Quando se pensa em futebol em Manchester, a lógica óbvia e obrigatória aponta para duas palavras: City e United. A cidade do norte de Inglaterra, porém, conta com centenas de clubes espalhados por todos os escalões do futebol inglês, desde a Premier League aos distritais, e é difícil encontrar um bairro que não tenha as suas próprias cores e o seu próprio emblema.
O Bolton, que há dez anos andava pelas competições europeias, está à beira do precipício
Só um, porém, consegue dividir algum peso histórico com City e United. O Bolton Wanderers, o terceiro clube de Manchester que chegou a andar pelos oitavos de final da Taça UEFA há cerca de 15 anos, está afundado na League One, a terceira divisão inglesa. Chegou a cair mesmo para o quarto escalão, passou por um período de administração pública devido a dívidas monstruosas e viu o centro de treinos ser encerrado por falta de comida e bebida, ausência de água potável e escassez de água quente.
Os últimos quatro anos, contudo, foram de reconstrução. O Bolton foi vendido a um consórcio, tem o mesmo treinador desde 2020 e na temporada passada chegou mesmo ao playoff de acesso ao Championship, estabelecendo as bases para a reconstrução do outro grande de Manchester.
Dos oitavos de final da Taça UEFA às ameaças de liquidação
Entre 2004 e 2007, o Bolton Wanderers terminou a temporada no oitavo lugar da Premier League em duas ocasiões, uma em sétimo e ainda outra em sexto, o melhor resultado de sempre do clube no principal escalão do futebol inglês. Pelo meio, a equipa de Manchester ainda chegou a uma final da Taça da Liga (onde perdeu com o Middlesbrough) e somou duas presenças na Taça UEFA, chegando aos oitavos de final em 2007/08 – onde caiu frente ao Sporting de Paulo Bento graças a um golo de Bruno Pereirinha em Alvalade.
Enquanto elemento comum a essas quatro épocas, encontrava-se Sam Allardyce, o treinador que tinha jogado nos trotters ainda enquanto júnior e que passou oito anos no comando técnico do Bolton. Saiu em 2007, alegando uma licença sabática que depois se descobriu ser um contrato já assinado com o Newcastle. E o período negro do Bolton começou.
Allardyce, que entretanto foi selecionador nacional inglês e passou depois por Everton, West Bromwich e Leeds, é ainda hoje apontado como o pai de um quase período galáctico do Bolton. Afinal, as quatro temporadas entre 2004 e 2007 foram mesmo o espaço temporal mais bem sucedido da história do clube e os jogadores que o treinador inglês conseguiu trazer para o modesto Reebok Stadium estavam bem acima das expectativas dos adeptos.
Para além do português Ricardo Vaz Tê, o plantel do Bolton que foi a sensação da Premier League durante quatro anos – e que alcançou uma estabilidade de classificações que só Chelsea, Manchester United, Arsenal e Liverpool tinham conseguido – incluía Fernando Hierro, que acabou por terminar a carreira no clube, o nigeriano Jay-Jay Okocha, o ex-Real Madrid Iván Campo, Hidetoshi Nakata, considerado o melhor jogador japonês de sempre, os franceses Youri Djorkaeff e Nicolas Anelka e até Mário Jardel, que chegou a Inglaterra um ano depois de ser campeão com o Sporting e conquistar a Bota de Ouro, mas nunca conseguiu afirmar-se em Inglaterra.
A saída de Sam Allardyce para o Newcastle desnorteou o Bolton e retirou o farol a uma equipa que jogava, agia e atuava à imagem e semelhança do treinador. O clube sobreviveu à descida nos anos que se seguiram, terminando a temporada sempre na segunda metade da tabela, bateu o recorde de transferências com a chegada do sueco Johan Elmander (que custou mais de oito milhões de libras), mas acabou por cair para o Championship em 2012, no último dia da época.
Desde esse ano, o clube não voltou a conseguir a promoção à Premier League e caiu mesmo para o terceiro escalão em 2016 – algo que não acontecia desde 1993 –, ainda que tenha subido logo na temporada seguinte. Aos fracassos desportivos depressa se aliaram os institucionais e financeiros, com o Bolton a chegar a dezembro de 2015 com mais de 170 milhões de libras em dívidas – acumuladas devido a gestões irregulares, falta de pagamento a fornecedores e o fim das receitas do naming do estádio, primeiro com a Reebok e depois com a Macron.
Os pedidos de liquidação sucederam-se e o clube só escapou a ficar nas mãos de um administrador apontado pela justiça porque Edwin Davis, antigo presidente do Bolton e um dos homens mais ricos de Reino Unido, emprestou cinco milhões de euros para saldar uma das principais dívidas quatro dias antes de morrer.
Centro de treinos sem comida e um presidente a pagar salários
Em 2019, numa altura em que o dono e presidente Ken Anderson garantia que estava a negociar com vários consórcios interessados na aquisição do Bolton, a precária situação financeira tornou-se dramática. Depois de ser tornado público que o clube falhou o pagamento dos salários relativos ao mês de fevereiro, o jornal The Telegraph revelou que o centro de treinos chegou a estar fechado devido à falta de dinheiro para comprar comida e bebida para os jogadores.
As más notícias prolongaram-se nos dias seguintes, quando o Bolton Safety Advisory Group, o grupo de entidades que regula e organiza a segurança da cidade, anunciou que o jogo seguinte, contra o Millwall, estava em risco porque não estavam “reunidas as condições legais para certificar a segurança do recinto”: o staff que normalmente trabalha em dia de jogo, incluindo os stewards que controlam as bancadas, estavam a ponderar não aparecer em protesto com a falta de pagamento.
Na mesma altura, o Bolton era presença regular nos tribunais, para responder aos consecutivos pedidos de liquidação, e o presidente Ken Anderson desdobrava-se em comunicados que não comentavam o encerramento do centro de treinos ou os jogos potencialmente adiados, mas apenas o que dizia serem “mal entendidos” divulgados pela comunicação social. Muito contestado pelos adeptos, protagonista de vários protestos a exigir a sua demissão, ia garantindo que o dinheiro que pagava os salários saía do próprio bolso.
“É difícil aceitar pôr mais um milhão num clube que não me quer lá e que, pior ainda, torna perigoso o ato de eu me deslocar às instalações. (…) Ainda assim, decidi continuar a suportar financeiramente o clube até alguém aparecer”, afirmou, na altura, o presidente do Bolton. “Um número de manchetes sensacionalistas nos últimos dias estão factualmente incorretas na maioria dos casos. Suponho que ajude a vender jornais e mantenha os holofotes sobre os jornalistas. Assim sendo, acredito que a comunicação social e as redes sociais desempenham uma grande papel em influenciar e promover os protestos mais recentes — tudo isso, em conjunto com ameaças vis e abusivas em relação a mim e a à minha família, levou a polícia a aconselhar-me de que pode não ser seguro para mim e para a minha família assistir aos jogos”, acrescentou Ken Anderson no comunicado, onde dedicava longos parágrafos à crítica à comunicação social inglesa.
O Bolton, que há pouco mais de 15 anos chegava aos oitavos de final da Taça UEFA e estava confortavelmente nos primeiros dez classificados da Premier League, corria o sério risco de voltar a cair para o terceiro escalão do futebol inglês, via-se a braços com dívidas monstruosas que provocavam o encerramento do centro de treinos e ainda podia perder jogos devido à ausência de segurança. Tudo isto, contudo, eram medidas singelas e pouco relevantes se se confirmasse aquilo que se ia tentando, a todo o custo, evitar: a liquidação do Bolton e a atribuição da gestão do clube a um administrador nomeado pelos tribunais ingleses.
A queda para a quarta divisão abriu a porta a quatro anos de reconstrução
Mas o comboio já estava demasiado lançado para ser travado e o Bolton voltou mesmo a cair para a League One, a terceira divisão. Depois de Ken Anderson não conseguir encontrar um comprador para o clube antes do início da temporada 2019/20, o clube entrou mesmo em administração pública devido a uma dívida de mais de um milhão de libras em impostos — para além de ter sofrido desde logo uma dedução de 12 pontos. Os jogadores emitiram um comunicado onde diziam que não recebiam há 20 semanas e que o centro de treinos não tinha água potável ou água quente e todos os jogos de pré-época foram cancelados.
Na primeira jornada da temporada, o clube de Manchester entrou em campo contra o Wycombe Wanderers com apenas três jogadores seniores com contrato. Uma semana depois, contra o Coventry, apresentou a equipa mais nova de sempre, com uma média de idades de 19 anos. O treinador Phil Parkinson acabou por decidir não entrar em campo na terceira jornada, contra os Doncaster Rovers, e demitiu-se. A luz ao fundo do túnel, porém, acabaria por chegar ainda antes do final do mês de agosto.
O Bolton anunciou que o clube tinha sido vendido ao consórcio Football Ventures (Whites) Ltd — e o administrador público responsável pelo negócio acusou Ken Anderson de ter “usado a sua posição para destruir e frustrar qualquer acordo que não o beneficiava ou não servia os seus propósitos”. Keith Hill foi contratado para orientar a equipa e ainda conseguiu resgatar nove jogadores antes do fim do mercado de transferências de verão, acabando por alcançar a primeira vitória do Bolton em 22 jogos contra o Bristol Rovers, no fim de outubro.
Os meses seguintes ainda trouxeram mais multas, suspensões e deduções de pontos, mas foi mesmo a pandemia de Covid-19 a obrigar o clube a cair ainda mais para procurar renascer. Em junho de 2020, quando a League One decidiu terminar a temporada mais cedo, o Bolton foi despromovido ao quarto escalão do futebol inglês pela primeira vez desde 1988 e apenas pela segunda ocasião em toda a história. Keith Hill foi despedido, Ian Evatt foi contratado – e seguiram-se quatro anos de reconstrução.
Na altura, o treinador britânico tinha apenas 39 anos e só tinha passado pelo Chesterfield e pelo Barrow, assumindo o desafio do Bolton como o maior da carreira até então. Conseguiu voltar à League One logo na primeira temporada e no ano passado chegou mesmo ao playoff de acesso ao Championship, a última divisão logo depois da Premier League. Perdeu com o Oxford United, mas estabeleceu as bases para o futuro de um clube histórico que está a tentar renascer desportiva e financeiramente.
“O Bolton é um clube gigante, mas tem estado em declínio. Na verdade, foi um desafio muito maior do que aquele que eu achava iria ser, inicialmente. Tivemos de começar tudo do início, até nos bastidores e na estrutura do clube. Não tínhamos muitos jogadores inscritos quando começámos, tivemos de recrutar uma equipa nova virtualmente e no meio de uma pandemia. E tudo isso leva tempo”, explicou Ian Evatt, que conta com o português Ricardo Santos como capitão de equipa, numa entrevista recente à Sky Sports.