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Celebrado pelo Governo português como uma grande vitória e atacado pelo principal partido da oposição como um mau acordo, o entendimento entre Portugal, Espanha e França para a criação de um corredor verde de energia tem ainda muitas incógnitas. Apesar das explicações já dadas por vários membros do Governo, o PSD insistiu em pedir no Parlamento esclarecimentos ao primeiro-ministro, que foi, aliás, quem anunciou este acordo após a mini-cimeira da semana passada. Mas, pela força dos socialistas, o tema ficou adiado para quando estiver concluída a discussão do Orçamento do Estado.
A decisão que levou ao acordo foi política e tomada aos mais alto nível pelos presidentes dos três governos — António Costa, Pedro Sanchéz e Emmanuel Macron. Caberá aos técnicos dos três países apresentar os fundamentos técnicos, o calendário de execução e os custos.
Só em dezembro — na cimeira de dia 9 em Alicante — serão apresentados mais detalhes técnicos e financeiros sobre o principal projeto — um gasoduto para gás e hidrogénio, que em vez de furar os Pirenéus vai atravessar o Mediterrâneo. O MidCat passou a chamar-se BarMar (Barcelona/Marselha) e em Espanha já lhe trocaram o nome de gasoduto para hidroduto. Mas afinal o que está em causa com esta troca? Porque foi necessária? Quem paga? Portugal fica a perder? Ou ganha?
Porquê trocar o gasoduto pelo hidroduto?
O hidrogénio verde (produzido a partir de fontes renováveis de geração elétrica) é considerado o gás do futuro, que irá gradualmente substituir o gás natural de origem fóssil, cuja disponibilidade está concentrada em alguns fornecedores, nem todos confiáveis, como se viu no caso da Rússia. Mas não só — a Nigéria falhou entregas a Portugal. Para a além da questão ambiental, o hidrogénio verde é visto cada vez mais como um dos passaportes para a independência energética da Europa e existe uma grande ambição e muitos fundos europeus para estes projetos.
A União Europeia tem prevista até 2040 uma rede de 53 mil quilómetros de hidrodutos, dos quais 60% aproveitará gasodutos já existentes. O novo projeto anunciado irá ligar-se à estrutura central desta rede (backbone) que passa por Marselha.
O gás do futuro foi um argumento decisivo. Isto porque França questionava a viabilidade económica de construir apenas um gasoduto, como estava previsto desde o acordo negociado em 2014 e confirmado em 2015 — e que caiu em 2019 precisamente por falta de interesse económico — Tanto mais quando o prazo longo execução deste projeto nunca permitiria dar a resposta à atual crise energética. A opção de fazer um gasoduto multiusos foi um dos trunfos jogados por Portugal para ultrapassar a oposição de Macron, disse António Costa.
Já Espanha apresentou a França uma alternativa de traçado que resolvesse o bloqueio ambiental dos Pirenéus. Se já estava a ser estudado um gasoduto marítimo para ligar Espanha a Itália e contornar a resistência gaulesa porque não ligar o mesmo à costa francesa ? A proposta convenceu o presidente francês.
Um gasoduto para gás pode transportar hidrogénio?
O projeto do BarMar prevê um gasoduto construído para poder transportar numa primeira fase o gás natural e gases renováveis (onde se inclui o próprio hidrogénio) e numa segunda fase, quando já houver produção industrial em escala, o hidrogénio verde. Tal implica que o material usado na construção dos tubos, aço, tenha especificações distintas do que é utilizado nos atuais gasodutos, o que está neste momento a ser estudado. A rede ibérica de gasodutos permite o transporte de gases renováveis (biogás, por exemplo) desde que misturados em quantidades limitadas com o gás natural. No caso do hidrogénio verde, a percentagem pode chegar aos 10% a 15% do gás veiculado, ainda que este gás tenha uma menor intensidade energética que o gás natural.
Com um horizonte temporal mais lato, o acordo entre os três países também exigirá que a atual infraestrutura de gasodutos na Península Ibérica venha ser intervencionada (o que pode obrigar à substituição da atual tubagem) para poder transportar mais, ou só, hidrogénio verde. Só assim Portugal pode tirar partido do potencial que tem de produção deste gás a preços mais baixos que o tornem competitivo para exportar.
Quanto tempo vai demorar, quanto custa e quem paga?
A ministra espanhola, Teresa Ribera, admite que a execução deste projeto possa demorar entre cinco a sete anos. Em França admite-se que será um investimento para concluir até 2030. O gasoduto para hidrogénio será um cabo submarino de 300 quilómetros que ficará depositado no solo do mediterrâneo e não enterrado, ainda que com algum tipo de peso que permita assegurar a estabilidade no fundo marinho. De acordo com fontes espanholas, os trabalhos de estudo e fundamentação deste projeto poderão demorar até um ano e há estimativas de custo que apontam para 3.000 milhões de euros, o que corresponde a 10 vezes mais do que o valor apontado para o MidCat original.
Os governos dos três países estão especialmente empenhados em assegurar fundos comunitários para a totalidade ou quase totalidade deste investimento. O MidCat chegou a ser reconhecido como um projeto de interesse europeu para fins de financiamento, mas perdeu essa classificação quando Madrid e Paris deixaram cair o projeto em 2019. A expetativa de Lisboa, manifestada pelo ministro do Ambiente e Ação Climática vai também nesse sentido, ainda que Duarte Cordeiro não afaste a necessidade de recorrer às tarifas pagas pelos consumidores finais para a parte portuguesa desta interconexão
O que tem de ser feito em Portugal?
O gasoduto marinho entre Espanha e França é a parte que salta mais à vista, e também a mais inovadora do corredor verde aprovado pelos três países, que inclui também intervenções em Portugal e em Espanha. Estas não diferem muito do acordo negociado em 2014 e que chegou à fase de projeto anos mais tarde, mas com a exigência de adaptar o novo troço de gasoduto já previsto ao transporte de hidrogénio. A terceira interligação entre Portugal e Espanha, entre Celorico da Beira e a fronteira (até ligar a Zamora) numa extensão de 160 quilómetros, tem uma estimativa de 300 milhões de euros, embora se admita que possa ficar mais caro por causa do encarecimento dos materiais necessários.
A REN está a estudar um novo traçado para ultrapassar o parecer desfavorável emitido pela Agência Portuguesa do Ambiente em 2018 ao corredor então proposto e que atravessava o Douro Vinhateiro. Dependendo do tempo que demorar o licenciamento, a sua execução poderá demorar três a quatro anos, com os prazos normais. No entanto, e tendo em conta o interesse estratégico e europeu do projeto, poderá ser adotado um quadro de licenciamento mais acelerado como foi feito para projetos de potência renovável.
O acordo para o corredor energético é só para o gás?
Apesar de o novo gasoduto ter sido o protagonista do anúncio, o acordo a três contemplou também as interconexões elétricas entre a Península e França, uma área na qual é reconhecida uma capacidade insuficiente. Em particular, os três líderes expressaram o seu apoio para acelerar os esforços para finalizar a interligação elétrica no golfo da Biscaia, cujo progresso estava parado, e “avaliar e implementar novas interconexões elétricas que liguem a França e a Espanha de forma a alcançar uma Europa eletricamente ligada”.
Só que esta parte não consta do comunicado divulgado em Portugal, na medida em que se foca na execução de um projeto que envolve Espanha e França, ainda que venha a ter efeitos para o mercado português. Na conferência de imprensa que deu logo na sexta-feira, António Costa explicou que este tema foi debatido pelos líderes espanhol a francês porque existiam divergências sobre a distribuição do financiamento que terão sido ultrapassadas.
Quem do PSD atacou o acordo? E quem respondeu do Governo?
As críticas do maior partido da oposição começaram logo na quinta-feira, quando foram anunciados os resultados da mini-cimeira pela voz de Jorge Moreira da Silva. Para além de candidato derrotado à liderança do partido nas recentes diretas, Moreira da Silva foi ministro do Ambiente com a pasta da energia e conhece bem o dossiê, já que foi o Governo do qual fez parte que conseguiu o primeiro acordo a três sobre o tema das interligações energéticas.
Agora Espanha e França deixaram de ter de construir as 2 interligações elétricas nos Pirinéus, ficando os consumidores portugueses impedidos de aceder aos benefícios do mercado europeu e os consumidores europeus impedidos de beneficiar da eletricidade renovável de Portugal
— Jorge Moreira da Silva (@jmoreiradasilva) October 20, 2022
As críticas de Moreira da Silva feitas no Twitter tiveram mais eco no sábado, quando o eurodeputado Paulo Rangel, também um candidato recente à liderança do PSD (perdeu para Rui Rio há quase um ano) deu uma conferência de imprensa reafirmando num tom mais forte as críticas já feitas pelo colega de partido.
Segundo o eurodeputado, “durante sete anos o Governo socialista fez muito pouco e nada conseguiu quanto às interligações elétricas. E agora o que se tinha conseguido numa negociação difícil em 2014 foi deitado fora contentando-se António Costa com uma fórmula vaga, remota e pia de que um dia mais tarde, sem prazo, se identificarão e implementarão novos projetos de interligação elétrica”.
As palavras de Paulo Rangel tiveram logo resposta no sábado do ministro do Ambiente que foi à televisão dar explicações que o seu ministério não tinha dado no dia da cimeira (apenas António Costa falou).
Mas a reação mais forte veio do próprio primeiro-ministro esta segunda-feira, quando acusou Rangel de não perceber nada de energia.
Já depois desta bicada de António Costa, foi a vez do presidente do maior partido da oposição, Luís Montenegro vir a jogo, afirmando que não teria assinado o dito acordo e pedindo uma discussão com profundidade e serenidade sobre o alcance da decisão.
A subida de tom da polémica chegou a Espanha, país onde não parece haver grande dúvida sobre os méritos deste acordo, o que irritou ainda mais os socialistas, já que consideram que as críticas do partido que está no grupo do Partido Popular do Parlamento Europeu podem fragilizar a posição portuguesa para conseguir fundos europeus para todo o projeto.
O aviso foi feito pelo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, outro dos membros do Governo, que em concertação com o ex-secretário de Estado da Energia — Jorge Seguro Sanches — veio defender as vantagens deste novo pacto na energia. Sem poupar críticas aos críticos que, referiu Tiago Antunes no Parlamento, falam sem conhecer os detalhes do compromisso e cujos ataques qualificou de “verdadeiro pipeline que mistura falsidades e demagogia” e uma “mistificação” cujo objetivo é transformar o que é um acordo “objetivamente bom” num mau acordo.
Quais são os motivos do PSD para atacar o acordo?
No essencial são duas. No que diz respeito ao novo projeto de gasoduto que vai ligar Barcelona a Marselha, os social-democratas argumentam que prejudica Sines e o seu terminal de gás natural liquefeito porque fica “secundarizado” no acesso à interligação face aos terminais espanhóis que ganham uma ligação direta a França e à rede europeia. “Vai valorizar os terminais espanhóis de Barcelona e Valência e faz com que Sines deixe ter importância estratégica. Fica assim em causa o objetivo internacional de fazer do porto de Sines a porta de entrada atlântica do GNL (gás natural liquefeito)”, afirmou Paulo Rangel.
Mas a principal oposição do PSD radica na leitura de que as duas interligações elétricas nos Pirenéus negociadas em 2014 e 2015 e reconfirmadas em 2018 caem neste acordo, o que seria um golpe para as expetativas portuguesas de exportar energia renovável barata para a França. De acordo com os social-democratas, estas interligações estavam garantidas, tinham um prazo e o financiamento assegurado.
“Ganhou a energia nuclear francesa, perderam as renováveis portuguesas”, sintetizou Paulo Rangel.
A falta de informação sobre os custos do projeto, o prazo de execução e o financiamento foram também matérias suscitadas.
O que respondeu o Governo?
No essencial rebateu os dois argumentos. No caso do porto de Sines e do terminal de gás natural liquefeito, quer o ministro do Ambiente quer o secretário de Estado dos Assuntos Europeus defendem que o traçado do anterior gasoduto era praticamente o mesmo, mudando apenas de terra para mar. “Não vejo qual é o problema de ser por mar e não por terra”, atirou o secretário de Estado Tiago Antunes.
O Governo argumenta que isso não faz grande diferença face ao traçado que estava previsto para o anterior gasoduto e que também passava por Barcelona. Especialistas ouvidos pelo Observador assinalam que o gás de Sines nunca chegaria à Europa central. Ao entrar na rede a montante, o gás de Portugal vai empurrando o gás que vai sendo injetado longo do gasoduto a partir de outras fontes em Espanha até chegar a França e assim sucessivamente
Para o Governo, o BarMar é muito melhor para Portugal que seu antecessor porque permite transportar também hidrogénio. Se no circuito do gás natural, Portugal seria apenas mais um elo da cadeia entre o fornecedor estrangeiro e o destino final, com o hidroduto, Portugal pode transportar um gás produzido cá — o hidrogénio verde — o que traz mais valor acrescentado.
O porto de Sines tem ainda algumas vantagens competitivas face aos concorrentes espanhóis, lembrou o ex-secretário de Estado da Energia no Parlamento. Está mais perto dos fornecedores que vêm do Atlântico — Estados Unidos, Trinidad e Tobago e África Ocidental — e é um porto de águas profundas, disse Jorge Seguro Sanches.
Sobre as interligações que não constam do acordo, o Governo garante que não caíram e que não estão lá porque não havia nada para discutir. E remete para as declarações feitas pelos ministros espanhol e francês que reafirmam que estas interconexões, as tais que passarão pelos Pirenéus, continua a ser avaliadas e que há vontade agora do lado de França em acelerar a sua execução.
Mas a verdade é que não existe um calendário nem um traçado ou custo para estas interligações, apesar de estarem ainda na lista dos projetos de interesse comum com acesso aos fundos comunitários e da sua conclusão ser apontada para 2030. E também é admissível que a resposta dada por António Costa, segundo o qual as interligações elétricas previstas para os Pirenéus poderiam seguir o mesmo trajeto do gasoduto marítimo, possa ter contribuído para a leitura feita pelo PSD.
O que já está em marcha é apenas interconexão marítima pela Biscaia, que quando foi celebrado o primeiro acordo entre os três países já estava prevista e cujo prazo de conclusão tem sido sucessivamente atrasado e agora é de 2027.
Nota ainda que as interligações elétricas funcionam nos dois sentidos. E se podem permitir a exportação renovável a partir de Portugal, também abrem mais a porta à importação da energia produzida a partir do nuclear francês. Daí que a elétrica francesa não se oponha a estas interconexões cuja demora na execução prevista para os Pirenéus tem mais ver com oposição ambiental e de interesses turísticos locais.
O que ficou acordado em 2014/2015 e porque não avançou?
Grande parte da polémica entre Governo e PSD foi alimentada por um compromisso de 2014 que foi objeto de um acordo entre os três países em 2015, quando Moreira da Silva era o ministro do Ambiente de Pedro Passos Coelho.
A declaração de Madrid assinada em 2015 por Pedro Passos Coelho, François Hollande, Mariano Rajoy e o então presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker, previa que a interligação elétrica entre França e Espanha atingisse os 8.000 MW em 2020, o que implicava fazer o já aprovado projeto do golfo da Biscaia (o tal que está em marcha mas muito atrasado) e duas novas interligações nos Pirinéus com corredores já identificados e investimentos quantificados. O objetivo era alcançar um objetivo de interligação elétrica de 10% entre França e Espanha até 2020.
É neste acordo que nasce o projeto do MidCat, o qual envolvia também que Portugal construíssse a terceira interconexão de gás com Espanha. O projeto declarado prioritário para receber fundos da UE tinha um cronograma para ser desenvolvido.
O secretário de Estado da Energia que se seguiu no primeiro Governo de António Costa foi à comissão de assuntos europeus dizer que o acordo de 2015 era uma “declaração” que estabeleceu “objetivos de muito boa vontade, mas que foram muito pouco mais do que isso”. Jorge Seguro Sanches elogiou a pressão feita pelo Governo do PS/CDS para impor o tema das interconexões energética entre a Iberia e a Europa nos conselhos europeus, mas disse que não havia uma vinculação dos países aos prazos e compromissos assumidos. Explicou que isso só foi feito em 2018 quando ficou consagrado num regulamento europeu os prazos de 2020 para o reforço da interligação para 10% e de 2030 para 15%.
Quase dez anos depois, e com outros protagonistas em cada um dos países, e uma crise energética de falta de gás na Europa, o projeto do gasoduto que tinha caído em 2019 renasce com a pressão portuguesa e espanhola que, desta vez, contam com um novo aliado, o chanceler alemão. A França de Macron começou por resistir e manter a sua oposição ao MidCat, mas acabou por aceitar a variante proposta por Espanha e Portugal. “Tínhamos de reinventar este pipeline se quiséssemos que existisse”, sublinhou António Costa.
O acordo de 2015 era melhor para Portugal?
Ainda que fosse, não chegou a sair do papel e estava bloqueado pela intransigência francesa, argumentam os socialistas, que também neste combate político acabaram por receber o apoio discreto do Presidente da República. Qualificando a oposição de Macron como um “obstáculo intransponível”, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que se estava num “beco sem saída”.
A irredutível oposição gaulesa. França mantém-se contra gasoduto nos Pirenéus
“A política é feita disto. Não é feita propriamente do ideal. É feita daquilo que é possível e aqui o possível é ou nada ou uma realidade como esta, abrindo caminho agora na cimeira entre Portugal e Espanha para ver como é o financiamento e vendo como é que se transforma em concretização aquilo que é muito importante, porque cada mês que passa, cada semestre que passa é um problema, não para Portugal e Espanha só nem sobretudo, é para a Europa porque se trata do fornecimento de gás e amanhã de hidrogénio verde para a Europa”.
E no caso BarMar, e considerando que o gasoduto do hidrogénio nunca será a resposta imediata aos problemas atuais, serão os próximos três a quatro anos a mostrar se será desta vez que a Península Ibérica deixa de ser uma ilha energética.