Alguns dos familiares dos quatro professores que, segundo a Fenprof, morreram a trabalhar e poderão ter sido vítimas do excesso de trabalho foram apanhados de surpresa pela denúncia da estrutura sindical e estão incomodados com a polémica provocada pela queixa.
Há duas semanas, a Fenprof pediu à Procuradoria Geral da República que investigasse a morte de quatro professores, num alegado contexto de cansaço extremo e burn out. Em conferência de imprensa, Mário Nogueira identificou os casos como sendo de uma professora de Manteigas, que “em plena sala de aula, fulminantemente, caiu para o lado”; outra professora do Fundão, que “estava a corrigir 60 provas aferidas, a lançar as notas dos seus alunos e a fazer vigilâncias de exames”, quando foi encontrada morta “em cima do teclado do computador em pleno lançamento das notas”; e um professor de Odivelas que “enviou por email, cerca da 01h00, os dados pedidos pela escola” e que terá morrido por volta dessa hora, em casa. Mais tarde acabaria por ser tornado público um quarto caso, de uma professora da Escola Básica e Secundária de Fajões, em Oliveira de Azeméis, que morreu recentemente enquanto corrigia testes de avaliação.
Fenprof pede a Ministério Público para averiguar morte repentina de quatro professores em trabalho
A denúncia foi manchete de jornais e causou polémica — entre os que defendem que os casos revelados são exemplos das consequências das más condições de trabalho dos professores e os que viram na queixa nada mais que uma manobra de pressão sobre o Governo —, mas os próprios familiares não terão sido avisados do que iria acontecer. “Não fomos avisados de nada”, diz um deles ao Observador.
Além disso, e apesar da Fenprof não ter revelado o nome dos professores, a identificação dos casos específicos foi imediata e alguns familiares ficaram revoltados com a exposição pública.
O Observador aguarda ainda a resposta da Fenprof.
“Vivia sempre a correr de um lado para o outro”
Uma das professoras tinha 50 anos e dava aulas de história na Escola Secundária Campos Melo, na Covilhã. Morreu em casa enquanto lançava as notas, há um mês.
A responsável pela portaria da escola, que preferiu não ser identificada, ainda guarda a pagela do funeral da professora, realizado a 17 de junho na Capela de Santo António de Fundão. A professora dava aulas ali apenas há um ano, mas a funcionária recorda-se bem de a ver “sempre a correr de um lado para o outro”, a queixar-se do stress e da quantidade de coisas que tinha para fazer, entre reuniões, fotocópias e relatórios.
A escola é grande, tem seis andares e, para chegar de uma ponta a outra, é, segundo a vigilante, necessário percorrer corredores e subir alguns lances de escadas, o que nem sempre se torna uma tarefa fácil, principalmente para professores com mobilidade condicionada. Não era o caso daquela docente, embora a funcionária lhe tivesse notado nos últimos meses “algum excesso de peso”, acabando por alertá-la para isso mesmo. “Esta é a nossa segunda casa, passamos aqui muito tempo, é natural repararmos nestas coisas”, diz.
Junto ao portão encontrámos João Paulo Patrício, professor de informática na Escola Campos Melo há mais de 20 anos. Conheceu a colega também porque era professora de história do seu filho. “Era uma boa colega, simpática, profissional e muito focada”, afirma em entrevista ao Observador. O professor diz não se lhe conheciam problemas de saúde. Explica também que a professora não tinha filhos. “Não deixou filhos, mas deixou sobrinhos”, sublinha.
João Paulo confirma o “excesso de trabalho” sentido por todos os docentes daquela escola nos últimos anos, com turmas que chegam a ter 29 alunos, e critica a falta de apoio e compreensão do Estado. Segundo o professor, a professora estava a corrigir provas de exame referentes ao 9º ano e, por isso, durante esse período — geralmente de 10 dias úteis — teria que estar “por direito” exclusivamente dedicada a isso, ou seja, sem reuniões ou outras tarefas atribuídas. Caberia à direção da escola libertar a sua agenda para esse efeito.
Mário Nogueira, secretário-geral da FENPROF, já tinha adiantando que esta docente do Fundão, “estava a corrigir 60 provas aferidas, a lançar as notas dos seus alunos e a fazer vigilâncias de exames”, acabando por “aparecer morta em cima do teclado do computador em pleno lançamento das notas”. O Observador tentou falar com a direção da escola, que não quis prestar declarações.
Dulce Pinheiro, representante da delegação de Castelo Branco do Sindicato dos Professores, confirmou ao Observador que a professora em causa era associada do sindicato e uma profissional “bastante organizada e muito perfecionista”. “Ela gostava de ter tudo direitinho e isso causava-lhe um fator de stress, principalmente nesta fase final do ano, que é quando existe um acumular de tensões”. A sindicalista afirma que a professora do Fundão encontrava-se realmente a corrigir provas, a lançar notas e a vigiar exames, acumulando tarefas de uma forma excessiva, mas recusa estabelecer uma ligação direta entre a carga de trabalho e a sua morte. “Não posso dizer que exista uma relação causa efeito. Não podemos opinar sobre isso, temos que deixar as entidades competentes avaliar a situação e chegar às devidas conclusões.”
Ao Observador, a Câmara Municipal do Fundão explicou que a professora terá sido vítima de um AVC. Com o marido, a docente era também proprietária da concorrida Tabacaria Henrique, situada nas galerias do Intermarché do Fundão. É ali que, visivelmente abalado, o viúvo diz ao Observador que não quer falar muito sobre o momento delicado pelo qual está a passar. “A FENPROF pode dizer o que quer, mas tudo acaba por cair no esquecimento”, diz. E enquanto “não souber o resultado da autopsia” ao corpo da mulher, prefere não prestar declarações.
Não foi ao médico porque tinha que corrigir testes e acabou por desmaiar na sala de aula
Foi a 14 de março que João Tilly, professor de matemática desde os anos 1980, recebeu uma notícia inesperada. Tinha morrido uma sua antiga colega de profissão no Agrupamento de Escolas de Seia. “Foi um choque, ninguém estava à espera. Não se falou noutra coisa nos dias seguintes”, recorda em entrevista ao Observador.
Entre os colegas, a professora de inglês da Escola EB 2/3 de Manteigas, de 49 anos, era uma pessoa reservada, prestável e meiga. “Tinha um feitio muito dócil, gostava de ensinar e de ajudar toda a gente. Os alunos gostavam imenso dela.” Foram mesmo eles que assistiram aos últimos minutos de vida da professora e lhe contaram como tudo aconteceu. “Ela queixava-se de muitas dores de cabeça e má disposição. Chegou a ir ao médico, mas não tinha tempo para fazer exames ou ir às consultas pela quantidade de serviço que tinha.”
A professora lecionava seis níveis diferentes, do 7.º ao 11.º ano. No dia em que se sentiu mal, acabou por vomitar e desmaiar em plena sala de aula, na presença dos alunos. Segundo João Tilly, foi levada pelo INEM para o Centro de Saúde de Manteigas, onde “o médico demorou uma meia hora a chegar”, mas ao analisá-la percebeu que a situação era grave e por isso enviou-a para o Hospital da Guarda. De lá, os médicos telefonaram para o Hospital de Coimbra e perceberam que não havia vaga para a professora, que chegou já em coma ao Hospital de Viseu, acabando por morrer, vítima de um AVC hemorrágico.
Contactada pelo Observador, uma sobrinha da professora mostrou-se bastante surpreendida pelo facto de o caso ter sido tornado público. “Não fomos notificados de nada”, nem pela FENPROF, nem pela escola e nem pelo Ministério da Educação. A família foi apanhada de surpresa e agora está revoltada com o que se seguiu — por exemplo, com o facto de a fotografia da tia ter sido publicada por alguns jornais sem o consentimento da família. A familiar explica que “muito do que se tem escrito não é verdade” e lamentou que a professora “não esteja cá para se defender”.
João Tilly, antigo colega, sublinha a “pressão constante” exercida sobre os professores em muitas situações diárias, à qual nem todos conseguem resistir. “Na primeira aula os alunos ainda entendem, mas na segunda já ficam revoltados quando o professor não chega com os testes corrigidos”, diz, acrescentando que “três turmas podem corresponder a 70 testes”. O professor de matemática recebe entre 40 a 45 exames para corrigir e conta que “só para traçar os espaços em branco das folhas” demora um dia e gasta uma caneta vermelha.
Outras das criticas do docente é a elevada a burocracia, a que chama mesmo de “papelada inútil”, a que os professores estão sujeitos diariamente, entre correção de provas, atribuição de notas, atas de reuniões e relatórios. Para João Tilly, trata-se de um mecanismo “para dificultar os chumbos dos alunos”. “Antigamente só dava aulas, agora tenho de fazer este trabalho burocrático que é zero pedagógico.”
O Observador quis ouvir a direção da Escola EB 2,3 de Manteigas, que não quis prestar declarações.
Saiu da escola às 20h e nunca mais voltou
O caso da Escola Secundária de Fajões, em Oliveira de Azeméis, é o de uma professora de 45 anos que dava aulas de inglês aos 7.º, 9.º e 10.º anos. Não aparentava ter problemas de saúde e foi colocada naquela zona no início deste ano letivo, tal como Paula Lima, também professora de inglês, que encontrámos a sair da escola depois de mais uma reunião. “Era muito simpática, profissional e afável, muito chegada aos alunos. Muitos deles foram em grupo e até com alguns familiares ao funeral”, conta em entrevista ao Observador.
Segundo Paula Lima, numa sexta-feira no final do mês de maio, a colega saiu da escola tarde, por volta das 20h, após uma reunião de avaliações. Nesse fim-de-semana tinha o aniversário do marido, com quem tinha uma filha, mas, além de estar com a família, preparava-se também para corrigir testes. Foi precisamente a trabalhar em casa que morreu de morte súbita. “Fomos as duas nomeadas para corrigir exames, mas ela não chegou a tempo”, lamenta a professora.
O marido também é professor e coordenador no Agrupamento de Escolas de Estarreja. E declarações ao jornal Público, recusou relacionar o trabalho com a morte da mulher. Disse que professora “era uma pessoa feliz, descontraída, focada, organizada e com uma capacidade notável para envolver pais e miúdos, mesmo os que tinham problemas comportamentais, nas aprendizagens”. “E fazia-o sempre com um sorriso”, acrescentou.
“Habituado a lidar com professores em situação de burnout e a reconhecer os seus sintomas”, diz que nunca os detetou na sua companheira. “Nunca se mostrou cansada nem desgastada. Pelo contrário, gostava muito do seu trabalho e da escola em que estava”, garante, embora admita que a companheira com quem vivia há nove anos “gastava mais de 50 horas por semana no trabalho”. Ainda assim, não liga uma coisa à outra: “Não me parece justo nem honesto assumir isso, até porque ela tinha prazer no trabalho que fazia.”
A colega Paula Lima tem uma opinião diferente e defende que o excesso de trabalho e a indisciplina dos alunos acabam por explicar alguns sinais de stress, ansiedade ou até mesmo depressão que vários professores sentem no seu próprio local de trabalho. “É extremamente difícil dar uma aula a alunos que respondem palavrões”, desabafa Paula Lima, admitindo que a Secundária de Fajões acolhe adolescentes complicados, sem apoio familiar e muito revoltados. “Temos uma escola do século XX para alunos do século XXI, que preferem teclar do que escrever. Não conseguimos captar a atenção deles e, por isso, não os podemos educar”, afirma.
O Observador tentou entrar em contacto com o marido da professora em causa, para saber se também ele tinha sido apanhado de surpresa pela denúncia da Fenprof, mas ainda sem sucesso. Ainda que a posição que assumiu na entrevista ao Público faça crer que esse contacto não tenha acontecido — caso contrário, a Fenprof estaria a incluir na lista um caso desmentido pela própria família, o que seria pouco provável.
Denúncia leva a outras queixas
O quarto e último caso denunciado pela Fenprof ocorreu em abril passado, na Escola Básica da Quinta da Paiã, concelho de Odivelas. Um professor do 1.º ciclo, com mais de 50 anos de idade, morreu durante a noite enquanto punha o trabalho da escola em dia, alegadamente na sequência de um ataque cardíaco. “O professor enviou por email, cerca da 01h00, os dados pedidos pela escola. No outro dia não apareceu, e a medicina legal concluiu que teria morrido por essa hora”, disse Mário Nogueira na conferência de imprensa de terça-feira.
Contactado pelo Observador, o diretor do Agrupamento de Escolas Brancaamp Freire, situado na Pontinha, não confirma a morte do docente. Já a Câmara Municipal de Odivelas diz não ter conhecimento da situação.
Depois do anúncio de há duas semanas, o sindicato diz que tem recebido dezenas de denúncias, relatos de colegas professores ou até mesmo de familiares que contam casos de exaustão extrema provocada pelo excesso de carga horária. Segundo o que o Observador apurou, o principal objetivo neste momento é perceber se há uma correlação direta entre excesso de carga horária, situações de burnout e a morte destes professores ou se, pelo contrário, os óbitos não terão passado de uma coincidência. O ofício, com o pedido de investigação do caso, seguiu para o Ministério Público na semana passada.