Pois bem, meus caros leitores, esta série de dez objetos invísiveis do dia-a-dia, contada pela mão da Materialista, chega ao fim com este artigo. Por aqui passaram o copo de galão, a cadeira monobloco, o elástico, o esfregão da loiça, a bolacha maria, o tupperware, a escova de dentes, a palhinha e a mola da roupa. Chegou a vez de falar daquele que provavelmente é, destes dez objetos, o mais invisível de todos: o saco de plástico. Sim, aquele saco fininho do supermercado, normalmente branco, de duas pegas, com publicidade impressa. Aquele saco que ninguém vê (ou via), que toda a gente usa (ou usava) e deita fora (ou deitava). O tempo verbal varia entre o presente e o passado dependendo de quem lê, pois hoje em dia usar sacos de plástico comuns não é visto com muito bons olhos (“não quer antes um saco de papel?”, pergunta a senhora da caixa do supermercado levantando um sobrolho, enquanto molha o dedo num pano húmido de microfibra, cor de rosa mas já meio cinzento, para despegar um saco de plástico para dar ao cliente).
O saco de plástico tem uma forma difícil de descrever. Inicialmente, na sua origem espalmada e pouco tridimensional, é um retângulo com duas orelhas. Também é chamado de t-shirt bag, provavelmente pelas semelhanças que tem com uma t-shirt branca vulgar. Mas depois, quando é usado, transforma-se. Ganha uma forma nova, que não é a forma do que contém mas uma forma adequada a conter. Essa forma, imprevisível, larga e relaxada, transforma-se novamente logo que se pega nele, com a tensão provocada pelo peso. O saco, alongado, está agarrado às nossas mãos como se lutasse pela vida, para não cair.
Pode não ser muito evidente, mas um saco de plástico tem potencial sentimental. Tony Hoagland escreveu um poema chamado “There Is No Word”, em que descreveu na perfeição a sensação de sentir as alças de um saco de plástico a esticar nas nossas mãos:
“There isn’t a word for walking out of the grocery store
with a gallon jug of milk in a plastic sack
that should have been bagged in double layers
— so that before you are even out the door
you feel the weight of the jug dragging
the bag down, stretching the thin
plastic handles longer and longer
and you know it’s only a matter of time until
bottom suddenly splits”
O poema de Hoagland continua e não é só sobre o saco de plástico (ou, até, não é mesmo sobre o saco de plástico). É sobre aquela sensação de alguma coisa que se afasta progressivamente de nós à medida que excede a sua capacidade elástica, como ele diz, como acontece quando falamos com um velho amigo na rua que afinal já não é um amigo mas apenas um conhecido. Ou, até, é apenas sobre linguagem, sobre o facto de a linguagem não ter resposta para tudo, de não haver palavras para tudo, de, como diz Hoagland, a linguagem só esticar até determinado ponto e de haver buracos que não cobre, movendo-se à volta desses vazios. E realmente não tem, a linguagem, palavras para tudo. Haverá uma palavra para aquela sensação de ter as mangas compridas da camisola arrepanhadas quase até ao cotovelo quando vestimos outra por cima, ou de sentir o cabelo repuxado depois de desmanchar um rabo de cavalo apertado? Ou haverá uma palavra para não nos lembrarmos do nome de alguém, ou de algum sítio, ou de uma coisa, quando vemos a palavra ali à nossa frente, a flutuar em frente aos nossos olhos, mas não conseguimos lê-la? A linguagem não dá resposta a muitos desconfortos liminais, pequenos incómodos na fronteira da relevância.
Mas adiante. Quando finalmente o pousamos, o saco de plástico relaxa, como alguém que se espoja lentamente em cima de um sofá. A forma muda novamente, porque o seu conteúdo se baralhou, porque o pacote de leite caiu, ou a couve rebolou dentro do saco. Nunca volta à forma anterior, os vincos no plástico mudam e fazem outros ângulos, mesmo quando continua a conter as mesmas coisas. O saco de plástico tem esta característica genial de estar em constante mutação.
É difícil ver o saco de plástico como um objeto de design, porque na maioria das vezes um saco de plástico é para nós apenas uma forma de transportar coisas. Um saco é mais verbo que nome, é mais ação que substância. É sempre invólucro, membrana, e nunca conteúdo. É vazio, oco, desprovido de matéria, sempre acessório, nunca principal. Mas tem uma história.
Pamela Klaffke, que escreveu Spree: A Cultural History of Shopping, explica que só a partir do séc. XIX, com a massificação industrializada da produção de papel, é que as lojas começaram a fornecer embalagens e sacos para os produtos comprados (antes disso, cada um trazia a sua cesta). Os primeiros sacos de papel eram coisas esquisitas, em forma de cones, diz ela. Em 1852, e em resposta a essas novas necessidades, Francis Wolle, um inventor americano (que também era sacerdote e especialista em algas), patenteou uma máquina que produzia sacos em papel, um design mais tarde melhorado por Margaret Knight, uma operária e inventora também americana. Knight tornou o fundo do saco de Wolle direito, permitindo que se mantivesse em pé. Depois de lutas judiciais intensas, acabou por obter uma patente (além de muitas outras patentes para outras invenções) para a sua máquina de fazer sacos, em 1871. Seguiu-se outro americano, Charles Stilwell, que inventou as pregas laterais do saco de papel que conhecemos hoje e que o apelidou de SOS, self-opening sack, obtendo uma patente em 1883. Walter H. Deubener, um merceeiro, novamente, americano, reforçou o saco de papel e deu-lhe alças feitas de corda, obtendo uma patente em 1929 (contudo, o saco de papel de alças só viria a popularizar-se muitas décadas mais tarde).
Os sacos de papel pardo continuaram a ser a oferta predominante para carregar compras e mercearias até ao aparecimento dos sacos de plástico. Várias décadas depois da descoberta acidental do polietileno nos anos 30 do séc. XX (material plástico de que já falei a propósito das esponjas da loiça e dos tupperwares) e do seu uso durante a segunda grande guerra como material isolante de radares, uma empresa sueca chamada Celloplast inventou uns tubos de polietileno fino para empacotar objetos, que eram selados em baixo e abertos em cima. Ainda nessa década, um dos seus empregados, Sten Gustaf Thulin, aperfeiçoou o tubo de plástico e perfurou o seu topo, criando duas pegas. Tinha sido inventado o saco de plástico no design que hoje conhecemos. Nem tudo o que vem da Suécia, portanto, é da Ikea (apesar de a Ikea ter uns sacos reciclados jeitosos, tão jeitosos que inspiraram a Balenciaga a fazer malas iguais que custam mais de 1000 euros).
A Celloplast expandiu a sua atividade pelos Estados Unidos e pela Europa até à altura em que a Mobil, empresa norte-americana de petroquímicos, conseguiu nos anos 70 uma patente para produzir o saco. O saco de plástico chegou aos supermercados dos Estados Unidos pela mão da Mobil, que em 1976 lançou sacos decorados a azul e encarnado em comemoração do bicentenário do país. Mas os consumidores não foram imediatamente conquistados pelo novo saco. Aqueles que tinham de usar o seu carro para se deslocar queixavam-se de sacos de plástico tombados no assento de trás, coisa que não acontecia, diziam, com o saco de papel sempre direito. Aqueles que iam às compras a pé aplaudiam as pegas dos sacos de plástico, mas tinham dificuldade em acreditar que um material tão fino pudesse aguentar o peso. Susan Freinkel, que escreveu Plastic: A Toxic Love Story, descreve também o relato de Bill Seanor, da Mobil, que se recordava de como as pessoas não gostavam que os empregados das lojas lambessem os dedos para separar os sacos.
Talvez os leitores se recordem que também os tupperwares não tiveram muita adesão no início, e só uma estratégia diferente de vendas os transformou num produto de sucesso. No caso do saco de plástico, a sua produção barata e o pouco espaço que ocupavam nas lojas acabaram por forçar tanto empregados como consumidores à sua presença (mesmo com muitos dedos lambidos), e fizeram com que a partir do final dos anos 70 invadissem as lojas de todo o mundo. O saco de plástico alinhava com o boom do consumismo, com o aparecimento de grandes superfícies de consumo, com mais alimentos processados com prazos de duração superior, com melhores condições de conservação em casa, com a menor disponibilidade das donas-de-casa, muitas vezes também trabalhadoras fora de casa, com o maior poder de compra nas décadas a seguir à guerra. As idas às compras deixaram de ser diárias e avolumaram-se, um saco de papel em cada braço não era suficiente. Os sacos de plástico, amplos e flexíveis, puderam acomodar esta realidade e acondicionar os novos hábitos de consumo.
Um saco de plástico assume os nossos pesos e encargos, deforma-se por nós às vezes até rasgar-se, e depois acaba no lixo. Claro que o saco acaba por vingar-se, sobrevivendo no planeta sem se degradar mais de 500 anos, entupindo condutas, poluindo rios e oceanos e matando criaturas marinhas. As preocupações ambientais com os sacos de plástico levaram à imposição de restrições no início do séc. XXI: as medidas variam hoje muito por todo o mundo, mas vão desde cobrar um valor por cada saco de plástico, incentivar a reutilização, a devolução ou a reciclagem ou mesmo deixar de disponibilizar sacos de plástico. Todos acompanhámos esta transição, assim como começámos a ver nos supermercados e nas lojas sacos em papel, sacos de plástico reciclados mais fortes e não descartáveis e sacos de pano. Curiosamente, com a Covid-19, os sacos de plástico – e, em geral, os objetos descartáveis – tiveram um renascimento pontual, por serem considerados mais higiénicos. A Covid-19 trouxe um lixo pandémico considerável, entre sacos de plástico, máscaras faciais e outros produtos descartáveis.
A demonização do saco de plástico tem sido intensa (como acontece com as palhinhas, lembram-se?). Ao mesmo tempo, e prevendo-se o seu desaparecimento, existem coleções pseudo-museológicas de sacos de plástico, uma espécie de cromos vintage que, sem branquear as consequências ambientais do plástico, puxam pela lágrima daqueles que sentem a nostalgia em polietileno. Para estes colecionadores, o saco de plástico é uma espécie de lobo no ecossistema dos objetos: ninguém gosta muito dele porque mata muitas galinhas (ou neste caso muitas tartarugas), mas há tantos caçadores (ou neste caso tantos defensores do ambiente) que está em extinção e é preciso preservá-lo.
O saco de plástico não é inocente, obviamente, mas também não é o lobo mau que se pensa. Basta uma curta pesquisa para encontrar inúmeros artigos e estudos a defender que nem o saco de papel nem o saco de pano são perfeições ecológicas, bem pelo contrário. Aparentemente, produzir um saco de papel ou de pano consome muito mais energia do que produzir um saco em plástico. Aliás, os sacos de pano são ainda piores, porque sendo feitos de algodão, muitas vezes não sustentável e proveniente de agricultura intensiva, têm uma pegada ambiental significativa. Pode não ser muito hipster andar com um saco de plástico do Continente, mas a verdade é que, ao contrário do muito requisitado saco de pano preto e branco da New Yorker, não está assim tão desalinhado com a cerveja artesanal, com a bicicleta da Brompton, com a comida vegana e com a aula de yoga semanal.
O problema do saco de plástico não é, por isso, o seu custo ambiental, mas sim o facto de ser deitado fora depois de uma primeira utilização e de assim criar uma enorme quantidade de lixo. É irónico, aliás, que Thulin tenha pensado nos sacos de plástico como objetos duradouros e que os tenha inventado precisamente como solução ecológica, numa altura em que milhões de árvores eram abatidas para produzir sacos de papel. Para Thulin, que andava sempre com um saco de plástico dobrado dentro do bolso, os sacos de plástico deviam ser usados vezes sem conta.
Não deixa de ser importante perguntar, por isso, por que razão as pessoas, de um modo geral, sempre deitaram fora os sacos de plástico das compras.
Uma resposta mais imediata encontra-se nos sacos anteriores, de papel pardo, que também eram descartados. Um saco de papel tinha uma grande probabilidade de ficar imprestável com a sua utilização, ou porque se rasgava, amachucava ou molhava. Os consumidores estavam, por isso, habituados a deitar fora os invólucros que usavam para transportar as suas compras. A passagem para sacos de plástico trouxe mudanças no transporte, material e quantidade transportada, mas continuou a substituir completamente o saco de papel pardo, não acrescentou nenhuma função.
Mas há outras explicações possíveis. Um dos métodos que pode ajudar a identificar essas explicações é a teoria Ator-Rede, desenvolvida, entre outros, pelo sociólogo francês Bruno Latour. De acordo com esta teoria, que tem servido como matriz metodológica em muitas disciplinas, incluindo na história do design, a realidade não distingue o que é material e o que é social, e tanto os humanos como os não-humanos, processos e instituições interagem como atores em rede, num contexto específico. Assim, os não-humanos (objetos, por exemplo) agem (ou são postos a agir) sobre outros não-humanos ou sobre humanos, desenvolvendo relações, modificando o seu comportamento ou influenciando as suas decisões, o que por sua vez também poderá levar a alterações desenvolvidas pelos humanos nos atores não-humanos.
Estas linhas só permitem uma abordagem grosseira e superficial à teoria Ator-Rede, mas mesmo assim oferecem algumas respostas. Em primeiro lugar, o saco do plástico surge na era de ouro do plástico descartável, uma bandeira da libertação das mulheres das cozinhas, um sintoma da nova modernidade e dos novos materiais. Nesta rede de objetos de plástico, tudo gritava para ser deitado fora depois de utilizado. Se tudo o que era plástico era deitado fora, por que razão se usaria novamente um saco de plástico? Além disso, a narrativa injetada nos sacos de plástico por fabricantes e por lojas era uma narrativa de abundância e proliferação e, também por isso, de irrelevância. Os sacos eram produzidos aos milhões, todos iguais uns aos outros. Quando um saco não aguenta o peso, essa narrativa de abundância sugere enfiar-se o saco num outro saco, exatamente igual, que encaixa na perfeição, ou usar outro saco, entre as dezenas de sacos que o empregado do supermercado tem em cima da caixa, para distribuir o peso. O facto de os sacos não terem no passado um custo direto para o cliente, uma clara ação de todos os atores interessados no consumo de mais sacos de plástico (as fábricas), no consumo de mais produtos da loja (os supermercados) e no aumento do consumo em geral (as instituições acima deles), torna-os tão numerosos quanto insignificantes. Interessava a esses atores que o saco de plástico fosse mais uma categoria de coisas substituíveis do que uma coisa singular, que fosse apenas uma membrana sem importância ontológica que ultrapassasse a sua função, que não tivesse valor estético ou sentimental.
Mas a explicação mais verosímil para a sua curtíssima vida encontra-se no design e na materialidade do próprio saco. É o próprio saco que é o ator mais empenhado na sua destruição. Um saco de plástico, antes de ser usado, é uma película lisa e direitinha de plástico virgem. Depois de usado, e depois de passar por múltiplas formas, forças e tensões, o saco de plástico já não volta àquele estado pristino inicial. Quando não se rasga ou fica com furos, o saco de plástico fica inevitavelmente amachucado e cheio de vincos, por vezes deformado, por vezes sujo (alguém guarda o saco de plástico onde vem o peixe fresco?). É preciso esforço e dedicação para o endireitar e dobrar, para se assemelhar ao que era inicialmente, e nunca fica igual. O facto de o material ficar com um ar acabado é um forte sinal para quem o usa de que acabou mesmo. É o próprio material que transmite essas mensagens, que diz que está cumprida a sua função. Mesmo que possa ser utilizado muitas mais vezes, o design do saco de plástico e o estado em que fica influenciam as decisões dos atores humanos e determinam o seu comportamento. Se pusermos o saco de plástico, com estas características, naquela rede de abundância e irrelevância, vemos que os consumidores também sabem que terão um exército anónimo de sacos imediatamente disponíveis, novinhos em folha, quando voltarem ao supermercado. Paradoxalmente, e mesmo sendo todos iguais, os sacos de plástico têm muitas vezes logotipos da loja de onde vieram, o que não incentiva ao seu uso posterior em lojas diferentes. Quem nunca sentiu um ligeiro embaraço ao levar um saco do Lidl para fazer compras no Pingo Doce que levante a primeira pedra.
Para influenciar as interações nessa rede, agora num sentido contrário, vários atores, entre os quais governos e empresas, tentaram introduzir novos atores não-humanos, como sacos de plástico pagos, de design mais apelativo e mais robustos, reciclados, que se mantêm num estado próximo ao estado inicial durante mais tempo. É mais difícil deitar fora um saco que se paga e cujos materiais gritam durabilidade (plástico mais grosso, pegas coloridas cosidas), com imagens de azulejos, pimentos em fundo amarelo, elétricos lisboetas, golfinhos ou bananas em padrão, do que um mísero saco branco com a marca do supermercado. Os supermercados não deixaram de disponibilizar sacos de plástico, apenas os tornaram mais definitivos aos olhos de quem os utiliza – acabando também com as lambidelas de dedos dos empregados de caixa.
Não que eu tenha saudades, mas estas interações entre plástico e saliva (ou com o dito pano húmido cor de rosa) ainda eram o que trazia alguma humanidade às nossas idas ao supermercado. Hoje, na maior parte deles, até temos a opção de pagar em caixas automáticas, com ecrãs de toque, onde passamos nós os códigos de barras e esperamos pelo bip, e onde a máquina, sempre simpática (e sem cuspo, apesar de algumas dedadas gordurosas do cliente anterior), nos cumprimenta com mensagens de orientação asséticas. Hoje, podemos ir ao supermercado e não interagir com nenhum ator humano.
Os supermercados pertencem a um mundo que o antropólogo francês Marc Augé chama de supermoderno, onde há uma aceleração massificada do tempo, uma pressa frenética constante. Supermodernidade é uma realidade onde tudo escoa depressa e eficazmente, circulando em respeito por regras impostas por uma qualquer entidade superior. De facto, hoje em dia o prefixo super parece estar aliado a velocidade; o mundo supermoderno faz-me lembrar a Cycle Superhighway e o Super Sewer de Londres, mega-infraestruturas desenhadas para escoar depressa (seja ciclistas ou dejetos). Como tudo escoa e nada permanece (seria trágico na Cycle Superhighway ou no Super Sewer, pelo menos), na supermodernidade existem os chamados não-lugares, neologismo criado por Augé. Os não-lugares são, efetivamente, sítios que escoam pessoas, que servem uma função transitória (comprar alguma coisa, viajar) sem convidar a uma permanência indefinida. Num não-lugar, o tempo está contado (esperar por um avião num aeroporto), ou pretende-se que seja o menor possível (no supermercado), e a tal entidade superior cria todas as condições (letreiros, mensagens, caminhos de circulação definida) para que os utilizadores não divaguem. Para entrar num não-lugar, diz Augé, há um ritual de acesso (pagar um bilhete ou o parque de estacionamento, por uma moeda no carrinho), e as relações que se estabelecem são entre cada utilizador e o espaço, através dos letreiros, da voz no altifalante que nos fala das promoções, das legendas com os preços, das setas a indicar os frescos, da senhora hospedeira a mostrar a todos como por o cinto (que aqui é mais um robot de farda que um ser humano, treinado para dizer sempre as mesmas palavras). Não são espaços pensados para o encontro do outro. Todos os restantes utilizadores estarão numa relação equivalente com o espaço, mas não entre si. Aquelas máquinas automáticas nos supermercados exacerbam o caráter de não-lugar dos supermercados, que ainda tinham alguma réstia de lugar nas caixas de pagamento, que faziam a passagem para o mundo lá fora. No meio disto tudo, os sacos de plástico de supermercado são pequenos pedaços de não-lugares, de espaços de transição, que trazemos connosco. Não admira que os deitemos fora.
A visão de Augé é um pouco deprimente. Na verdade, e como qualquer espaço experienciado por humanos, há sempre pequenos espaços oxigenados com relações interpessoais. Augé também reconhece que os não-lugares são perceções do espaço, dependem de quem os experiencia e para que fim, e que também podem ter e ser lugares ao mesmo tempo (basta lembrar, por exemplo, que muitos supermercados têm agora cafés e pastelarias incorporados, pequenos oásis de humanidade depois da secção dos congelados). E há também subversões, micro-revoltas, algo parecido com o que Michel de Certeau dizia sobre as táticas dos indivíduos contra as estratégias dos poderes que estão acima deles (lembram-se da mola da roupa e dos estendais?). Eu então farto-me de recorrer à micro-revolta contra a supermodernidade, quando combino encontrar a minha mãe ou a minha madrinha algures entre o frigorífico dos iogurtes e a estante dos ovos e ali ficamos à conversa uns minutos enquanto os miúdos pedincham gomas e chocolates. Esses encontros esquivos (às vezes os únicos minutos em que conseguimos estar juntas durante a semana) entopem os super corredores do supermercado e dificultam o escoamento dos múltiplos carrinhos de compras que, muito embora não sejam nem supermodernos nem super rápidos, têm mais pressa do que nós.
Há muitos não-lugares nos nossos lugares do dia-a-dia, além de aeroportos e supermercados. Um exemplo é a lavandaria self-service, nome em português pouco sedutor para o que na língua inglesa se chama charmosamente de laundrette (como não imaginar logo um cenário do Wes Anderson ao dizer laundrette?). Mas talvez o mais emblemático seja a sala de cinema, um espaço que se acede com um bilhete rasgado e onde estamos durante uma hora e meia, juntos mas sozinhos. Onde o escuro exacerba a solidão coletiva e onde ninguém conversa, sob pena de levar com um chiu e um olhar matador (apesar de, por vezes, existirem algumas experiências relacionais na última fila). A teoria de Augé ainda fica mais complicada se pensarmos que no cinema assistimos muitas vezes a filmes eles próprios sobre não-lugares, que se passam em supermercados, ou terminais de aeroporto, e que normalmente se focam nas perturbações desses não-lugares por experiências relacionais. Um encontro inesperado no terminal do aeroporto, um assalto no supermercado, uma relação de amizade que nasce entre os enlatados e os detergentes, não há nada de que o público goste mais que de uma boa disrupção de um não-lugar no cómodo assento providenciado por um outro não-lugar (voltando ao poema de Hoagland, não deve haver nenhuma palavra para isto). Os próprios filmes, aliás, se forem ficção, são portais para outras camadas da realidade, algo a que o filósofo francês Michel Foucault chamou de heterotopias, situações complexas que criam um espaço separado do espaço onde estão, numa espécie de multi-dimensão (sim, entre o Certeau, o Augé, o Foucault e mais um par deles, incluindo o sociólogo Henri Lefebvre a que pouparei os meus leitores, eu também me pergunto o que se passa com os intelectuais franceses e a sua obsessão pelo espaço e pelas geografias humanas).
Os filmes, sobretudo quando refletem hábitos, cenários, tradições e objetos da sua contemporaneidade, ainda que em narrativas ficcionais, são valiosas fontes primárias para historiadores do design. E é claro que, nesses não-lugares corrompidos que são os supermercados, que vemos nos não-lugares que são os cinemas, aparecem sacos de plástico. Não se preocupem que não vou falar aqui de Visconti, Godard ou Bergman. Para equilibrar o Latour, o Augé e o Foucault queria mesmo era falar de rom-coms à la Nora Ephron (todos os leitores menores de 35 anos podem agora ir à wikipédia ver do que estou a falar).
Afinal, as comédias românticas, no seu aconchego banal, querem chegar perto do público, verbalizar as suas angústias e desejos, reproduzir os seus hábitos e preferências. São filmes mais suspiracionais do que aspiracionais, são histórias de empatia, que refletem o público quase como um espelho (espelho que também é ele próprio uma heterotopia, o que faria das rom-coms duplas heterotopias, mas não vamos por aí). As comédias românticas do fim do séc. XX e do início do séc. XXI têm cenários do dia-a-dia (porém sempre passados em bairros de Nova Iorque, Londres ou de outra cidade trendy) e mostram marcas e objetos da altura em que foram realizadas (cuja leitura, claro, tem de considerar o propósito do filme, as intenções do realizador, as camadas de interpretação e curadoria, entre muitas outras coisas). Não poderiam, por isso, evitar o saco de plástico ou o mais estético saco de papel pardo. Pedindo perdão aos especialistas em cinema, convido-vos a por uns óculos de história do design e a percorrer algumas dessas cenas.
No filme Você Tem Uma Mensagem (You’ve Got Mail, 1998), Kathleen (Meg Ryan) é dona de uma livraria infantil, uma loja carregada de memórias que herdou da mãe, situada no Upper West Side em Nova Iorque. A caminho da sua loja de manhã, Kathleen passa por uma carrinha de uma padaria, que deixa vários sacos de papel pardo cheios de pão junto a uma montra. O barulho dos sacos de papel a serem pousados no chão entra no ritmo da música de fundo e, harmoniosamente, marca o passo de Kathleen, segura e feliz (no fundo, o universo está sincronizado e tudo corre bem). Kathleen leva num braço a sua mala e, na outra mão, leve, um saco de compras de pano, branco cru, que tem impresso o logótipo da sua loja. Pelo caminho cruza-se com várias pessoas (uma delas, uma outra mulher, que leva um saco de plástico na mão), entre as quais Joe Fox (Tom Hanks), o dono de uma enorme livraria que ameaça o pequeno negócio de Kathleen.
Kathleen chega à loja e rapidamente ficamos a saber aquilo que o saco de pano já indiciava. Para Kathleen, nada é descartável, desde a sua própria loja até aos sacos de pano. Kathleen tira rebuçados de outro saco de pano, e põe-nos dentro de um frasco de vidro para dar às crianças que visitam a livraria. Quando Joe aparece na loja com duas crianças (uma sua tia, outra seu irmão, famílias complicadas) e uma delas espirra, Kathleen oferece-lhe um lencinho de tecido seu, explicando que não se deita fora (apesar de em outras cenas usar lenços descartáveis; o lencinho é já um sinal de que se está a formar ali algo que irá permanecer). E põe os livros que Joe compra dentro de um saco de pano da loja, que Joe segura e acaricia, sentindo o tecido e comentando: nice! (novamente, um sinal palpável de que haverá ali algo mais duradouro). Kathleen traz sempre o seu saco de pano para a loja todas as manhãs; quando começa a vender o stock para se preparar para fechar a loja definitivamente, vai buscar um molho de sacos de pano e de papel (nunca de plástico) para por os livros dos clientes. Por seu turno, a megaloja de Joe (que, em comparação com a loja familiar e não descartável de Kathleen, é sobretudo um não-lugar) também tem sacos de pano, num expositor, mas os livros que os clientes compram nas caixas são postos em sacos de plástico (claro).
Joe e Kathleen apaixonam-se através das palavras que enviam um ao outro pela internet, numa heterotopia virtual a dois (não é que a minha vida dê um filme, mas também foi assim que acabei casada). Trocam emails sem se conhecerem. Ao mesmo tempo, e apesar da rivalidade dos seus negócios, vão-se aproximando na realidade sem que Kathleen suspeite que Joe seja o seu correspondente. Depois de almoçarem juntos, Joe and Kathleen passam por um mercado de rua, onde várias pessoas aparecem com sacos de plástico brancos na mão. Ambos compram pequenas coisas, uma manga, umas maçãs, e sentam-se num banco de jardim, cada um com o seu saco de plástico branco, onde acabam por petiscar aquilo que compraram enquanto conversam. O encontro parece ter suavizado a rivalidade que existe entre eles e combinam novo encontro, levando cada um o seu saco de plástico (um objeto temporário, mas que partilham, e que mostra estarem a chegar a um ponto de entendimento). Joe aperta o topo do seu saco nas mãos, nervosamente, como se o sufocasse, enquanto Kathleen o enfia graciosamente no seu pulso.
Do outro lado do oceano Atlântico, o Diário de Bridget Jones (Bridget Jones’s Diary, 2001) começa com Bridget (Renée Zellweger), solteirona inglesa doce mas falhada, a chegar a casa dos pais no Natal. Bridget leva na mão uma mala de viagem pequena, a sua mala de mão e um saco de plástico do Tesco, conhecido supermercado inglês, com presentes. A mala de viagem, meio gasta, e o saco de plástico mal amanhado, mostram que ainda não tem a vida resolvida. Quando chega, a mãe critica a sua roupa, e Bridget sobe as escadas cabisbaixa, reduzida a uma criança, para vestir aquilo que a mãe quer. O saco do Tesco, que leva pelas escadas acima na mão, braço para baixo, derrotado, acompanha o movimento conformado do seu corpo. Mais tarde, já depois de conhecer Mark Darcy (Colin Firth), Bridget interrompe o seu trabalho junto dos Royal Courts of Justice em Londres para comprar cigarros e pastilhas elásticas numa pequena loja. É no preciso momento que a senhora da loja está a por as suas compras dentro de um saco de plástico de riscas azuis claras que entra Mark, e que Bridget percebe que se atrasou para a entrevista que queria fazer. Novamente, um saco de plástico empacota a sua derrota. Mark consegue que Bridget realize a entrevista, e esta regressa a casa vitoriosa, agora com dois sacos do Tesco cheios não de vícios mas de verduras. Bridget também faz anos, e quer organizar um jantar com os amigos. Passa triunfante pelo Borough Market em Londres, os sacos do Tesco seguros por uma mão mais confiante, num braço dobrado em tensão junto ao peito. Ainda assim, os sacos de plástico, destruturados, antecipam um jantar fracassado. O alho francês que deles espreita, graças à inépcia de Bridget na cozinha, dá origem a uma sopa azul que ninguém come. Claro, as peripécias de Bridget só aproximam Mark, que nunca transporta sacos de plástico mas apenas uma mala executiva de pele impecável, e que está sempre a postos para a socorrer.
Se o segundo filme da saga de Bridget Jones não recorre muito ao saco de plástico, o terceiro, O Bebé de Bridget Jones (Bridget Jones’s Baby, 2016), volta ao tema. Bridget está grávida e ainda não organizou a sua vida. Não sabe se o pai do bebé é Mark ou Jack (Patrick Dempsey), que conheceu num festival de música. Mark deixa de falar a Bridget quando fica a saber que pode não ser o pai e Bridget, desgostosa, continua a fazer a sua vida, acompanhada por Jack. Passeia com a sua amiga Shazzer (Sally Phillips) e, enquanto os filhos desta brincam com Jack ao longe, as duas amigas sentam-se num banco de jardim. Bridget tem um saco de compras ao seu lado, agora já não de plástico mas de ráfia ou tecido, um saco duradouro. Shazzer aconselha Bridget a perguntar-se se consegue imaginar-se a envelhecer ao lado de Jack, e não ao lado de Mark. O saco, que diz “Bag for Life”, tem ali a resposta.
No fim da gravidez, deprimida e confusa, Bridget arrasta-se com a sua mala de mão e um saco de plástico cor-de-laranja do Sainsbury, outro supermercado conhecido inglês, para o multibanco. A mala é da Mulberry, marca cara que mostra que Bridget já evoluiu na sua vida profissional, mas o saco de plástico do supermercado ainda a prende ao seu passado remediado e ao falhanço que é a sua vida (tanto o Tesco como o Sainsbury não são supermercados de elite). Bridget não consegue lembrar-se do código (uma alusão ao suposto cérebro de grávida) e o cartão fica preso na máquina. Seguem-se várias cenas de autocomiseração com uma banda sonora deprimente de fundo. Bridget pede desculpa ao bebé por não estar a resolver a vida de ambos e sai, meio desorientada, do banco, deixando lá a sua mala e o saco. Não conseguindo voltar para trás para recuperar as suas coisas porque a porta se fecha, Bridget corre pela chuva até chegar a casa e, desistindo, senta-se no chão ao pé de um monte de lixo que está à sua porta, até que Darcy chega para a salvar e a levar ao hospital para ter o bebé. No fundo, ao abandonar tanto a mala como o saco atrás da porta do banco, Bridget está a entrar numa nova fase da sua vida, uma fase que dispensará a superfluidade da mala e que a libertará da precariedade de um saco de plástico.
Estes filmes usam o saco de plástico para fins diferentes. Em Você Tem Uma Mensagem, os sacos mostram inicialmente como Kathleen e Joe pertencem a realidades distintas. Kathleen é saco de pano macio e gracioso, não descartável, Joe é frenético e pouco apegado, como os sacos de plástico que espreme nas mãos. Mas no fim também simbolizam a aproximação das personagens – a atenção dada por Joe ao saco de pano da loja de Kathleen, os dois sacos de plástico brancos quando estão sentados no banco. Nos filmes de Bridget Jones o significado do saco de plástico é diferente. É uma questão de status (Bridget nunca aparece com sacos do Waitrose, por exemplo, e Mark jamais aparece com sacos de plástico), mas também é mais do que isso. O saco de plástico simboliza o fracasso de Bridget e a sua atrapalhação, acompanha, tal como a sua roupa desmazelada e penteado desalinhado, a sua falta de capacidade de gerir a sua vida. Um saco de plástico tem uma forma difícil de controlar, tal como Bridget tem dificuldade em controlar o seu próprio corpo e chegar ao peso que a sociedade pressiona a ter. O saco de plástico é uma extensão do corpo de Bridget, quase uma prótese simbólica que a puxa fisicamente para baixo e não a deixa ter sucesso, mas que ela finalmente amputa quando o deixa trancado no multibanco.
Há mais comédias românticas que usam sacos de plástico – e sacos de papel pardo, já agora – para suportar as mais diversas narrativas. Estranhamente, e naquela que é a rainha das rom-coms, Um Amor Inevitável (When Harry Met Sally, 1989), não há sacos de compras, nem de plástico, nem de papel, nem de pano. Não será nada contra o descartável, até porque aparece uma garrafa de água de plástico da Evian (também aparece outra no Você Tem Uma Mensagem, talvez seja uma pancada de Meg Ryan, ou o efeito de um contrato agressivo de publicidade) e uma embalagem de plástico transparente onde Sally vai pondo uma salada. Também não será nada contra não-lugares e heterotopias, porque Harry e Sally passam o tempo a encontrar-se em aeroportos, museus, lojas de aparelhagens e livrarias. Mas não deixa de ser curioso.
Já estou a deitar comédias românticas pelos olhos, e a chorar, não de comoção mas de irritação ocular, por isso já não fui ver em detalhe outras representações audio-visuais de sacos de compras. Mas não é preciso muito para nos lembrarmos de outros exemplos, sobretudo da cultura popular americana, como Os Simpsons, Seinfeld, ou Quem Sai Aos Seus. É impossível não lembrar, em especial, o famoso Sozinho em Casa (Home Alone, 1990), quando Kevin (Macaulay Culkin), de oito anos, decidindo tomar conta da sua vida, vai fazer compras e volta cheio de sacos, a bambolear (afinal, tem oito anos), que acabam por rebentar e espalhar as compras todas no passeio, uma resposta dos sacos de plástico à sua vontade prematura de crescer.
Em todos estes filmes ou séries, os sacos de plástico suportam a narrativa, mas também são mais do que isso. Latour fala em atores sociológicos; eu diria que os sacos de plástico também são atores de cinema, muitas vezes merecedores de um Óscar, personagens silenciosas que podem não conseguir replicar o beicinho temperamental das heroínas mas que refletem as características dos atores humanos e condicionam as suas ações.
E depois há, claro, a questão da beleza de todas as coisas, tão bem retratada em tantos filmes, mas para o que aqui interessa, abordada no filme Beleza Americana (American Beauty, 1999). O filme não faz o meu género, mas é impossível não falar daquela cena em que Ricky (Wes Bentley) e Jane (Thora Birch), dois adolescentes de um subúrbio norte-americano, estão a ver um vídeo gravado por Ricky. No vídeo, um saco de plástico branco dança com o vento, numa coreografia suportada por folhas secas. Um saco de plástico, que tem esta magia de tornar visível aquilo que não é, espoleta o monólogo de Ricky. “I need to remember”, diz ele, “Sometimes there’s so much beauty in the world … I feel like I can’t take it… and my heart is just going to cave in”.
Vemo-nos, caros leitores, numa heterotopia qualquer, ou num não-lugar por aí, ou num lugar, como diz Hoagland, que não conseguimos nomear. Ou, quem sabe, por aqui.
Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.