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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Dentro do posto de comando da Proteção Civil: "Quando o planeamento falha, temos de o assumir"

Em Travanca, o Centro Tático de Comando da Proteção Civil gere quatro frentes significativas. Para este grupo, enviar bombeiros para uma possível morte é a maior fonte de stress.

Na sala de planeamento do Centro Tático de Comando da Proteção Civil — ou “sala do silêncio”, como lhe chama o 2.º Comandante Mário Silvestre — as chamas não ardem, o fogo não queima e os gritos de desespero dos moradores não se fazem ouvir. Mas é a responsabilidade de tomar decisões que acaba por pesar. Depois de três dias de incêndios, e com pelo menos sete mortes a registar, esse peso torna-se quase incomportável para os homens que compõem este posto de comando, que admitem que parte do que foi sendo planeado falhou nos últimos dias.

Os operacionais aqui presentes lidam há vários anos com este tipo de situações, alguns mesmo há décadas. Na pequena sala onde tudo acontece, e a que o Observador teve acesso exclusivo, está Mário Silvestre, responsável máximo da missão, apoiado por dois coordenadores, dois oficiais de logística, dois oficiais de planeamento e outros dois oficiais de operações, além de um operador da Autoridade Nacional de Proteção Civil. Juntos, tratam de pensar a curto, médio e longo prazo: devem prever a evolução dos fogos com várias horas de antecedência — neste incêndio, chegaram a pedir à GNR a evacuação de algumas aldeias mais de oito horas antes de as chamas estarem já demasiado próximas —, distribuir eficientemente os meios (que nem sempre chegam) por cada ocorrência, e gerir cada situação em direto, tomando as decisões que sejam necessárias em cada momento.

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“Aqui, vive-se a ansiedade de pensar: ‘Aquilo que planeei vai ou não funcionar?’”, explica o comandante Mário Silvestre, sublinhando que, quando as coisas não funcionam, muitas vezes é preciso começar do zero. “Só hoje, já vamos no sétimo planeamento — no meio disto, refizemos 50 mil objetivos”, refere. Ao fundo da sala, Salvador Cancela, coordenador do posto de comando, acrescenta: “Quando o planeamento falha, normalmente é porque o nosso objetivo falhou. E temos de o assumir.” Os oficiais assumem que os planos iniciais são sempre os primeiros a falhar, mas sem uma estratégia bem delineada, garantem, qualquer operação está condenada à tragédia.

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"Se morrer um deles, como infelizmente já aconteceu… Se se prova que eu estava completamente errado porque retirei 50 homens de uma frente onde as coisas pareciam estar a correr bem… é a nossa principal condição de stress”

Desde segunda-feira, sete pessoas morreram nos fogos, entre civis e bombeiros. Algumas delas perderam a vida na zona gerida pelo CETAC — concretamente, a região que envolve os concelhos de Oliveira de Azeméis, Sever do Vouga, Albergaria-a-Velha e Águeda. Para esta equipa, todas as mortes custam e são fator de stress redobrado, especialmente quando as vítimas são “camaradas e irmãos de armas”. “Todos sofremos com isto”, lamenta o Comandante Silvestre, “é um misto de sentimento de frustração e revolta”. “O ambiente entre nós fica pesado”, descreve, “mas temos de honrar os que caíram e ao mesmo tempo temos uma missão para cumprir: continuar a salvar vidas.”

Mesmo com essa motivação extra de encontrar novas soluções para evitar novas tragédias, o assunto assombra as mentes destes decisores. “Neste caso, estou a direcionar 1.389 operacionais para a esquerda, para a direita, para trás e para a frente. E, se morrer um deles, como infelizmente já aconteceu… Se se prova que eu estava completamente errado porque retirei 50 homens de uma frente onde as coisas pareciam estar a correr bem… é a nossa principal condição de stress.”

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Mas é preciso contrabalançar as emoções com o cérebro. Apesar do sentimento de culpa, que parece ser inerente ao cargo de quem envia outros para desafiar a própria morte, Mário Silvestre lembra que é preciso encontrar equilíbrio para “gerir a preocupação máxima com os operacionais e a preocupação máxima com as pessoas que devem ser salvaguardadas”. “O limite é difícil de gerir”, e leva muitas vezes os homens no terreno a trabalhar além das suas capacidades físicas e psicológicas. “Sabemos que estamos a exigir para além do que devíamos. Estamos a pedir mais um bocadinho a pessoas que já deviam estar a dormir há oito ou nove horas”. Na segunda noite do incêndio, foi isso mesmo que aconteceu, admite. Os membros de uma equipa da Força Especial da Proteção Civil foram mandados recolher para descansar, mas no caminho de volta foi-lhes pedido que regressassem para combater as chamas. “Devo-lhes um enorme pedido de desculpas, isto não devia acontecer”, garante o comandante, mas não sem ressalvar que a equipa voltou ao trabalho com “dever de cidadania e de cumprimento”.

“Eu costumo dizer que nós somos o guarda-redes do sistema. Defendemos inúmeros remates à baliza durante o ano inteiro, mas temos este período em que infelizmente sofremos golos”

Mesmo admitindo falhas, Mário Silvestre deixa uma analogia futebolística para defender o papel das autoridades: “Costumo dizer que somos o guarda-redes do sistema. Defendemos inúmeros remates à baliza durante o ano inteiro, mas temos este período em que infelizmente sofremos golos”. No fundo, o comandante sublinha que é fácil apontar o dedo às autoridades durante a fase mais crítica dos incêndios, mas durante o ano, quando se pede o repensar das regras de proteção e defesa da floresta, acabam por ser ignorados. “Se olharmos para Portugal, as condições meteorológicas eram muito idênticas no país todo [à data dos incêndios], mas só do Centro para cima é que ardeu. É quase um caso de estudo”, ironiza.

Os fatores de stress não ficam por aqui, e as razões para o falhanço em algumas situações encontram-se também no escasso tempo de organização destas situações de emergência. “Pensem em grandes eventos, grandes operações”, atira David Lobato, coordenador da equipa e comandante sub-regional do Médio Tejo. “Em concertos, jogos de futebol, festivais, até a Jornada Mundial da Juventude. Alguns tiveram meses ou anos para se prepararem. Nós temos minutos. Quando partimos para a operação estamos já a correr atrás do prejuízo. O mal está feito.”

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Em grandes televisões ou em quadros à moda antiga, a informação é atualizada ao minuto

Ao longo da noite, os telefones tocam incessantemente, as portas abrem e fecham, enquanto novas informações do terreno chegam sem aviso. À volta da sala onde são comandados algumas das principais frentes dos incêndios que assolaram o centro e norte de Portugal na última semana, a equipa tem muito com que se ocupar. Ao fundo da mesa, duas televisões mostram mapas da área ardida nas frentes monitorizadas. Lá, estão projetadas informações atualizadas ao minuto, que permitem perceber a situação de cada fogo – simbolizado com a cor preta, se estiver extinto; a amarelo, se estiver ativo; e a vermelho, se se encontrar em estado crítico. Além disso, outro ecrã dá acesso a uma série de câmaras espalhadas por todo o território nacional, que permitem precisar com exatidão a localização de cada novo incêndio. Num último ecrã, está espelhada a chamada “fita do tempo”, que funciona como uma ata de todas as decisões tomadas desde que o posto de comando se instalou perto de Oliveira de Azeméis, no início da semana.

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Na luta contra os desastres naturais, estas são novas ferramentas de combate. Muita da tecnologia usada neste posto de comando não existia, por exemplo, em 2017, nos incêndios de Pedrógão Grande. Uma das novidades é uma funcionalidade do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, não acessível ao cidadão comum, que permite fazer um estudo meteorológico das condições em pontos específicos de incêndio. Ou seja, a equipa pode pedir dados avançados sobre a temperatura nessa zona em concreto, além de outros fatores como a evolução esperada da velocidade do vento ou a direção média das rajadas que se vão sentir nas horas seguintes.

“Olha, Castro Daire está a arder bem”, comenta já ao final da noite desta quarta-feira um dos oficiais, dando conta das imagens que chegam de um dos principais canais de informação. É que, além dos quatro grandes ecrãs centrais, a parede tem espaço para outras seis televisões, sintonizadas em diferentes canais informativos. Em alguns casos, o trabalho dos jornalistas ajuda também a ter informações em tempo real sobre o terreno – foi através de um direto televisivo que o posto de comando teve confirmação que o grupo de bombeiros enviado para a região de Cumeada estava a ter sucesso no combate às chamas, por exemplo. Por outro lado, há também espaço a críticas para o papel da comunicação social no acompanhamento dos fogos, especialmente para o tom alarmante que certas peças jornalísticas transmitem. “Estas imagens têm 14 horas”, comenta-se na sala, enquanto um canal de televisão passa vídeos do fogo descontrolado nos incêndios de Gondomar quando, na altura desta reportagem, a ocorrência já estava em resolução.

Mas nem tudo é digital. As paredes que rodeiam a sala estão preenchidas por apontamentos a caneta. O objetivo? Salvaguardar todas as informações cruciais que se podem perder, por exemplo, em caso de falhas de energia ou ataques informáticos. Por isso mesmo, estão expostos formulários sobre cada uma das quatro frentes do complexo de incêndios, que se podem ir apagando e reescrevendo à medida que novos desenvolvimentos chegam. Há também indicações sobre o local onde os operacionais podem e devem dormir, quando trocam de turnos, tomar banho ou abastecer combustível. Mais perto do local onde se senta a Comandante Oriana Brás, há um gráfico que contabiliza as “calinadas” da oficial de logística. “É uma maneira de descomprimirmos”, explica. À hora em que este artigo é escrito, a comandante já vai em sete gafes. Jorge Frazão, oficial de planeamento, considerado o mais pessimista da equipa, acredita que até ao fim dos incêndios a lista vai chegar a uma dezena.

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A esperança de que seja a última noite

Este incêndio no centro e norte do país está ativo há mais de 72 horas e consumiu já milhares de hectares, casas de primeira habitação, armazéns, animais e provocou a morte de sete pessoas.

“Excepcional.” É assim que o grupo operacional adjetiva este incêndio, por várias razões. A primeira é a época do ano, setembro. O comandante Mário Silvestre explica que na primeira noite de incêndio as temperaturas às 2h da madrugada rondavam os 28.º graus e que o vento, seco e extremamente forte, dificultou — e até em alguns casos impossibilitou — o combate direto às chamas. Daí terem adotado a estratégia: primeiro proteger a vida humana, depois as habitações e complexos industriais e só depois se preocupavam com o “mato”.

Na noite desta quarta-feira o ambiente no posto de comando é, apesar de tudo, mais calmo em relação às duas noites anteriores. As previsões são em tudo favoráveis a que todas as quatro frentes de fogo ainda ativas sejam dadas como dominadas ainda durante a madrugada ou manhã desta quinta-feira. As temperaturas baixam, o vento diminui a sua intensidade e todos os homens estão posicionados nos sítios certos para que as chamas não se propaguem e não apanhem as autoridades desprevenidas. “Agora, sim, estamos nós a controlar o fogo”, desabafa o comandante Silvestre.

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Há também um fator muito importante que faz com que estes operacionais estejam confiantes: há previsão de chuva para todo o dia de quinta-feira e é dito em tom de desabafo que, se chover na quinta-feira, “vamos todos, finalmente, para casa amanhã”. Quem o diz é o comandante David Lobato, que se arrisca a roubar Nuno Morgado, oficial de operações, detentor do título de maior otimista do grupo.

Esta noite, de (aparente) maior acalmia no que aos fogos diz respeito, é a mais descontraída desde que o Posto de Comando foi montado, na segunda-feira. Garantindo que todos os meios estão posicionados no local certo, há agora também tempo para olhar para as televisões que estão com emissões quase de 24 horas sobre este incêndio e aumentar o volume para ouvir algumas delas. Num dos momentos em que o fazem é para ouvir, ainda que por breves minutos, o debate entre Eduardo Cabrita, antigo ministro da Administração Interna, e o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses António Nunes. Não tendo havido tempo para jantar é também ali que aproveitam e se vão distribuindo algumas bolachas, momentos que antecedem ao briefing com todas as entidades que constituem a Proteção Civil.

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