Foi o “sono leve” de Maria Pereira que lhe permitiu assistir a tudo. Passavam poucos minutos das cinco da manhã quando os primeiros sons que lhe chegavam da rua — numa agitação discreta, mas pouco habitual na aldeia — a deixaram alerta. Viu vários homens, fortemente armados, a rondar a casa do lado, onde “Manuel” se tinha instalado pouco tempo antes para umas “obras” na casa do suposto cunhado. Depois, foi tudo muito rápido. “A partir das 6h40 eles fizeram força e, portanto, usaram meios. Tinha de ser”. Em menos de uma hora, Maria ficava a perceber que “Manuel” era, afinal, Fernando Ferreira, um dos cinco homens que a 7 de setembro escaparam da prisão de Vale de Judeus, um fugitivo considerado “muito perigoso” e que se tinha instalado ali para escapar às autoridades.
“Manuel” tinha chegado à aldeia de Castanheira de Chã, no concelho de Montalegre, duas semanas antes. “Eu vi a porta aberta, e como o senhor [dono da casa] já cá não estava há muito — e ouvi lá falar e o rádio a tocar —, disse-lhe assim: ‘Ei, já voltaste?’ E ele diz: ‘Não! Não sou o Nicolau’.” Foi a primeira vez que Ana Branco, outra vizinha, se cruzou com Fernando Ribeiro. Nesse dia, o fugitivo de Vale de Judeus não chegou sozinho à aldeia. “Eram dois”, conta ao Observador, recordando que se apresentaram ambos como “cunhados” de Nicolau. Sobre o dono da casa, pouco se sabe. Espanhol, muito reservado, já não aparecia por aqueles lados “há mais de um ano”.
Mas Fernando Ribeiro e o outro homem, “mais baixote”, que o acompanhava não eram os únicos a andar por ali nos últimos dias. Ana Branco conta que, ao longo das últimas duas semanas, foram aparecendo mais “artistas” para as tais obras na propriedade. “Trabalhavam ali pessoas que não conhecíamos, mas vieram ali trabalhar.” Na maior parte do tempo, “Manuel” acabava por “ficar sozinho” — e sempre a trabalhar na renovação da casa.
“Andava mexido logo de manhã a trabalhar e à noite e, olhe, por esta hora, ainda estaria a trabalhar”, relata a vizinha, já ao final da tarde desta sexta-feira, horas depois da operação do Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR que levou à recaptura de Fernando Ferreira. O trabalhos dividiam-se entre “cimentar” e “revestir” o pátio. Ainda assim, havia tempo para interagir com a vizinhança. “Uma vez disse-me assim: Oh minha senhora, posso-lhe aqui varrer o pátio? Eu disse: ‘Varra, só faz bem, obrigada!”
Monitorizado há pelo menos duas semanas
Os poucos habitantes da aldeia de Castanheira lembram-se desse dia em que Fernando Ferreira chegou. Um carro estacionou à porta, e lá de dentro saiu um dos homens mais procurados pelas autoridades nacionais. Mas a partir do momento em que o fugitivo de Vale de Judeus explicou que estava ali para ajudar o cunhado, (quase) ninguém desconfiou da sua verdadeira identidade.
O que Fernando Ferreira não sabia é que estava a ser monitorizado pela Polícia Judiciária praticamente desde que ali se instalou. Segundo apurou o Observador junto de fonte próxima da investigação, os inspetores andavam por perto, a vigiar a casa, há praticamente duas semanas. E não terá sido nenhum dos vizinhos a dar o alerta.
A mesma fonte ligada à investigação confirma que aquela casa de Castanheira de Chã era propriedade de um homem de nacionalidade espanhola, conhecido de Fernando Ferreira, e tinha sido comprada há pouco mais de um ano. As pequenas obras ocupavam grande parte dos seus dias do fugitivo de Vale de Judeus, mas Fernando não mantinha propriamente uma vida de reclusão.
Eva (nome fictício) lembra-se de, por diversas vezes, ver o vizinho recém-chegado — que “andava de gorro escuro e fato de treino bege” — ir buscar o pão à carrinha de venda ambulante. E também de o ouvir dizer que, “qualquer coisa de que precisasse, era só bater à porta”.
A chegada inesperada de Fernando à Aldeia não parece ter levantado suspeitas. Nas ruas da aldeia, apenas um dos moradores terá sugerido: “É mesmo parecido com o fugitivo.” Eva diz que as palavras do marido, na festa do São Martinho, foram encaradas como uma brincadeira por ali. E assegura que “nunca ninguém pensou verdadeiramente que fosse o fugitivo, senão tinham telefonado logo para a Guarda”.
Mandado de detenção pedido há três dias
Na conferência de imprensa desta sexta-feira, apenas quatro horas depois da detenção, o diretor nacional da Polícia Judiciária destacou o trabalho “silencioso” e de “filigrana” que os inspetores foram fazendo ao longo dos últimos dois meses e meio para recapturar Fernando Ferreira (já depois de Fábio Loureiro, o outro português em fuga, ter sido apanhado em Marrocos). Depois de duas semanas de vigilância próxima, a Polícia Judiciária decidiu avançar.
O Observador sabe que o mandado de detenção em nome de Fernando Ferreira foi pedido três dias antes. Nessa última fase da investigação, conta fonte da PJ, os inspetores recolheram provas que não deixaram margem para dúvidas: o fugitivo de Vale de Judeus, o segundo português em fuga, estava armado.
Perto das sete da manhã desta sexta-feira, quando a Polícia Judiciária e o grupo de operações especiais da GNR finalmente arrombaram o portão verde, encontraram Fernando Ferreira sozinho. Dos cinco presos que escaparam da prisão de alta segurança, era indicado como um elemento que se juntou ao plano de fuga por mero acaso. Mas na casa em que passou as últimas duas semanas, em Trás os Montes, o fugitivo tinha consigo material que demonstrava um “elevado grau de preparação e de cuidado” e que as autoridades acreditam ter sido utilizado no dia da fuga, em conjunto com Fábio Loureiro, Rodolf Lohrmann, Mark Roscaleer e georgiano Shergili Farjiani: duas armas de 9mm com silenciador, munições, vários walkie-talkies, um aparelho para bloquear sinais de comunicações e ainda uns binóculos de visão noturna e de longo alcance.
“Tudo indica que este material tenha sido utilizado no apoio à fuga”, disse Manuela Santos, diretora da Unidade de Contraterrorismo, na mesma conferência de imprensa. A PJ não descarta a hipótese de que Fernando Ferreira pudesse usar aquele material numa nova fuga.
Os responsáveis da PJ assumiram, aliás, que no momento em que a GNR arrombou o portão verde da casa, Fernando Ferreira estaria a preparar-se para fugir do local. Os responsáveis pela investigação suspeitam de que o homem que tinham debaixo de olho pudesse já se ter apercebido de alguma movimentação estranha nas redondezas. “Estava vestido, pronto para sair de casa”, conta fonte da Judiciária ao Observador. “Tentou a fuga quando percebeu que ia haver uma entrada na residência, mas não houve qualquer hipótese de sucesso”, disse Manuela Santos esta sexta-feira aos jornalistas.
Fugitivos portugueses apanhados, faltam os três estrangeiros (e a equipa da fuga)
Fernando Ferreira entrou pela primeira vez numa prisão aos 16 anos, em outubro de 1980. Agora, 54 anos depois, volta para a cadeia para cumprir o restante da pena: tem mais 23 anos pela frente. Por enquanto, está detido na cadeia de Chaves, mas a pena deverá ser cumprida na prisão de Monsanto, a única do país classificada como sendo de segurança especial e já conhecida de Fernando — esteve lá em 1987 apenas um mês, regressou em dezembro de 2015 e só saiu em 2018, quando foi transferido para Coimbra. Pelo meio há crimes de associação criminosa, rapto, roubo à mão armada, tráfico de droga e detenção de arma proibida.
Fuga de Vale dos Judeus. Namorada de Fábio Loureiro ‘conduziu’ a PJ na direção da pista de Marrocos
Dos cinco reclusos que fugiram de Vale de Judeus a 7 de setembro, falta descobrir o paradeiro de três — o argentino Rodolf Lohrmann, o inglês Mark Roscaleer e o georgiano Shergili Farjiani — e que as autoridades acreditam que possam estar já foram do país, estando em vigor os mandados de detenção internacional. Além disso, avisou Luís Neves, diretor nacional da PJ, durante a conferência de imprensa desta sexta-feira, há ainda outro foco desta polícia: encontrar quem auxiliou a fuga dos cinco presos da cadeia de Vale de Judeus. “Houve a participação de outros indivíduos e é também nesse sentido que estamos a trabalhar”, explicou.
Para já, Fernando Ferreira será encaminhado para a prisão de Monsanto e Fábio Loureiro, o primeiro recluso a ser encontrado, deverá chegar a Portugal em breve, assim que exista luz verde das autoridades de Marrocos. Fábio Loureiro foi detido no passado mês de outubro e, numa primeira fase, decidiu opor-se à extradição, desistindo poucos dias depois da vontade de ficar em território marroquino. No entanto, o pedido de extradição ainda não foi executado.
Fuga de Vale dos Judeus. Namorada de Fábio Loureiro ‘conduziu’ a PJ na direção da pista de Marrocos
Luís Neves anunciou esta sexta-feira que este recluso deverá regressar em pouco tempo e, ao Observador, a Procuradoria-geral da República adiantou que “o pedido formal de extradição encontra-se em apreciação pelas autoridades marroquinas, aguardando-se a respetiva decisão”. Por esclarecer fica, no entanto, se os dois reclusos que já foram encontrados pelas autoridades vão ficar na mesma prisão — em Monsanto.