O bloqueio da Segunda Circular, em Lisboa, no início de outubro, é um dos lados mais visíveis das ações do coletivo Climáximo. O outro, embora também público, tem passado muito mais despercebido, embora seja importante para garantir a continuidade das ações do grupo: o recrutamento de novos membros. O Observador esteve no evento mais recente — na última segunda-feira à noite, no Goethe-Institut de Lisboa, e o mais participado até àquele momento — para conhecer os bastidores da atuação do Climáximo em que se angariam mais membros para os protestos do grupo, alguns dos quais têm acabado com detenções de manifestantes.
Longe das lentes das câmaras que têm acompanhado os protestos dos últimos dias, na última segunda-feira, Sara Gaspar e Danilo Moreira representaram o Climáximo na klassenraum 1 do instituto alemão, que já tem sido usada pelo grupo para apresentações do movimento. De papéis nas mãos, enquanto reviam as notas que levavam para a apresentação do coletivo, receberam os potenciais novos membros que chegaram a conta-gotas, sentando-se nas cadeiras dispostas na sala em semicírculo, para conhecer mais sobre o grupo.
Cronologia das últimas ações do Climáximo
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No último mês, o grupo inetensificou os protestos e os seus membros realizaram mais de uma dezena de ações, sobretudo em Lisboa. Vários membros acabaram por ser detidos pela PSP.
- 14 de outubro: cinco manifestantes paralisam a Avenida 24 de julho durante cerca de meia hora.
- 13 de outubro: dois manifestantes lançam tinta vermelha sobre um quadro de Picasso, exposto no Centro Cultural de Belém. A obra estava protegida por um painel de acrílico.
- 12 de outubro: membros do Climáximo invadem campo de golfe do Paço do Lumiar e despejam cimento nos buracos do campo. A ação foi divulgada nas redes sociais do Climáximo. O mesmo tipo de ação já tinha sido realizado em julho, no campo de golfe de Oeiras.
- 10 de outubro: três membros do Climáximo param o trânsito, depois de cortarem o cruzamento entre a Avenida de Berna e a Avenida 5 de outubro. Três elementos foram detidos.
- 8 de outubro: 12 pessoas são detidas por suspeitas de estarem a preparar uma ação de protesto no decurso da maratona de Lisboa.
- 7 de outubro: vidro do edifício da REN é estilhaçado por duas ativistas do grupo.
- 6 de outubro: Avenida de Roma bloqueada por três membros do Climáximo, que acabaram detidos pela PSP.
- 5 de outubro: fachada do edifício da REN é pintada de vermelho por manifestantes ligados ao grupo.
- 4 de outubro: três elementos do grupo foram detidos depois de bloquearem a circulação de carros na Rua de São Bento.
- 3 de outubro: um grupo de pessoas ligadas ao Climáximo paralisa o trânsito na Segunda Circular, em Lisboa. Depois de serem retirados por automobilistas, dois elementos do grupo penduram-se sobre aquela estrada, presos à ponte pedonal em frente ao edifício sede da Galp. Foram detidas 11 pessoas.
- 27 de setembro: membros do Climáximo lançam tinta vermelha sobre edifício da Feira Internacional de Lisboa, onde decorria um evento sobre aviação. Depois, invadiram o espaço e interroperam a sessão que estava a decorrer, onde também estava presente o CEO da TAP, Luís Rodrigues, juntamente com outros responsáveis do setor.
A sessão a que o Observador assistiu, no dia 9, era já a quarta organizada pelo grupo só no mês de outubro. Nos primeiros minutos, a sala ainda não estava sequer a meio da sua capacidade. Mas os lugares haveriam de acabar por ficar todos preenchidos à medida que a discussão avançava, com a chegada de mais participantes. As dúvidas — e até algumas reticências do público — sobre o tipo de ações do Climáximo também não tardariam. Mas no arranque o encontro, Sara Gaspar, 30 anos e formada em biologia, começou por lançar um desafio às sete pessoas que naquele momento tinha à sua frente.
Organizados em grupos de dois ou três (preferencialmente, com alguém que não conhecessem), os participantes deviam responder a duas perguntas: “O que é, afinal, o colapso climático?” e “O que me trouxe aqui hoje?”
Sem grandes reservas, os participantes começaram por partilhar como ali chegaram: alguns já acompanhavam as publicações do Climáximo nas redes sociais e viram o anúncio da apresentação; outros, nunca tinham ouvido falar do coletivo até à semana anterior, precisamente quando Lisboa acordou com uma das suas principais vias de circulação rodoviária bloqueada por manifestantes pendurados por cabos a uma ponte (batizada com o nome da Galp, cuja sede fica mesmo em frente ao local do protesto) e a projeção mediática do grupo voltou a disparar.
Entre aqueles que formavam o grupo reunido no Goethe-Institut houve também quem admitisse que se juntou de forma espontânea às recentes manifestações e acabou por ir ali naquela noite para conhecer melhor o que defende a Climáximo. Foi o caso de um jovem, que contou como, ao percorrer a Avenida de Roma — que alguns manifestantes também bloquearam, no início de outubro —, acabou por se juntar às ações do coletivo.
A discussão ainda durava quando mais participantes iam chegando, acabando por deixar ocupadas todas as cadeiras do semicírculo: 18, no total, entre membros do coletivo e curiosos, a maior parte jovens. Até ao final do encontro, falar-se-ia de “guerra”, do fim dos combustíveis fósseis e citar-se-ia António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas. Pelo meio, não faltaram críticas à cobertura dos meios de comunicação social e um debate sobre a legitimidade dos métodos usados pelo Climáximo para alertar para a crise climática.
Em “estado de guerra”
“O que nós estamos a fazer aqui, o que nós fizemos na última semana [no início de outubro] e a razão de muitos de vocês estarem aqui hoje não é patrocinar governos. Não é um assunto de gestão ou de governança. Não estamos preocupados com isso. Nós sabemos que isso não vai resolver nada. Nós estamos em estado de guerra.” As palavras, de Sara Gaspar, uma dos doze jovens da Climáximo que participaram no bloqueio da Segunda Circular, põem fim ao momento de partilha entre os grupos. Há em curso uma “guerra” declarada pelos governos e instituições, sublinha, defendendo que “toda a sociedade é responsável por resistir” — argumento que não é novo entre os membros do grupo.
Por esta altura, já os presentes estão informados da presença do Observador na sala. A possibilidade de acompanhar o encontro é lançada para todos e o silêncio que se segue é entendido como consentimento para se prosseguir. “Nós estamos em 1937 na Alemanha. Neste momento, estão campos de concentração a ser construídos e já estão pessoas a morrer”, continua Sara Gaspar, numa referência a locais como o campo de Buchenwald, construído nesse ano e que acabou por tornar-se um dos símbolos da perseguição de judeus (e de homossexuais e ciganos e outros) pelo regime nazi nos anos seguintes, e até ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
As palavras de Sara Gaspar, numa retórica que associa os hábitos do quotidiano atual às maiores atrocidades cometidas pelo ser humano contra a sua própria espécie ao longo dos séculos, fazem eco do argumento do Climáximo de que manter as emissões de gases corresponde a uma tentativa de construir novos campos de concentração em pleno século XXI. Enquanto isso, acrescenta, a população continua a fazer a sua vida como se nada fosse. “Continuamos a ir para o trabalho, para os nossos empregos, a fazer a nossa vida, a ficar presos no trânsito, a perder tempo nos transportes públicos e não existe um debate sobre isto, não existe uma consciência nem uma responsabilização sobre o que está a acontecer”, defende, enquanto os participantes ouvem atentamente.
É por isso que querem angariar novos membros e, como sublinharia Danilo Moreira, o mais calado dos dois, não é necessário chegar a todos: “10% já seria suficiente” para alertar para a causa. É para isso que servem as sessões que organizam com alguma regularidade — já estão marcadas mais duas, uma para 27 de outubro e outra para 4 de novembro –, que decorrem em diferentes locais e são orientadas por diferentes membros do grupo.
Não é a primeira vez que o coletivo organiza um evento no instituto alemão e outros movimentos de ação ambiental, como o ramo português do Extinction Rebellion, também já o fizeram. “No nosso trabalho a nível mundial na área da sustentabilidade, fomentamos o debate entre pessoas de diversos contextos culturais e sociais, com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável”, começa por justificar o instituto, numa resposta escrita ao Observador depois de ser questionado sobre a realização do evento do Climáximo nas suas instalações. “No âmbito do nosso apoio ao fortalecimento da sociedade civil, cedemos gratuitamente o nosso espaço para organizações da sociedade civil que pretendam debater temas atuais e de interesse para a sociedade”, acrescenta a mesma resposta.
O instituto refere ainda que são muitas as organizações e grupos de áreas da sociedade civil que procuram os seus espaços para trabalhar diversos temas, entre eles a sustentabilidade, pedidos que são aceites — desde que os grupos em questão “tenham interesses legais e pacíficos”, ressalva a instituição. “No caso de qualquer incitação à prática de crimes ou violação da lei, o direito à reunião nas nossas instalações é repensado (…). Apoiamos a participação e a ação cívica desde que não sejam cometidas quaisquer infrações à lei. Quando tal acontece, o direito de reunião nas nossas instalações é revogado, como já foi comunicado ao grupo Climáximo”, aponta o instituto, que parece não ter em conta as ações em que o grupo interrompe o trânsito, pinta fachadas de edifícios, tenta vandalizar obras de arte e invade propriedade privada para danificar equipamentos.
No interior da sala cedida pelo instituto, marcada desde o dia 8 de setembro, não haveria nada disso. Ficaria, contudo, a palavra de que, para lá daquelas quatro paredes, é necessário manter as ações de “disrupção pública”.
De peacekeeping nos protestos à desobediência civil
“Estamos numa autoestrada para o inferno e temos o pé no acelerador.” A frase, proferida pelo secretário-geral das Nações Unidas no seu discurso inaugural da 27.ª Conferência das Partes, no Egito, foi repetida por Sara Gaspar a mais de cinco mil quilómetros de distância e quase um ano depois, no Goethe-Institut. Entre avisos de que o “colapso climático está iminente”, António Guterres ainda viria a ser citado novamente, com alguém na audiência a sugerir mesmo enviar uma carta com um pedido para que se aliasse à causa do grupo.
As intervenções dos participantes foram-se somando ao longo de toda a sessão, com questões e sugestões não contidas, apesar do pedido para que fossem reservadas para o final: “Defendem a mudança de sistema?”, “como é que vocês se organizam”, “se isto já não é uma conversa, se é uma guerra, o que é que se faz e que custos tem?”
A resposta à última pergunta, explicaram os organizadores, depende daquilo que cada um estiver “confortável” a fazer para colaborar nas ações, e também das consequências a que estiver disposto a arriscar-se. Isso mesmo ficou claro no “formulário de participação” que circulou pelos presentes na sala, também disponível no site do Climáximo, e que questiona precisamente até onde os interessados em juntar-se ao grupo estão dispostos a ir.
As opções variam: estar disponível para “desobediência civil repetida (arriscar uma sentença de prisão)”; “um bloqueio de estrada (arriscar detenção)”; “agir em desobediência civil contra a guerra declarada pelo governo e pelas empresas, quando souber que um número suficiente de pessoas vão para a rua comigo”; “ter um papel de apoio nos protestos”, nomeadamente através de captação de imagem ou “peacekeping”. Para os mais reticentes, há ainda duas outras opções: “Ainda não tenho a certeza e preciso de mais informações” ou “por agora nada”.
Além destas formas de intervenção, são também apresentadas a possibilidade de ajudar a organizar palestras no contexto pessoal e social — em associações, escolas, instituições, empresas –, fazer donativos para apoiar o grupo com as despesas e participar numa das equipas internas. Os interessados em juntar-se ao movimento são também questionados sobre as suas competências, conhecimentos e experiência em várias áreas: edição de imagem e de vídeos, gerir redes sociais, pintar faixas, falar em público, análise de dados, organização de eventos, primeiros socorros, angariação de fundos, cozinhar para muitas pessoas.
Preencher o formulário — onde não consta nenhuma pergunta sobre a idade, apesar de ser indicado o risco de uma eventual detenção — e participar na apresentação do grupo é apenas o primeiro passo para aderir ao movimento. Os que se inscreverem são depois contactados e adicionados a um canal de WhatsApp, sendo necessário participar também numa ação de formação sem a qual, explicou Sara Gaspar, não é possível colaborar nas ações do Climáximo. Essa ação tem um carácter “prático”, e é também nesses encontros que são anunciadas algumas das datas de futuras ações, que apenas são divulgadas publicamente pelo Climáximo quando já estão a decorrer ou reivindicadas já depois de terem decorrido.
Entre o entusiasmo e a indecisão
Não faltou quem preenchesse e rapidamente entregasse o formulário, sem a menor hesitação. Mas houve também quem se mostrasse mais indeciso e a precisar de mais esclarecimentos antes de avançar. Joana Bértholo, que já pertence a outras organizações ambientais, como a Lisboa Possível e a Frente Grisalha, foi uma das que pediram mais explicações. “O que acham que vão ganhar com estas disrupções que afetam diretamente a vida das pessoas e que doem a pessoas que já estão saturadíssimas”, questiona. “Quero estar do lado certo da história, mas vejo uma opinião polarizada, uns contra os outros e lá em cima os intocáveis.”
Não é a única a levantar a questão, que, de resto, tem circulado em resposta às publicações do Climáximo nas redes sociais, com alguns utilizadores a elogiar os protestos “espetaculares” e a “luta ativa” e outros a atirar críticas pelos métodos utilizados para chamar atenção para a causa, que consideram “tudo menos democráticos”. No Goethe, as opiniões também se dividem, com sugestões de outras ações que a audiência considera serem mais eficazes, como a ocupação de prédios devolutos para lhes dar nova vida. A todos, o Climáximo responde do mesmo modo: “Já tentámos de tudo.”
“Já fizemos ações em frente à REN, no Ministério do Ambiente e Infraestruturas, paralisações, marchas, já fomos aos jornais e televisões, percorremos 400 quilómetros do país, falamos com grupos parlamentares. Então, o que é preciso fazer?”, lança Sara Gaspar, devolvendo a questão para um último debate entre os grupos antes do final do encontro, que naquele momento já leva duas horas.
Com o instituto prestes a fechar, o grupo ainda se reúne no exterior para uma última palavra de encorajamento e a maior parte parece sair da apresentação interessado em participar em ações do Climáximo, mas nem todos estão convencidos de que encontraram ali um lugar. É o caso de Joana Bértholo, que ao Observador explica que ao longo desta semana ficou sem saber como se posicionar perante as recentes ações do grupo. “Normalmente, para mim, é muito evidente que estou do lado dos jovens, dos ativistas. Acho que fizeram muito bem em bloquear a porta do Conselho de Ministros e toda uma série de ações que fizeram, mas vejo que as ações se têm vindo a radicalizar em crescendo, e claro que isso me preocupa pela integridade física deles e de também saber onde é que isto vai parar.”
“Sempre achei que a luta era contra as instituições e os governos e a sua inação e não contra o cidadão comum que está a tentar chegar ao emprego”, explica. Veio à apresentação, sobretudo, cheia de perguntas e com vontade de ouvir o Climáximo e entender o que estava por detrás da estratégia das últimas semanas. “Agora”, diz, “preciso de alguns dias para perceber se encaixo e se concordo.”