Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Nas últimas semanas, as medidas de contenção do novo coronavírus exibiram a importância das novas tecnologias na adaptação da resposta da produção à satisfação de inúmeras necessidades. As empresas que estavam mais expostas ao comércio online, ou que tinham potencial para o teletrabalho, conseguiram organizar-se e mitigar os impactos de uma sociedade confinada. Do mesmo modo, o atual confinamento foi, para os que têm acesso à tecnologia no seu dia-a-dia, significativamente amenizado pela possibilidade de nos ligarmos em rede, lecionarmos à distância, reunirmos virtualmente, ou de nos alienarmos em plataformas como o Tik Tok, Instagram, Facebook, Netflix, Spotify ou Zoom. Se, distanciados, conseguimos estar mais próximos do que se imaginaria, tal deve-se e muito ao potencial do digital. O que implica também que o isolamento foi particularmente penalizador para quem está desligado da rede.
Daí que perante o atual entusiasmo com o potencial transformador da tecnologia nas nossas vidas, em grande medida justificado, não devamos ignorar que a sua adesão não é transversal. Se o novo coronavírus foi, em alguns casos, um acelerador na adoção das soluções digitais, ele exibiu as assimetrias de digitalização entre negócios, setores de atividade, e pessoas de várias origens socioeconómicas e etárias, com mais dificuldade em acompanhar as mudanças. Mais: a presente crise está ainda a desvendar o potencial totalitário da tecnologia, seja pelo papel desagregador das fake news, seja pela possibilidade de alimentar pulsões securitárias que têm vindo a ganhar terreno, fazendo perigar valores essenciais das democracias liberais, conquistados a pulso, como a privacidade e a liberdade.
A pandemia de Covid-19 exibiu a importância que o digital pode ter nas nossas vidas, e sinalizou o seu carácter disruptivo. Porém, esta disrupção não começou em 2020 nem é historicamente inédita. Nos últimos 250 anos as revoluções industriais tiveram sempre um impacto disruptivo nas condições de produção, alterando a combinação dos fatores e, em todas elas, alargando a curva da oferta – ou seja, criando mais produção, rendimento e riqueza. Importa recordar que o rendimento é o resultado da produção, ou seja, da capacidade de incorporar em produtos ou serviços – tangíveis ou intangíveis – um valor que depende da combinação de um conjunto de fatores de produção. O que os mercados fazem mais não é do que procurar utilizar os recursos disponíveis – matérias-primas, tecnologias, máquinas, conhecimento, mão-de-obra, capital financeiro – para, fazendo combinações distintas, maximizar o potencial de produção e oferecer bens e serviços que sejam transacionáveis. É nessas transações que se cria riqueza, por satisfação de necessidades de pessoas concretas, e se geram os rendimentos que são depois distribuídos pelos que participam na produção. Ora, desde o início deste milénio assistimos a uma alteração das condições de produção, por incorporação de novas tecnologias, expressas em sistemas ciber-físicos de automação, novos periféricos, inteligência artificial, e aumento da capacidade de tratamento e guarda de dados, que pelas suas características disruptivas traduzem uma nova revolução industrial e que são o pilar transformacional do que se considera ser a nova Economia Digital.
É precisamente na distribuição do resultado desta produção, cujos equilíbrios estão a ser postos em causa pelas novas combinações disruptivas, que se centra boa parte do debate atual. A generalidade das sociedades desenvolvidas aspira a reduzir desigualdades ou, pelo menos, a promover um patamar mínimo de rendimento a que qualquer pessoa deve poder aceder. Daí que no mainstream mediático, político e até académico abundem posições e estudos que correlacionam um aumento da desigualdade na alocação dos rendimentos, o crescente descontentamento social e político, o aumento do sentimento populista e nacionalista, às grandes mudanças tecnológicas lideradas pela revolução digital. Até que ponto estas megatendências estão efetivamente correlacionadas ou são instrumentalizadas para suportar narrativas políticas de reforço regulatório, de captura fiscal, ou de limitação da liberdade económica, é um dilema do ovo e da galinha. Na verdade, a discussão que rodeia a ideia de desigualdade, estando política e ideologicamente motivada, enviesa significativamente o debate e a própria linguagem utilizada, condicionando as conclusões. É, por isso, mais interessante refletir sobre quem estarão a ser os vencedores e quem poderá estar a ficar para trás, nesta nova forma de organizar a produção numa economia cada vez mais assente no digital.
Quem está a ganhar ou a perder com as tecnologias digitais?
As tecnologias digitais estão a afetar de forma significativa os fatores que integram as cadeias de produção, colocando sob tensão a contribuição do trabalho e aumentando a polarização crescente entre o valor dos distintos empregos ou perfis, em função das qualificações. Desde logo, por reforço da automação. Mas também o conhecimento associado ao próprio trabalho tem vindo a mudar significativamente, uma vez que a inovação e um ambiente económico que favorece a disrupção obrigam a uma constante adaptação funcional. Uma fatia importante da população relata hoje uma incompatibilidade entre as suas habilidades e as que são solicitadas pelo mercado de trabalho, sendo aqui relevante o papel do envelhecimento na obsolescência profissional. Esta mudança afirma-se de uma forma transversal ao longo de todo o processo produtivo – e que, na sua combinação, traduz uma nova dimensão intangível que não era tão (re)conhecida ou vincada em revoluções industriais anteriores.
A disseminação e adoção da tecnologia, porém, tem sido assimétrica. Basta pensar que os aumentos da produtividade têm estado concentrados em núcleos de empresas com maior dimensão, com maior capacidade de investimento, ou as que foram criadas mais recentemente, já com métodos de trabalho adaptados aos novos tempos. O forte crescimento da produtividade nas empresas líderes posicionadas na fronteira tecnológica opera, paradoxalmente, num contexto em que o crescimento agregado da produtividade tem vindo a diminuir.
Serão decerto múltiplas as causas que explicam as quebras da produtividade, que não apenas a tecnologia, ou até apesar da tecnologia. Mas, seguramente, o enfraquecimento da concorrência é uma das determinantes mais importantes para a afirmação desta dinâmica adversa. Existem evidências empíricas que mostram que, nos setores tradicionais menos expostos à concorrência, a inovação e a difusão tecnológicas são mais fracas, a divergência de produtividade entre empresas é mais ampla e o crescimento agregado da produtividade é mais lento. Noutro sentido, assiste-se a um fenómeno de concentração, ao estilo the winner takes it all, que incentiva a convergência de investimentos em empresas dominantes que maximizem as vantagens e os ganhos de escala potenciados pela tecnologia, sobretudo em modelos de negócio em que tal facilite o acesso a mercados em todo o mundo.
Assim, nos setores onde está presente a adoção de alta tecnologia, assistimos à afirmação de empresas superstar, como a Amazon, Microsoft, Apple, Alibaba, Facebook, Google ou Netflix. Estas empresas conseguem maximizar os benefícios do big data, seja na antecipação das preferências dos consumidores, seja na definição de preços algorítmicos sofisticados e personalizados, ou dos ganhos de escala na distribuição e nas cadeias logísticas. Isto ao ponto de comprimirem o valor dos produtos físicos transacionados, em detrimento desta combinação intangível onde ativos como softwares, “soluções de negócio” e propriedade intelectual jogam um papel decisivo no sucesso económico.
Essas assimetrias revelam-se também nos salários. A diminuição consistente do crescimento agregado da produtividade nas duas últimas décadas, num contexto onde um núcleo de empresas mais expostas à tecnologia viu a sua produtividade aumentar significativamente, teria de ter necessariamente um impacto considerável nos rendimentos do trabalho. Na maioria das empresas, o parco crescimento dos salários reflete o crescimento limitado da produtividade. Mas mesmo nas empresas com melhor desempenho, e onde as remunerações e os prémios de desempenho são maiores, o crescimento das compensações pela prestação de trabalho tem sido inferior ao aumento da produtividade. É, por isso, possível concluir que a introdução da tecnologia na produção tem vindo a reforçar, em termos relativos, o peso da alocação de capital em detrimento da mão-de-obra.
O afastamento entre a economia digital e a esfera do político
Se as tecnologias digitais estão a reformular profundamente o mundo dos negócios, as mudanças ocorridas nos mercados não têm sido acompanhadas pela adaptação do mundo político. De facto, os poderes públicos insistem em não se acomodar às novas dinâmicas, a integrar no seu funcionamento as valias da digitalização, ou a contrapor nas suas diversas respostas os problemas de um mundo que é hoje muito distinto do que emergiu do pós-guerra. A tosca interação entre a mudança tecnológica e o ambiente político predominante, tem sido também determinante para que, feitas as contas, existam ainda tantos perdedores num contexto onde teríamos condições privilegiadas para aumentar o tamanho do bolo de riqueza e da fatia que caberia a cada um.
Num momento em que as tecnologias digitais poderiam ser colocadas de forma mais expressiva ao serviço das finalidades do Estado, continuamos a assistir a uma ineficiente alocação dos fatores de produção. De certo modo, o poder de monopólio estatal está a perpetuar artificialmente a prevalência de um trabalho cada vez mais desvalorizado e resistente ao conhecimento, em detrimento da produtividade, aqui traduzida no bom uso dos impostos. Não é por isso surpreendente que continue a haver um foco na promoção de políticas assentes em mão-de-obra intensiva, impostos altos e transferências, como estratégia para redução das desigualdades, em detrimento de soluções pré-distribuição, muito mais inclusivas e eficazes.
Acresce que a mobilidade dos fatores faz com que, no atual contexto, haja zonas do planeta que se assumam cada vez mais como polos de atração, que numa conjugação virtuosa entre ofertas de emprego, nível equilibrado de impostos, e qualidade de vida, se tornam de uma forma mais expressiva que no passado, irresistíveis para as pessoas mais válidas e com maior potencial de conhecimento, esvaziando a capacidade de reação das economias ancoradas a Estados mais endividados e com menor responsividade às necessidades sociais.
Num jogo onde sempre existiram vencedores e vencidos, o desafio de hoje não é muito distinto daqueles que, no passado, se colocaram a todos os que enfrentaram momentos de disrupção por incorporação de uma nova valência com elevado potencial para fazer aumentar a produção. Como tal, a inclusão digital é muito mais do que simplesmente promover literacias que ajudem os cidadãos a compreender as novas ferramentas e as novas linguagens emergentes. É também alargar os benefícios do digital ao maior número de pessoas, para que seja possível acorrer aos que, necessariamente, precisarão do apoio e suporte de todos.
Ora, para que isso ocorra, é fundamental que se revitalize a concorrência, eliminando monopólios, incluindo os que existem na prestação estatal, sobretudo ao nível da saúde e da educação. Neste contexto, a concorrência deve ser feita também a partir da valorização e reforço da proteção de dados pessoais e da privacidade – o direito fundamental por excelência da era digital, que funciona como eixo principal do combate às pulsões totalitárias que estão latentes na tecnologia. Importa ainda incentivar uma agenda política mais ampla e ambiciosa de pré-distribuição, ancorada na geração de conhecimento e no alargamento dos benefícios da digitalização a um maior número de setores da economia, sobretudo os mais tradicionais, para que se possa inverter a desaceleração da sua produtividade.
Urge, finalmente, criar um sistema tributário de proteção do emprego e previdencial muito mais prospetivo, moldável a cada um e flexível, ancorado em lógicas de seguro, que responda aos desafios de uma economia global — isto é, um contexto onde iremos assistir a uma cada vez maior e mais intensa circulação de pessoas entre polos de atração, e que não é compatível, até do ponto de vista demográfico, com soluções institucionais e políticas construídas para um tempo diferente, mais previsível e estanque.
Mais do que fixar os olhos em “quem fica para trás”, importa desde já compreender e não demonizar um fenómeno que veio para ficar. Não se pode ficar imóvel a observar o presente, há que cuidar desde já do futuro. Isso implica afirmar um novo contrato social assente num sistema político pós-digital, liberto dos pré-conceitos herdados de um tempo diferente. Ou seja, há que repensar as instituições e as respostas políticas que devem passar a ser o eixo fundamental de relação com uma economia digital que apresenta um enorme potencial para servir a todos.
Este ensaio foi publicado originalmente na revista de aniversário do Observador, que está à venda nas bancas e online.