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Dois 'artistas' e um entendido em arte. Como funcionava o esquema de falsificação de obras de Cruzeiro Seixas e Cutileiro a partir da prisão

Durante quase uma década, dois reclusos de Paços de Ferreira terão imitado quadros de autores como Cruzeiro Seixas e Cutileiro a partir da prisão, que eram vendidos no mercado de arte do Porto.

Um envelope chegou à prisão de Paços de Ferreira. Foi enviado a “Manuel”, um recluso a cumprir pena ali, por uma prima sua. No interior do envelope estavam fotografias dos quadros do pintor português José Malhoa. Entre as muitas imagens dessa espécie de catálogo encontrava-se a de um desenho a carvão do mesmo autor, com data de 1932 e que representava o esboço do quadro “As Promessas”, a representação de uma festa religiosa, em que uma mulher está praticamente de joelhos e é agarrada por outra. Na prisão, “Manuel” era conhecido pela sua paixão pela arte e pelo talento para a pintura. Mas aqui não existia apenas paixão. Existia também prática. No ano passado, as autoridades perceberam que um esboço igual ao da fotografia que estava dentro do envelope tinha sido vendido num site de leilões em 2019. A imitação a carvão, com direito a assinatura falsa, rendeu mais de 3.500 euros e nunca foi recuperada.

Como esse, dezenas de outros quadros terão saído da cadeia de Paços de Ferreira entre 2015 e 2019. O esquema acabou quando a Polícia Judiciária fez buscas na sala de artesanato da prisão e percebeu que dois reclusos, “Manuel” e “Henrique”, passavam grande parte do seu dia rodeados de tintas e telas a falsificar quadros de artistas como José Malhoa, João Cutileiro e Cruzeiro Seixas, entre outros. O Ministério Público acabou por acusá-los (entretanto, ambos saíram em liberdade) de um crime de associação criminosa e 21 crimes de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada. Pelo menos a defesa de um deles pediu abertura de instrução e essa fase do processo, que serve para o tribunal avaliar se existem indícios suficientes para levar os arguidos a julgamento, começou esta quarta-feira no tribunal de Penafiel.

Dezenas de quadros saíram da cadeia de Paços de Ferreira entre 2015 e 2019. O esquema acabou quando a Polícia Judiciária fez buscas na sala de artesanato desta prisão e percebeu que dois dos reclusos que passavam grande parte do seu dia rodeados de tintas e telas estavam a falsificar quadros de José Malhoa, João Cutileiro, Cruzeiro Seixas e outros pintores de renome.

Mas “Manuel” e “Henrique”, que o Ministério Público acusa de falsificarem quadros, não são os únicos arguidos neste processo. Os reclusos pintavam, mas alguém teria de ir buscar os quadros ao estabelecimento prisional de Paços de Ferreira e ficar responsável por transformar as telas em dinheiro. Por isso, há mais dois arguidos: “Fernando”, um negociante de arte e o principal arguido, que o Ministério Público considera ser o cérebro deste esquema, e a sua ex-mulher, “Teresa”, que seria responsável por ir buscar alguns dos quadros à prisão e ajudar a colocá-los no mercado. Os dois estão acusados dos crimes de associação criminosa, aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, burla qualificada e burla na forma tentada.

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No total, e caso o tribunal de instrução decida avançar para o julgamento, “Fernando” arrisca vir a responder pela autoria de 65 crimes. Mas esta não é a primeira vez que este homem vai a tribunal: em 2019, a Justiça deu como provado que, em 2009 e em 2010, tinham sido praticados crimes de burla qualificada, falsificação de documentos e aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada e condenou-o a uma pena de seis anos de prisão e ao pagamento de uma multa de quase três mil euros.

Dois irmãos e uma paixão herdada do pai e refletida num esquema de falsificação de arte

A imitação a carvão de José Malhoa, que foi depois detetada num site de leilões pelas autoridades, não chegou à internet por nenhum dos quatro nomes apontados pelo Ministério Público. Foi “Fernando” quem o vendeu a outra pessoa, e foi essa pessoa (aparentemente sem qualquer ligação ao esquema de falsificação de quadros) quem acabou por inscrever a obra no leilão. O foco da investigação deteve-se em “Fernando”: é neste homem que o Ministério Público acredita que começou a teia responsável pelo alegado esquema de falsificação de arte a partir de uma prisão, no norte do país.

O negociante de arte, referem os procuradores do Ministério Público na acusação a que o Observador teve acesso, cresceu nesse ambiente. O pai tinha duas lojas no centro da cidade do Porto — uma de antiguidades e outra de arte sacra — e “Fernando” começou, ainda jovem, a sua carreira na compra e venda de obras de arte, seguindo os passos do pai. O seu negócio foi, aliás, além fronteiras e França era o país onde conseguia mais dinheiro. A inclinação da família para o setor da arte inspirou outros. Também o seu irmão, “Henrique”, acabou por seguir o mesmo caminho no negócio da compra e venda de obras. Acontece que “Henrique” não tinha só jeito para a venda, também sabia pintar.

Em 2015, o irmão do principal arguido entra na prisão de Paços de Ferreira e é nessa altura que decide ocupar o seu tempo na sala de artesanato, a pintar. Ali, outros reclusos usavam também a pintura como distração, enquanto cumpriam a sua pena. Mas "Manuel" destacou-se nesse grupo e tornou-se mais próximo de "Henrique".

Em 2015, o irmão do principal arguido entra na prisão de Paços de Ferreira e é nessa altura que decide ocupar o seu tempo na sala de artesanato, a pintar. Ali, outros reclusos usavam também a pintura como distração, enquanto cumpriam a sua pena, mas “Manuel” destacava-se. Esteve detido entre 2008 e 2020 e foi-se tornando mais próximo de “Henrique”, recém-chegado àquela prisão. A paixão pela arte funcionava como um elo entre os dois. “Manuel” era conhecido em Paços de Ferreira pelo seu talento e pela admiração por Cruzeiro Seixas.

“Fernando”, o cabecilha desta alegada rede, aproveitou então as capacidades dos dois reclusos da prisão de Paços de Ferreira — “Manuel” e o seu próprio irmão” — para colocar o plano em prática: os dois imitavam obras de artistas reconhecidos, as telas eram levadas, sobretudo, por “Teresa”, que fazia visitas regulares à cadeia, e depois eram vendidas no exterior. Segundo o Ministério Público, é provável que existissem mais pessoas com a tarefa de ir buscar as obras, mas não foi possível identificá-las.

O Ministério Público suspeita de que, quando as obras falsas chegavam às mãos de "Fernando", aquele que é considerado o cabecilha do esquema de falsificações imitava a assinatura dos artistas. Ou pedia a alguém que o fizesse — e essa é uma das dúvidas que a investigação reconhece na acusação.

Alguns quadros chegaram a ser fotografados à saída da prisão e passavam pelos guardas prisionais, sem que ninguém desconfiasse de que se tratavam de imitações. Foram, aliás, algumas dessas fotografias que permitiram às autoridades, durante as investigações, confirmar que os quadros que encontraram à venda (e que foram vendidos) tinham saído da cadeia de Paços de Ferreira. Mas entre as telas que saíam da prisão e as que eram vendidas havia uma diferença: a assinatura. Quando as obras falsas chegavam às mãos de “Fernando”, este imitava a assinatura dos artistas. Ou pedia a alguém que desenhasse a assinatura — e esta é uma das dúvidas que o MP reconhece na acusação, já que não conseguiu provar que foi mesmo “Fernando” quem falsificou as assinaturas de todas as obras encontradas. E há outro ponto importante: os quadros falsificados não eram uma cópia integral dos originais, mas sim uma inspiração, com traços característicos de cada autor. A assinatura, feita já fora dos muros da prisão, é que levava então os compradores a acreditar que estavam perante originais.

As tintas, as telas e um resultado com pouca qualidade

Além de garantir que as obras eram assinadas, “Fernando” tinha outras funções a seu cargo. Uma delas passava por escolher as obras que queria ver replicadas; outra, era garantir que as imagens  e replicar chegavam às mãos de “Manuel” e de “Henrique”. E aqui eram usadas várias estratégias: o já descrito método de envio de cartas por familiares e, também, o envio de fotografias das obras originais através de um telemóvel. Mas os reclusos queriam mais informação e, para melhorarem a sua técnica, requisitavam livros técnicos de pintura na biblioteca da prisão.

Já na fase de execução — a pintura das obras –, era preciso garantir que o materiais estava disponível na sala de artesanato. E aqui entrava, novamente, segundo o MP, “Fernando”, que garantiu durante pelo menos cinco anos a entrada naquela prisão de materiais de pintura, como pincéis, folhas de desenho, telas, aguarelas, tubos de tinta, frascos de óleo de linhaça, papel vegetal, lápis de carvão e papel químico.

As análises às tintas feitas nos laboratórios da Polícia Judiciária confirmaram que eram as mesmas que tinham sido usadas nos quadros falsos apreendidos. Mas os peritos da PJ foram mais longe e disseram até que, além de as pinturas não representarem um original, a sua qualidade era fraca -- a anatomia das figuras apresentava erros e as tintas não foram diluídas de forma correta.

Todos estes materiais foram encontrados pela Polícia Judiciária, em 2021, quando foram feitas buscas à sala de artesanato. As análises às tintas feitas nos laboratórios da PJ confirmaram que aquelas eram as mesmas que estavam nos quadros falsos apreendidos. Mas os peritos da PJ foram mais longe e disseram até que, além de as pinturas não representarem um original, a sua qualidade era fraca — a anatomia das figuras apresentava erros e as tintas não foram diluídas de forma correta, apresentando assim evidentes diferenças em relação às técnicas utilizadas pelos verdadeiros autores. E até o papel tinha fraca qualidade, sendo muito fácil de enrolar.

Milhares de euros em quadros e um site de leilões que acabou com o esquema de falsificação

Em abril de 2021, “Fernando” colocou várias obras falsificadas à venda num conhecido site de leilões. Uma obra com a assinatura de Cruzeiro Seixas e outra com o nome de Noronha da Costa tinham já licitações de 650 e de 800 euros, respetivamente, quando foram apreendidas pela Polícia Judiciária. E, logo a seguir, um dos funcionários daquele site decidiu entregar diretamente às autoridades uma aguarela com assinatura de Cruzeiro Seixas, que suspeitava ser também falsa e que tinha sido já comprada por 1.150 euros. Apesar de a licitação ter sido encerrada, o comprador nunca teve a obra nas suas mãos, já que foi apreendida antes de lhe ser entregue.

Confirmou-se que existia então um padrão de falsificação e, a partir daqui, foram descobertas outras dezenas de imitações. Mas a obra entregue às autoridades pelo funcionário não tinha sido colocada pelo principal arguido deste processo. Nesta altura, o mercado já estava a funcionar — as obras já tinham sido vendidas por “Fernando”, o alegado cérebro do esquema de falsificação, e estavam a ser revendidas. A Polícia Judiciária encontrou o vendedor daquele suposto Cruzeiro Seixas e percebeu então que aquela obra tinha sido adquirida em 2020, em conjunto com outra do mesmo autor, por 400 euros.

O Ministério Público adianta na acusação que o principal arguido conseguiu vender a uma pessoa, pelo menos, 22 quadros durante dez anos, entre 2010 e 2020. Nas mais de 70 páginas, os procuradores enumeram cada uma destas obras e, no total, "Fernando" terá recebido mais de 12.300 euros.

Só a esta pessoa — que colocou à venda o quadro falso com a assinatura de Cruzeiro Seixas — o Ministério Público acredita que o principal arguido tenha conseguido vender, pelo menos, 22 quadros durante dez anos, entre 2010 e 2020. Nas mais de 70 páginas, os procuradores enumeram cada uma destas obras e, no total, “Fernando” terá recebido mais de 12.300 euros.

E este não é o único caso descrito no documento: também um professor de história, que conhecia há muitos anos o arguido e com quem teria uma relação de confiança, acabou por ser enganado. Só em 2020 pagou cerca de 11 mil euros para receber falsificações, acreditando estar a comprar obras de arte autênticas.

Instrução começou esta quarta-feira e um dos reclusos desmente acusação

A defesa pediu abertura de instrução e a primeira sessão decorreu esta quarta-feira, depois de ter sido adiada uma vez, no mês passado. Também esta quarta-feira, ao Observador, “Manuel”, um dos reclusos que foi constituído arguido neste processo e que pediu abertura de instrução, negou todas as acusações feitas pelo Ministério Público.

O arguido contactado pelo Observador é acusado de ter pintado um esboço da obra “As Promessas”, de José Malhoa — o tal que o Ministério Público indica que foi feito depois de o recluso ter recebido uma carta de uma prima com a imagem. “Não, posso dizer categoricamente que não”, disse o ex-recluso, quando questionado sobre a autoria daquele esboço. “Esse esboço não existe. O Ministério Público fala muito desse esboço, porque foi vendido um. Só se sabe que ele [o alegado cabecilha] o queria vender. Mas nunca desenhei nada disso”, acrescentou.

"Regra geral, eu ia escolhendo. Se bem que às vezes ele dava algumas diretrizes: 'Não faças coisas muito coloridas, ou faz assim mais nestes temas, ou paisagem'. Agora, nunca me pediu para eu fazer um quadro de um autor famoso, até porque nem eu tenho competências para isso. Não é qualquer um que chega e faz um esboço de José Malhoa", disse um dos arguidos ao Observador. 

“Manuel” nega que tenha falsificado quadros de autores conhecidos, como Cruzeiro Seixas, e garante que nenhuma das pinturas que aparecem na acusação foram feitas por si. Mas há um ponto que confirma: costumava pintar e vender os seus quadros ao principal arguido. “Ele encomendava quadros e obviamente que eram pagos”, explicou. Se eram assinados depois de saírem da prisão de Paços de Ferreira, diz já não saber.

E diz também que a criatividade ficava do seu lado, apesar de receber algumas indicações do arguido acusado por mais crimes: “Regra geral, eu ia escolhendo. Se bem que às vezes ele dava algumas diretrizes: ‘Não faças coisas muito coloridas, ou faz assim mais nestes temas, ou paisagem’. Agora, nunca me pediu para eu fazer um quadro de um autor famoso, até porque nem eu tenho competências para isso. Não é qualquer um que chega e faz um esboço de José Malhoa.”

(Todos os nomes dos arguidos que foram usados neste artigo são fictícios)

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