
“Putin pode argumentar que é o único líder legítimo que foi eleito para o cargo de Presidente, se bem que as eleições russas não sejam confiáveis devido às irregularidades existentes”, completa o analista russo, que também sinaliza que o líder russo “comanda um grande número de guarda-costas que garantem a sua segurança pessoal e que vigiam outros membros do seu governo”.
Esta importância da segurança concedida pelo Presidente russo leva a que um “ataque contra Putin seja uma missão extremamente arriscada”. Não só do ponto de vista prático é difícil colocar em marcha um possível golpe de Estado; também o é em termos políticos, aclara Mikhail Troitskiy: “Quem viesse a seguir [a Putin] teria de reivindicar pelo menos alguma legitimidade entre o povo russo, o que é muito difícil de obter numa situação de completa degradação das instituições políticas da Rússia”.
Liliana Reis, por outro lado, reconhece que um regime autocrático “como o russo tem mais mais facilidade em controlar a opinião pública”, mas enfatiza que “não deixa de ser verdade que, depois de dez meses de guerra, começa a ser mais difícil afastar todo o tipo de contestação”. Deste modo, embora possua o controlo total da segurança e possa dar as reprimendas e enfrentar outros membros do Kremlin, a corda pode ainda romper.
Esta hipótese é, ainda assim, difícil de acontecer e não pode contar, segundo Mikhail Troitskiy, “apenas com um dissidente”. “Terá de ser um grupo de membros da elite dominante a desafiá-lo”, diz o analista russo, acrescentando que esses dirigentes “têm de ser capazes de se coordenar entre si e ter determinação suficiente para ir até ao fim” — caso o objetivo for mesmo colocar Putin fora de jogo.
Mikhail Troitskiy constata que uma conspiração deste género “teria de requerer a confiança total de todos os dissidentes”, algo que, neste momento, é “complicado” — o especialista lembra que “todos os potenciais desafiadores de Putin devem muito ao Presidente russo”, que é a personalidade que está no centro e que controla uma complexa rede de trocas de favores.
Assim sendo, o analista russo acredita que Vladimir Putin continuará, pelo menos num futuro próximo, a ter margem de manobra suficiente para promover e despromover quem quiser ou até perder as estribeiras com quem quiser sem que lhe aconteça nada. Em redor da figura do chefe de Estado, convergem inúmeros interesses e possivelmente Vladimir Putin disporá de algum trunfo capaz de evitar uma possível vingança.
Por muito reduzida que seja, Mikhail Troitskiy assinala, não obstante, que existe uma hipótese de Vladimir Putin ser obrigado a sair da presidência: se o Presidente russo cometer um “erro clamoroso”, ou então se houver “uma demonstração total de um fracasso” da sua liderança. “Pode resultar num sério desafio ao seu poder”, garante.
Mesmo nesse cenário, o especialista em assuntos internacionais russo destaca que a tal união desse grupo do Kremlin — que diz ser fundamental — seria difícil de alcançar. Cada um desses dirigentes tentaria obter o cargo de Presidente e não daria espaço a apenas um caminho. “É provável que existissem vários grupos a desafiar Putin e também esses grupos desafiar-se-iam uns aos outros simultaneamente”, indica Mikhail Troitskiy, vaticinando que o poder estaria, nestas circunstâncias, “muito disperso”.
Também no entender de Luís Tomé, seria muito difícil assistir a uma revolta contra o Presidente russo levada a cabo pelos membros mais contestatários do Kremlin. Lembrando o “puxão de orelhas” ao vice-primeiro-ministro, o docente universitário reforça que Vladimir Putin “nunca é o responsável pelo que corre mal”, encontrando bodes expiatórios para quem direciona a responsabilidade. “Putin tem procurado fazer este jogo com sucesso, não me parece que o regime esteja em perigo.”
Distinguindo entre quem está ou não na Rússia, Luís Tomé sinaliza que os primeiros não “têm qualquer margem” para conseguirem orquestrar um golpe de Estado. “Os partidos políticos da oposição são satélites do Rússia Unida [partido de Putin], inclusivamente o Partido Comunista e o partido de extrema-direita [Partido Liberal Democrata da Rússia]”, aponta o professor da Universidade Autónoma.
Adicionalmente, Luís Tomé também não acredita que uma insurreição possa partir da população russa que, diz, “tem mais receio do caos que possa originar uma figura forte e alternativa”, antevendo que, caso Vladimir Putin morra “subitamente” (de forma natural), possa haver conflitos entre os seus possíveis sucessores. “Não é líquido quem vai impor-se aos de mais, não se vê ninguém com capacidade e força para o fazer.”
Relativamente aos opositores que não estão na Rússia, o professor universitário de Relações Internacionais acredita que ainda mais difícil é levar a cabo um golpe de Estado, devido aos entraves associados à distância.
Mas há alguém que possa organizar um golpe de Estado?
Uma insurreição necessita sempre de alguém que seja capaz de dar o tiro de partida e que funcione como líder que promove a coesão de um grupo de dissidentes. Neste momento, ninguém parece querer tornar-se o inimigo número um (e por conseguinte o principal alvo) de Vladimir Putin, acreditam os especialistas ouvidos pelo Observador. “E não há ninguém com um perfil aglutinador”, acrescenta Mikhail Troitskiy. Isto, em janeiro de 2023. Mas o futuro poderá dar um empurrão a uma figura cujo mediatismo e reputação têm aumentado com a guerra na Ucrânia: o líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin.
De acordo com Liliana Reis, o ex-cozinheiro de Vladimir Putin tem “vindo a assumir um protagonismo que não é de todo do interesse do Kremlin — que não quer fragilizar a figura do Presidente nem de outras elites político-militares”.
O Presidente russo parece adivinhar que o líder do grupo Wagner, com o qual mantém (pelo que é público) uma relação de amizade desde os tempos em que era seu cozinheiro, poderá ser um adversário no futuro. Assim sendo, reestruturou a sua chefia militar — e afastou o comandante das tropas na Ucrânia, Sergei Surovikin, que era visto com bons olhos por Yevgeny Prigozhin. Para o seu lugar, nomeou o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Valeri Gerassimov, do círculo mais restrito de Vladimir Putin.
Esta substituição pode “antecipar uma grande ofensiva” da Rússia em território ucraniano, considera Liliana Reis, que sublinha, no entanto, que o objetivo principal é “ir ao encontro do que têm sido as maiores vulnerabilidades desta guerra e do próprio Vladimir Putin: a contestação às suas opções políticas e militares”. É, desta forma, uma maneira de tentar calar os críticos, tendo ainda na mira Prigozhin. “Esta decisão tem uma importância estratégica, já que permitirá agregar as conquistas e os sucessos que o exército russo venha a ter em torno do Kremlin e não do grupo Wagner”, sustenta a professora universitária.
Com a alteração na hierarquia militar, Vladimir Putin também quererá escudar o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, das críticas que lhe têm sido endereçadas, principalmente pela parte de Yevgeny Prigozhin. “Neste momento, a figura de Gerassimov é muito mais consensual — é reconhecido não apenas na Rússia, mas também no Ocidente com a ideia de guerra híbrida”, aponta Liliana Reis, que adjetiva como “fundamental” não apenas apresentar à opinião pública russa que o conflito pode ser “ganho”, como também conceder “unidade e coesão” às forças russas.
Quem é que Putin já despediu?
O vice-primeiro-ministro Denis Manturov não foi o único alvo da fúria de Vladimir Putin. Nos últimos meses, o Presidente russo terá mexido na hierarquia dos serviços de informações: o general Sergei Beseda foi substituído por Vladimir Alekseyev, após alegadamente ter falhado a missão de assassinar o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
Na hierarquia militar, o Presidente russo já realizou várias mudanças desde o início da guerra na Ucrânia. Após a resistência ucraniana nos primeiros dois meses de invasão, Aleksandr Dvornikov foi nomeado, em abril, como comandante-geral das tropas russas na Ucrânia. Esteve três meses no cargo e foi substituído por Gennady Zhidko, que também viria a ser substituído, em outubro, por Sergei Surovikin. Este último deu lugar a Valeri Gerassimov em janeiro de 2023.
Sobre o futuro das altas patentes e se haverá modificações, o Presidente russo poderá enfrentar um problema, indica Liliana Reis: “Para o topo da pirâmide, não me parece que Putin tenha disponíveis generais, pelo menos do ponto de vista intelectual, capazes de assumir o cargo”.
Contudo, o chefe de Estado russo será obrigado a avaliar o desempenho do seu atual comandante na Ucrânia. Dependerá, deste modo, daquilo que serão os objetivos delineados e se serão cumpridos. De qualquer modo, Vladimir Putin possui, por enquanto, autoridade para decidir o que lhe aprouver, mas é provável que, a cada mudança, essa autoridade vá ficando mais desgastada.