António Costa Silva recebeu 1.153 contributos, de cidadãos e empresas, para o plano de recuperação que apresentou a 21 de julho e que esteve em consulta pública até 21 de agosto. Apenas alguns foram acolhidos — por exemplo, continua a defender que se faça a ligação Porto-Lisboa para passageiros em Alta Velocidade, mas agora admite que em vez de uma construção faseada, por troços, essa ligação possa ser feita de uma só vez. Outros, como a adoção da bitola europeia (em substituição da atual bitola ibérica), são apenas mencionados, e até criticados, no documento que analisa as propostas e que servirá de base ao esboço de recuperação económica que o Executivo terá de entregar até 15 de outubro à Comissão Europeia.
Na adenda ao plano, com 38 páginas, divulgada esta terça-feira, Costa Silva quer fazer as pazes com setores que representam “uma parte significativa” do PIB português — como o turismo ou o comércio —, mas que tinham acusado o gestor de os ter subrepresentado no plano inicial. “Não houve qualquer intenção de os menorizar“, frisou várias vezes Costa Silva.
Pode ouvir aqui as citações mais surpreendentes de António Costa Silva:
Os contributos levaram o professor do Instituto Superior Técnico a fazer outras adendas ao primeiro plano: da petroquímica, um setor que, reconhece, “não está devidamente representado no documento inicial”; a eficiência energética, cujo papel também “não é suficientemente enfatizado”; a mineração do mar profundo; e as centrais de biomassa — que, considera, deviam ser criadas “para dinamizar a economia local”. Para isso, serviu-se das citações de diversos autores: de Hannah Arendt, Sófocles, passando por Thomas Edison e Henry Ford. E até o gato de Schrödinger foi chamado.
Como o plano Costa Silva relança as duas obras mais polémicas — o TGV e o aeroporto
Hannah Arendt: Face às crises, é preciso “pensar sem corrimão”
A ênfase de António Costa Silva foi também colocada, como já tinha sido na apresentação de julho, no investimento dos serviços públicos. O gestor pede que se pense “sem corrimão” — como no livro de Hannah Arendt, uma das maiores pensadoras do século XX, que escreveu sobre os totalitarismos —, recusa os “paradigmas do passado” e a “campanha pelo estado mínimo, pelo desmantelamento dos serviços públicos, pela privatização cega de todos os setores da economia e dos serviços públicos”. “Ainda bem que esse modelo não vingou. Quando há uma epidemia como esta não é o mercado que nos vai salvar, é o Estado, são os serviços públicos, é o SNS. Espero que haja a humildade de assumir a derrota histórica que a realidade impôs a ideias ultraliberais.”
Costa Silva deixou ainda uma palavra sobre a administração pública, que está muito focada num modelo “business as usual” e “muito orientada para pareceres e pouco para a resolução de problemas”. Segundo o conselheiro do Governo, uma das partes do plano que recebeu mais contributos está ligada ao funcionamento da administração pública — a qualificação (nomeadamente dos profissionais de saúde e professores), rejuvenescimento e digitalização.
“O conjunto dos contributos vem sublinhar a importância de uma administração pública, central e local, articulada, qualificada, desburocratizada e descentralizada, tendo sido apresentadas sugestões concretas para ultrapassar alguns problemas”, lê-se no documento, que não especifica que contributos foram esses.
Aliás, foi o eixo da qualificação, transição digital, ciência e tecnologia o que recebeu maior número de contributos (187), seguindo-se a coesão do território, agricultura e floresta (157).
Montesquieu: “O comércio tem virtudes pacificadoras na ordem internacional”
… E nacional, acrescentaria António Costa Silva à frase do filósofo francês, defensor da separação dos poderes. Costa Silva quis fazer as pazes com os setores do comércio e do turismo que, reconhece, se sentiram “subrepresentados” no plano preliminar. Aliás, em entrevista ao Observador, o presidente da Confederação do Turismo, Francisco Calheiros, tinha criticado a quase ausência do setor no plano de Costa Silva.
“Tenho imensa pena que [Costa Silva] não tenha tido tempo para poder falar com a Confederação do Turismo de Portugal. Todos sabemos também que desde a última crise de 2008, 2009 o setor que ajudou claramente o país a sair da crise foi o setor do turismo”, disse em entrevista ao Observador. “Não são três páginas para o turismo, é 80% de uma página“, criticou.
Francisco Calheiros. “8% de desemprego? Em plena crise Covid isto é nada”
No discurso, António Costa Silva quis redimir-se e vincou: “Precisamos de um setor turístico forte, mas combinado com os produtos de alto valor acrescentado”. Mas o problema é que o país até sabe “fazer”. “O que nos falta são as competências institucionais. Falhamos na gestão, na internacionalização, na venda de produtos, na integração nas cadeias de valor.”
Além do turismo, também o comércio representa “uma parte significativa” do PIB português e o gestor fez duas adendas ao plano inicial para focar mais ambos os setores. E garantiu que “não existiu qualquer intenção de menorizar este setor [terciário] face ao setor industrial”. Até porque espera que, com o evoluir do processo de globalização, “o comércio seja tido em conta”. “Vamos precisar muito de uma combinação virtuosa entre Estado e empresas“. Não que o Estado se deva substituir às empresas — são elas que “geram riqueza e prosperidade” —, mas deve haver combinação virtuosa. Já pôr as pessoas no centro “é proteger o emprego”.
Pedro Abrunhosa ou Graça Fonseca? “É preciso fazer o que ainda não foi feito”
Não, António Costa Silva não citou o músico Pedro Abrunhosa para dizer que “é preciso fazer o que ainda não foi feito” (mas podia). Atribuiu antes a citação à ministra da Cultura, Graça Fonseca, que terá proferido a frase “na sequência de uma reunião com o ministro [do Ambiente], Matos Fernandes”. E o que tem de ser feito? Costa Silva enumera: dar atenção ao interior, priorizar o ordenamento do território e a redução das assimetrias. Identificar as acessibilidade e as situações de pobreza. Olhar para a mobilidade — aliás, foram recebidas “muitas propostas” para assegurar o carregamento no espaço públicos de veículos elétricos.
E por falar em mobilidade: uma das grandes alterações face à primeira versão da Visão Estratégica foi na alta velocidade — onde houve um “consenso alargado“. O plano revisto já não defende a construção de um eixo ferroviário de alta velocidade em duas fases (a começar pelo troço Porto-Soure), mas em apenas uma. Durante a consulta pública, “foi proposta uma análise custo-benefício que veja se fazer [as ligações] de uma vez só não é mais benéfico”. Uma proposta que acolheu e que agora apresenta assim ao Governo a quem cabe a decisão.
António Costa Silva disse ainda que recebeu contributos no sentido de se adotar a bitola europeia na ferrovia, mas não defende esta solução a curto e médio prazo porque implicaria um “investimento colossal”. Fazer a troca de bitola implica um investimento que, pela sua dimensão, é difícil de quantificar e poderá tornar redundante o atual material circulante. A proposta de trocar a bitola apenas para as linhas internacionais implicaria a criação de mais uma descontinuidade, o que se pretende evitar”, lê-se na análise dos contributos. Foram também recebidos contributos para adaptar a capacidade dos portos portugueses, em particular Sines, “para a receção de supercontentores”.
Houve também um grande debate em torno da construção do aeroporto de Lisboa, com propostas de “um mapeamento das vantagens e inconvenientes das diferentes soluções”. “Não há escolhas perfeitas“, disse em relação à solução encontrada na base do Montijo. “É necessário mais depressa do que nunca completarmos esta infraestrutura“, defende Costa Silva.
Sófocles: “O homem é o ser do excesso, é o ser que viola todas as justas medidas”
Para Costa Silva, “não há definição mais precisa da nossa relação com o planeta” do que a frase de Sófocles, dramaturgo conhecido pelas tragédias gregas, como Édipo Rei. “Temos que mudar esta relação. Podemos negociar com sindicatos, organizações empresariais, mas não podemos negociar com a natureza“, frisa, salientado os riscos de uma crise climática.
Uma das adendas do gestor ao plano inicial é um maior ênfase na eficiência energética. “Portugal não tem tido um desempenho positivo na eficiência energética, em particular nos edifícios. (…) Há que dar toda a atenção ao aumento da eficiência energética nos edifícios, nos processos industriais, nas empresas e no consumo privado”, considera. O que sugere? A criação de dois programas de investimento: um para edifícios públicos, outro para privados (construídos antes de 2006).
Ford, Edison e o Gato de Schrödinger
Recuemos a 1900, a uma alegada aposta feita entre Henry Ford, fundador da Ford, e Thomas Edison, inventor da lâmpada elétrica, nas ruas de Nova Iorque. Qual a energia que vai dominar a matriz mundial no próximo século? Ford respondeu com o automóvel com motor de combustão, movido a petróleo. “Ganhou nos primeiros anos, mas muito provavelmente Edison [que escolheu a eletricidade] vai ganhar a médio e longo prazo“, arrisca Costa Silva.
O gestor serve-se deste exemplo porque, quatro anos antes, tinha-se reunido em Nova Iorque o primeiro congresso de planeamento urbano. Mas foi interrompido ao fim de dois dias sem solução para o problema do sistema de transportes em vigor. “Muita atenção às tecnologias e ciência, evitam os fanatismos e guerras tribais. É preciso equilíbrio e ponderação“, alertou.
Entre as propostas que recebeu está a substituição dos grandes autocarros a gasóleo nos centros urbanos por veículos híbridos de menor dimensão com o objetivo de poupar recursos, aliviar o tráfego e introduzir maior eficiência na circulação. E investir numa rede de metro de superfície e de elétricos. Aliás, o programa inicial já defende a expansão dos metros de Lisboa e Porto, em curso, assim como a criação de sistemas em cidades secundárias como Braga, Aveiro, Guimarães, Leiria, Évora e Faro.
Mais ou menos Estado? Os argumentos de António Costa Silva na última década
E onde entra o gato de Schrödinger? Em 1935, o físico austríaco Erwin Schrödinger desenvolveu uma experiência mental, hipotética, em que um gato cobaia está fechado numa caixa, com um tubo de veneno que se abrirá num determinado momento, que não é possível prever. Enquanto a caixa se mantiver fechada, para efeitos experimentais, o gato está vivo e morto simultaneamente, um estado possível para a física quântica. Costa Silva usa este exemplo para afirmar que o vírus “trouxe a mecânica quântica para dentro da epidemiologia” e “a questão da incerteza“, nomeadamente quanto a uma vacina. Os próximos tempos continuarão a ser de incerteza, mas Costa Silva diz que a situação vai “piorar antes de começar a melhorar. Para isso é preciso usar todos os trunfos do país”.
E quanto custa este plano? A resposta, que “não é fácil e vai exigir muito trabalho”, foi dada pelo primeiro-ministro, António Costa. Segundo o chefe do Governo, as medidas da Visão Estratégica serão financiadas com o PT2020, o Plano de Recuperação Europeu, o Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027 — que disponibilizam a Portugal, em conjunto, 57,9 mil milhões de euros (6,4 mil milhões ao ano) durante o período de execução do plano — e os Orçamentos do Estado. O primeiro-ministro encerrou a intervenção como abriu, a pedir um “consenso alargado” para a execução do plano.
O trabalho de Costa Silva, “um engenheiro que é poeta”, nas palavras do primeiro-ministro, não acaba necessariamente aqui. Na quarta-feira vai defender o documento perante os deputados. A partir daí, o trabalho é do Governo, que irá definir como vai colocar em prática as orientações do conselheiro. Na próxima semana, a 21 e 22 de setembro, o primeiro-ministro, António Costa, vai receber os partidos políticos e parceiros sociais. No dia 23, o plano é discutido em plenário. O primeiro esboço terá de ser entregue a Bruxelas até 15 de outubro.