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“Deeper and deeper.” A resposta, dada em inglês com sotaque, e a forma lenta como o ucraniano pronuncia e acentua a primeira sílaba de cada palavra, dizem mais do que a tradução em português. A resposta — “cada vez mais fundo” — é do chefe dos serviços secretos ucranianos numa entrevista à ABC, publicada a 4 de janeiro. A pergunta? Se Kyrylo Budanov acredita que haverá mais ataques dentro da Rússia depois dos que ocorreram em dezembro.
Um drone a cair em território russo — verdadeiramente russo e não território ocupado — não é inédito e aconteceu logo no início da guerra (o primeiro foi em Belgorod), mesmo que Kiev não tenha reivindicado todos os ataques.
Aliás, quando questionado sobre essas ofensivas, Budanov diz que só depois da guerra responderá se elas foram executadas pelo exército ucraniano, o que, em si, não deixa de ser uma admissão de que haverá algo para revelar. Sobre a Crimeia, a postura é diferente. “Crimeia é parte da Ucrânia e podemos usar qualquer arma dentro do nosso território.”
Ukrainian Head of Military Intelligence Kyrylo Budanov in an interview with @ABC, said that there will be more strikes on Russian territory and they will be "deeper and deeper".
Video: ABC News pic.twitter.com/l0vaMVHrbW
— NEXTA (@nexta_tv) January 2, 2023
Em dezembro, a munição ucraniana começou a cair com mais frequência dentro de solo russo, “deeper and deeper”, como diz Budanov, cada vez mais longe da fronteira, cada vez mais perto de Moscovo.
Em abril de 2022, a audácia era menor. O primeiro ataque, de helicóptero, foi à região russa de Belgorod, a escassos 30 quilómetros da fronteira e separada de Kharkiv por uma viagem de carro de hora e meia. Nesse mesmo mês, o descaramento ucraniano aumentou e o navio de guerra Moskva afundou-se no Mar Negro depois de atingido por dois mísseis. O ataque à joia da coroa naval russa foi reivindicado pelo Exército ucraniano, mas em Moscovo a única versão aceite foi a de um acidente devido ao mau tempo.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre uma eventual viragem no rumo da guerra.
Em agosto, houve explosões na Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. Em Moscovo, Daria Dugina, filha de Alexander Dugin, conhecido como o “cérebro de Putin”, morre no seu carro, armadilhado com uma bomba. Dois meses depois, em outubro, uma explosão na ponte da Crimeia — fundamental para a logística de guerra russa — deixa-a parcialmente destruída. Moscovo acusa ainda a Ucrânia de atacar a península com drones submarinos.
Em dezembro, há uma reviravolta. No dia 5, as bombas não caem na fronteira, nem em territórios ucranianos ocupados. Os drones são apontados a duas bases aéreas russas.
A de Engels, de onde saem muitos dos bombardeiros Tupolev (Tu-95) que destroem cidades ucranianas, fica a 600 quilómetros da fronteira. A outra, Dyagilevo, fica a uns curtos 160 quilómetros de Moscovo. A mensagem sobre a capacidade do alcance dos ataques ucranianos estava enviada.
No dia seguinte, mais perto da fronteira (90 km), um drone caiu perto de um aeródromo na província russa de Kursk.
Two TU-95 planes supposedly damaged after a reported drone attack on an air base in Russian Engels, Saratov region.
Engels airbase is one of the take-off sites for Russian planes that launch rockets on Ukraine. pic.twitter.com/ArQ9rZVRmw
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) December 5, 2022
É legítimo a Ucrânia atacar a Rússia?
A resposta curta à pergunta feita acima é “sim”. Há um conflito armado entre Ucrânia e Rússia e, apesar de o direito internacional estipular que não vale tudo, atacar alvos militares não viola nenhum tratado, desde que não sejam usadas armas biológicas, nucleares ou químicas. Outra regra das Convenções de Genebra é que a proteção dos civis é uma prioridade e não podem ser atacados em nenhum contexto.
“Totalmente legítimo”, diz ao Observador Mick Ryan, major-general atualmente na reserva, depois de 35 anos no exército australiano. “As bases atacadas foram usadas para enviar drones ou ataques aéreos à Ucrânia e não há razão para a Ucrânia não atacá-las. Com isso, está a deixar os russos num dilema: protegê-las obriga a mover muito da aviação de alto valor mais para dentro da Rússia, mas isso torna as suas operações aéreas muito mais difíceis”, diz o militar, condecorado com a Ordem da Austrália pela sua liderança da 1.ª task force de reconstrução australiana no Afeganistão.
Em Portugal, o major-general Arnaut Moreira concorda. Na sua opinião há quatro perspetivas que explicam os ataques recentes da Ucrânia a solo russo e a questão da legitimidade é a mais importante de todos. “A Ucrânia perdeu o medo internacional de estar a atacar na profundidade do território russo. Isso ficou bem marcado numa evolução que teve a ver com as restrições que o Ocidente ia colocando sempre que atribuía equipamentos sofisticados no sentido de não serem utilizados dentro do território russo”, diz ao Observador.
Ainda antes da guerra, os Javelins (lançadores de mísseis antitanque portáteis) que a Ucrânia comprou aos Estados Unidos levavam um guia de regras acoplado. Tinham, por exemplo, de estar armazenados no oeste do país, longe da fronteira com a Rússia. Depois de 24 de fevereiro, o material de guerra disponibilizado pelo Ocidente continuou a ser alvo de algumas restrições que, agora, parecem ter desaparecido.
Uma delas era “puderem ser utilizados dentro dos territórios ocupados mas não dentro do território russo”, lembra o militar português, que foi diretor de Comunicações e Sistemas de Informação do Exército entre 2013 e 2016. À medida que a Rússia foi efetuando ataques a partir do seu próprio território, a Ucrânia entendeu, “legitimamente e legalmente, e do ponto de vista internacional isso é aceitável”, que tem todo o direito de atacar locais de lançamento ou de armazenamento de material que vai ser usado contra si.
Depois dos ataques de dezembro, a pergunta direta — “Está a Ucrânia moralmente legitimada para atacar a Rússia?” — foi feita a Joe Blinken por jornalistas norte-americanos. No fim de semana dos ataques, a imprensa do país escreveu, citando fontes militares, que a administração de Joe Biden tinha dado luz verde ao Presidente ucraniano para disparar em qualquer direção. “Não encorajamos nem permitimos que os ucranianos atacassem dentro da Rússia”, disse Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano, tentando criar a ideia de que os ataques não precisaram da bênção dos Estados Unidos.
“O que está a acontecer todos os dias e todas as noites na Ucrânia é ataque após ataque vindo da Rússia que agora está a tentar acabar com a infraestrutura civil que permite que as pessoas tenham aquecimento, água, eletricidade – o que chamamos de ‘armar o inverno’. Essa é a realidade diária e noturna na Ucrânia”, detalhou Blinken, para contextualizar a sua resposta.
O secretário de Estado frisou ainda que é importante entender que os ucranianos vivem todos os dias com a contínua agressão russa. Por isso, a determinação da administração Biden é “garantir que eles tenham nas suas mãos os equipamentos de que precisam para defender-se, defender o seu território, e defender a sua liberdade.”
Esta mudança na postura norte-americana é fundamental, defende o major general Bacelar Begonha, e é justificada pela posição da Rússia. “A ameaça a territórios russos profundos é fruto da crescente ameaça que está a ser feita pela Rússia de destruição completa da Ucrânia. A ameaça russa aumentou, dizem que vão continuar a destruir tudo — isto não são coisas militares, são crimes, porque estão a atacar civis e instalações que não têm nada a ver com militares”, disse o autor do livro “O Primeiro Ranger Português” ao Observador. Assim, aumentando essa ameaça, “a posição russa alterou-se e a posição americana, que é muito importante, alterou-se também”, assumindo uma posição clara de apoio total ao Presidente Volodymyr Zelensky.
E se Zelensky decidir atacar Moscovo ou alvos civis?
Se atacar alvos militares é legítimo, podemos dizer o mesmo de alvos civis? O que aconteceria se o Presidente ucraniano adotasse uma estratégia semelhante à russa, de atacar infraestruturas civis? Seria um problema, acredita Mick Ryan, autor do livro “War Transformed” (Guerra Transformada, uma edição do Naval Institute Press).
“Não acho que exista qualquer indicação de que os ucranianos queiram fazer isso ou que tenham sinalizado que vão fazer isso. Penso que os ucranianos têm sido muito disciplinados. Em alguns sítios da Ucrânia, temos cidades russas mesmo do outro lado da fronteira e os ucranianos não as têm atacado, como os russos têm feito às cidades ucranianas”, argumenta o militar australiano que falou com o Observador ao telefone a partir de Brisbane, capital de Queensland.
Dois fatores impedem, na sua opinião, a Ucrânia de seguir uma estratégia desse tipo: são uma democracia e não podem perder o apoio do Ocidente.
“Acho que é altamente improvável que os ucranianos façam isso. Primeiro, porque a Ucrânia é uma democracia e preocupa-se com a vida humana, mesmo que esteja do outro lado da fronteira. Em segundo, tem o apoio do Ocidente. E esse apoio poderia desaparecer muito depressa se os ucranianos começassem a matar civis russos. Por todas essas razões, não acredito que a Ucrânia vá atacar outra coisa que não sejam alvos militares legítimos”, defende o major-general.
Na sua opinião, antes do apoio balístico do Ocidente, os ucranianos já tinham alguma artilharia que lhes permitiria atingir Belgorod a partir de Kiev e não o fizeram, o que é indicativo de que irão evitar esse tipo de ação. Largar uma bomba na capital russa parece-lhe uma missão ainda mais improvável.
“Não acredito que atacar Moscovo fosse um objetivo para os ucranianos. Primeiro, o que vão atacar em Moscovo que tivesse impacto, militarmente falando, nos russos que estão na Ucrânia? Poderia, claro, chocar a população russa e pôr em causa o apoio de Putin… Mas seria altamente contraproducente e acho improvável que os ucranianos pensem em fazê-lo”, argumenta Mick Ryan.
Entre o querer e o poder. Kiev tem capacidade militar para atacar solo russo?
Há vários fatores que explicam as recentes ofensivas em solo russo, na opinião do major-general Arnaut Moreira.
“A primeira perspetiva é a da capacidade. Isto só é possível porque a Ucrânia tem vindo a reunir um conjunto de capacidades que não detinha no início das operações. Em fevereiro, março, a Ucrânia não tinha a capacidade ofensiva que tem hoje”, argumenta o militar português. Na sua opinião, o país de Zelensky não estava preparado para uma guerra total com a Rússia, mas antes para uma pequena recuperação de natureza territorial, “naquilo que tinham sido os territórios ocupados, sobretudo do Donbass, pela Rússia em 2014”.
Essa capacidade ofensiva foi adquirida de várias formas, inclusive por mérito próprio e por ferramentas que o país desenvolveu. “Mais do que sistemas fornecidos pelos Estados ocidentais, estamos a falar do processo de transformação que ela própria realizou com base em equipamentos que herdou desde os tempos soviéticos, nomeadamente a conversão de drones ou através de equipamentos até de natureza comercial que foi capaz de adaptar a funções de natureza militar.”
Nos ataques à base de Engels, que se repetiram no final de dezembro, tudo aponta para que tenham sido usados drones Tu-141 Strizh, telecomandados, criados na União Soviética para missões de reconhecimento tático em zonas controladas pela NATO. Com um alcance de mil quilómetros e uma altitude máxima de 6 mil metros, foram adaptados para se transformarem numa espécie de míssil de cruzeiro. A ser verdade, “é um desastre” para a Rússia, defendeu o politólogo e escritor russo Sergey Sumlenny no Twitter.
If Ukraine really hit the Russian Engels airbase with a modified Strizh Tu141 drone, it is a worse disaster for the RU air defense than a hit with a new UKR drone. Strizh was developed in the 1970s as a standard TARGET for air defense PRACTICING not for penetration of air defense pic.twitter.com/fN60oYOoRc
— Sergej Sumlenny, LL.M (@sumlenny) December 5, 2022
Mick Ryan vê estes ataques como uma evolução natural do conflito. “É indicativo dos ucranianos a evoluírem” na forma como defendem a sua nação. E embora não seja inteiramente novo, há alguns novos elementos na forma como decidiram defender o seu país, uma estratégia que passa por “corroer o moral dos russos e forçá-los a tomar más decisões estratégicas e táticas.”
Na opinião do militar australiano é de esperar que os ucranianos continuem a atacar alvos militares, que “tanto podem estar logo do outro lado da fronteira, na Rússia, como a centenas de quilómetros de distância”.
Em termos de alvos, a sua aposta é de que serão atacadas não apenas bases aéreas, mas também locais importantes para a logística militar que estão a ser usados pelas tropas russas que lutam na Ucrânia. “Os ucranianos demonstraram que têm capacidade para atingir alvos militares legítimos dentro da Rússia e não há qualquer motivo para não fazê-lo quando os russos estão a atacar civis ucranianos e infraestruturas”, defende Mick Ryan. “Os ucranianos não querem apenas responder aos ataques, querem desviar os russos destes ataques”, acrescenta. E aí entram os ataques em solo russo.
Para Arnaut Moreira, a oportunidade de ataque também ditou as escolhas feitas por Kiev. “À medida que as forças russas foram mudando da sua estratégia inicial de uma tomada de poder imediata e passaram a operações de natureza convencional, tiveram de organizar uma logística em profundidade que lhes permitia alimentar esses combates”, explica. E esses são combates de natureza muito intensa, refere. “O consumo de munições, de granadas, de artilharia é absolutamente assustador, o que implica um esforço diário de produção, mas sobretudo de transporte e de armazenamento, junto dos locais de emprego que não existia anteriormente.”
Assim, quando a Rússia passa a ter conjuntos de soldados e de equipamento concentrados num local, a Ucrânia encara-os como uma oportunidade de ataque, como aconteceu em Makiivka. O ataque a uma escola que servia de quartel general aos russos (e que era também depósito de munições) fez centenas de mortos. A Rússia confirmou 89 óbitos.
“A Ucrânia passou a dispor de alvos que não existiam anteriormente. Foi a passagem à fase convencional da guerra que obrigou a desenvolver todo este sistema logístico. Portanto, surgiu também uma questão de oportunidade”, conclui Arnaut Moreira.
A guerra psicológica. Tirar o sono a quem dorme em Moscovo
Para terminar a sua linha de pensamento, o major-general Arnaut Moreira, que passou à reserva com 38 anos de carreira militar, aponta ainda o fator psicológico de ataques em solo russo, que soma aos outros três já referidos — a capacidade, a oportunidade e a legitimidade.
“À medida que a Rússia vai prolongando esta guerra, a Ucrânia achou que também tem uma palavra a dizer do ponto de vista da guerra psicológica sobre a população russa.” Isto é, explica o militar, não é apenas a Federação Russa que procura afetar psicologicamente a vontade de combater e resistir dos ucranianos. A Ucrânia considera que ao levar a guerra para fora das suas fronteiras pode afetar o sentimento que o Presidente russo tentou criar: a narrativa de que a guerra é uma operação militar especial e que a vida na Rússia continua como antigamente.
Ataques com drones soviéticos à Rússia: foram feitos pela Ucrânia a partir de território russo?
Para Mick Ryan, este lado de guerra psicológica é a forma de a Ucrânia corroer a vontade dos russos. “Até Putin tem de levar em conta a sua audiência doméstica e, embora tenha uma consideração muito diferente daquela que é tida numa democracia, apesar disso tem de levá-los em conta”, argumenta.
O ataque a Makiivka sustenta a sua afirmação. “Vimos o desconforto profundo entre alguns na comunidade russa depois do ataque com HIMARS que matou potencialmente centenas de soldados mobilizados. Penso que isso terá sido parte da motivação para Putin declarar estas tréguas no Natal ortodoxo.”
Interesting video of explosion at Engels Airbase. At 15 sec, sound of something passing overhead. At 42 sec, light from explosion. 19 secs later – sound of blast, about 6.2 km away (speed of sound 326.34 m/s, dry air -8 C.) pic.twitter.com/rJ897Sv3Wv
— Euan MacDonald (@Euan_MacDonald) December 5, 2022
O major-general Bacelar Begonha tem opinião idêntica e lembra que nos países onde há restrições à informação “aparecem os boatos e alguns são perigosos”. Por isso, acredita que mais ataques em solo russo trarão internamente problemas a Putin. “É inevitável, para quem sabe alguma coisa de história, que isso tem influência, e que a oposição interna a Putin aumenta. Ninguém gosta de que os seus filhos morram.”