No início, Elon Musk era só mais um fã da rede social Twitter. Não um fã qualquer – é difícil ser-se só mais um quando se é o homem mais rico do mundo e se tem 110 milhões de seguidores. Um “defensor da liberdade de expressão”, como já se caracterizou em várias ocasiões, é um dos nomes mais conhecidos à escala global, fama muito conquistada pela popularidade dos elétricos da Tesla e pelos ambiciosos planos de tentar colonizar Marte, através da SpaceX.
Musk, nascido na África do Sul mas há vários anos nos Estados Unidos, joga em várias frentes. Parte da fortuna foi feita através da co-criação do serviço de pagamentos PayPal. Já é um nome reconhecido há vários anos, mas a fama global veio à boleia da Tesla. Fora do mundo empresarial, descreve-se como um “memelord” – um lord dos memes – e são conhecidos os tweets polémicos, em vários casos com alfinetadas à concorrência ou a nomes fortes do mundo dos negócios e da política.
Nem sempre a liberdade para partilhar o que lhe apetece nas redes sociais tem corrido bem. Um tweet de 2018 sobre como estava pronto para retirar a Tesla da bolsa de valores não caiu bem junto do regulador dos mercados norte-americano, a SEC. O resultado? Uma investigação do regulador que culminou na decisão de que qualquer comentário sobre a Tesla teria de ser submetido a aprovação. Além disso, também os investidores da Tesla decidiram mover um processo contra Musk pelo comentário.
A relação entre Elon Musk e a rede social Twitter, criada por Jack Dorsey, evoluiu este ano para um novo patamar. Primeiro, enquanto acionista e, com alguma surpresa, com Musk preparado para assumir a faceta de comprador.
O processo não começou de forma suave, primeiro com o Twitter a tentar proteger-se da aquisição, para dias mais tarde aceitar a proposta pelo redondo valor de 44 mil milhões de dólares. Um montante significativo, especialmente para uma rede social que, em comparação com as plataformas da Meta ou da Google, fica aquém tanto em nível de resultados financeiros como de utilizadores.
Após meio ano de peripécias, com Musk a querer desistir do negócio e o Twitter a forçar uma batalha judicial, o homem mais rico do mundo anunciou no início de outubro que, afinal, sempre queria comprar a rede social. A reviravolta aconteceu cerca de duas semanas antes do início do julgamento, que estava marcado para 17 de outubro. Resta saber se Musk voltou mesmo a ter interesse no Twitter ou se a possibilidade de uma batalha em público com uma equipa milionária de advogados pesou mais.
Kathaleen St. J. McCormick, juíza do tribunal do Delaware que tem em mãos este processo, decidiu suspender o julgamento e dar algum tempo às duas partes para acertarem agulhas para esta aquisição. E definiu um prazo para Musk concluir o negócio: 28 de outubro, às 17 horas (hora do Delaware), 22 horas em Lisboa.
Com o prazo a aproximar-se, a imprensa internacional já dá o negócio como fechado – e até relata que o novo dono terá começado a “arrumar” a casa, despedindo o CEO (Parag Agrwal) e o administrador financeiro da companhia (Nem Segal). Na quarta-feira, Elon Musk visitou os escritórios principais do Twitter, em São Francisco, com um lavatório nas mãos e a fazer um trocadilho com a expressão “let that sink in” [pensem nisso].
“O pássaro foi libertado.” Elon Musk já é dono do Twitter e afasta diretores
Musk até já mostra que está a acomodar-se à posição de “chief twit”, conforme já colocou na sua biografia na rede social.
Como começou o namoro de Musk com o Twitter?
A “novela” de Elon Musk com o Twitter começou com o anúncio a 4 de abril de que, de forma discreta, o dono da Tesla tinha adquirido quase 73,5 milhões de ações da rede social. O patrão da Tesla e da SpaceX passava assim a ser dono de 9,2% do Twitter, uma posição avaliada à data em 2,89 mil milhões de dólares.
A comunicação feita ao regulador de mercados dos Estados Unidos, a SEC, detalhava que Musk tinha começado a comprar ações a 14 de março. Na altura, o dono da Tesla transformou-se no maior acionista do Twitter.
Foi dito nessa data que Musk não teria um papel ativo na gestão da empresa, apesar da dimensão da participação. Até que, no dia seguinte, Musk foi convidado a integrar o conselho de administração do Twitter. “Estou entusiasmado por partilhar que nomeámos Elon Musk para o nosso ‘board’. Através de conversas com o Elon nas últimas semanas, tornou-se claro para nós que ele vai acrescentar grande valor ao nosso ‘board’”, escreveu Parag Agrawal, o ainda (?) CEO do Twitter, na rede social.
I’m excited to share that we’re appointing @elonmusk to our board! Through conversations with Elon in recent weeks, it became clear to us that he would bring great value to our Board.
— Parag Agrawal (@paraga) April 5, 2022
Foram precisos cerca de seis dias para se tornar oficial que Elon Musk não tinha pretensões de integrar a administração do Twitter. Mais uma vez, coube a Agrawal dizer que “Musk tinha decidido não se juntar ao ‘board’”. O relato era acompanhado de um email enviado aos empregados da rede social, onde era explicado que Musk teria comunicado na manhã do prazo final que não queria juntar-se a este grupo.
Começaram assim rumores de que Musk poderia estar a preparar uma oferta hostil para adquirir o Twitter.
Comprar o Twitter para fazer “uma transformação”
A 14 de abril, cinco dias após se tornar público que Musk não iria integrar a administração do Twitter, confirmava-se a teoria da aquisição hostil. “Fiz uma oferta”, escreveu simplesmente Musk na sua conta do Twitter, partilhando a ligação para o comunicado da SEC. Musk oferecia 54,2 dólares por ação, o que deixou a proposta próxima dos 44 mil milhões de dólares. E, de acordo com a missiva onde justificava a razão para esta compra, Musk deixava transparecer que via potencial no Twitter, mas que a empresa precisava de ser transformada.
I made an offer https://t.co/VvreuPMeLu
— Elon Musk (@elonmusk) April 14, 2022
“O Twitter tem um potencial extraordinário”, explicou na altura, dizendo que estava preparado para “desbloquear” esse potencial. A questão é que essa transformação implica retirar o Twitter de bolsa. “Investi no Twitter porque acredito no seu potencial para ser uma plataforma de discurso livre em todo o mundo e acredito que a liberdade de expressão é um imperativo social para uma democracia funcional. No entanto, desde que fiz o meu investimento apercebi-me de que a companhia não irá nem prosperar nem servir este imperativo social na sua atual forma”, contextualizou Elon Musk na carta, que era dirigida a Bret Taylor, “chairman” do Twitter.
Curiosamente, na altura do anúncio destas intenções, Musk admitia que “não tinha a certeza” de conseguir ser bem sucedido nestas ambições. Rapidamente começaram as contas de como Musk poderia financiar a compra. Afinal, embora seja o homem mais rico do mundo, com uma fortuna estimada de 211 mil milhões de dólares, uma boa parte está ligada às ações da Tesla. Juntar 44 mil milhões implicaria a venda de uma boa parte de títulos da fabricante automóvel, correndo o risco de penalizar o desempenho em bolsa desta galinha dos ovos de ouro.
A “poison-pill” do Twitter para se proteger de Musk deu lugar a acordo
Numa primeira fase, o Twitter anunciou que tinha recorrido a uma estratégia de defesa, chamada “poison pill”, para conseguir rebater esta oferta hostil de Elon Musk. A intenção era clara: a de tentar impedir que um acionista formasse uma participação de 15% sem aprovação do “board”. Caso isso acontecesse, os restantes acionistas poderiam comprar ações com desconto, o que poderia diluir a participação de outros investidores.
O que é a “pílula de veneno”, medida que o Twitter quer utilizar para travar a compra de Elon Musk?
A estratégia da “poison pill” foi adotada a 15 de abril. Como é possível perceber, este plano do Twitter não durou muito tempo, já que a 25 de abril, dez dias mais tarde, o Twitter anunciou que ia aceitar a oferta de Elon Musk.
Em comunicado, Musk voltou a reconhecer o “tremendo potencial” da rede social, frisando a vontade de “tornar o Twitter melhor do que nunca ao melhorar o produto com novas funcionalidades”.
O negócio ficava acordado em 44 mil milhões, mas com uma cláusula que, em caso de desistência de Musk, teria de pagar mil milhões de dólares ao Twitter.
As tentativas de Musk para financiar a compra
Assim que comunicou ao mercado a proposta para comprar o Twitter, Musk começou a movimentar-se para financiar a aquisição. Primeiro, vendeu ações da Tesla. Em abril, desfez-se de títulos da fabricante de elétricos, avaliados em 8,5 mil milhões de dólares. No Twitter, claro, foi questionado a 29 de abril sobre se tinha mais vendas planeadas. Disse, na altura, que não tinha mais planos de alienar posições na fabricante.
Faltava arranjar o restante valor. Rapidamente surgiram notícias sobre como tinha procurado apoio em nomes como Larry Ellison, da Oracle, na plataforma Binance ou ainda na Sequoia Capital.
No mês seguinte, começavam a circular notícias sobre o Twitter já estar a arrumar a casa para receber Elon Musk. Isso implicou a saída de alguns executivos de topo, como Kayvon Beykpour, o líder da área de consumo da rede social. Na imprensa norte-americana surgiram também preocupações de empregados do Twitter com a possível mudança de patrão.
Pausa no negócio – a “culpa” é dos bots
A 13 de maio, ainda nem tinha passado um mês do anúncio do acordo entre as duas partes, começavam a ser notórios alguns sinais de contratempos no negócio. Através do Twitter, claro, Elon Musk anunciou que o negócio estava suspenso. “O negócio do Twitter está suspenso de forma temporária enquanto estiverem pendentes os pormenores que apoiam o cálculo de contas de spam/falsas do Twitter e se representam 5% dos utilizadores”, escreveu Elon Musk.
Durante cerca de um mês, não houve desenvolvimentos significativos. Até que, apesar da suspensão do negócio, Elon Musk teve uma reunião “all-hands” com os trabalhadores do Twitter. A reunião foi feita à porta fechada mas o principal do diálogo chegou à imprensa norte-americana: a necessidade de a empresa “se tornar saudável” e a indicação de que o teletrabalho seria só para os melhores trabalhadores da rede social.
O anúncio formal de que Musk não queria o Twitter. Rede social avança para a justiça
Através de uma carta do seu advogado, datada de 8 de julho, Elon Musk comunicava ao Twitter que já não estava interessado em comprar a companhia. A mensagem era clara: o homem mais rico do mundo acreditava que “o Twitter não obedeceu às suas obrigações contratuais”. A questão do peso das contas falsas e de spam na plataforma continuou a ser o principal ponto de Musk.
“Por vezes, o Twitter ignorou os pedidos de Musk, por vezes rejeitou-os, por motivos que parecem não ser justificáveis, e por vezes [o Twitter] afirmou colaborar enquanto dava a Musk informação incompleta e inútil“, escreveu o advogado na altura.
A reação do “chairman” do Twitter, Bret Taylor, foi feita no próprio dia. “O conselho de administração do Twitter está comprometido com o fecho da transação pelo preço e termos acordados com o senhor Musk e temos planos para recorrer a uma ação legal para forçar o acordo de fusão.”
Quatro dias mais tarde, a 12 de julho, o Twitter anunciava que tinha movido um processo contra Elon Musk, com o principal objetivo de obrigar o magnata sul-africano a cumprir com a sua parte do acordo e a fechar a compra do Twitter. “O Twitter avançou com um processo no tribunal do Delaware para fazer com que Elon Musk seja responsabilizado pelas suas obrigações contratuais”.
O tribunal do Delaware transformava-se no epicentro da discórdia. Em primeiro lugar, era preciso que as duas partes chegassem a acordo sobre uma data e a duração do julgamento. O Twitter queria um julgamento o mais rápido possível, argumentando que as polémicas ligadas à aquisição estavam a ter consequências financeiras. A proposta da empresa apontava para um julgamento ainda em setembro, enquanto Musk preferia que uma data em 2023, apontando para fevereiro.
O patrão da Tesla preferia um julgamento de duas semanas, enquanto a rede social queria uma opção mais rápida, de quatro dias.
A 19 de julho, a juíza Kathleen McCormick marcou o julgamento para outubro, apontando para uma duração de cinco dias, uma decisão que ficava mais próxima da proposta do Twitter. que o julgamento seria em outubro.
A 29 de julho, foi marcada uma data: a batalha judicial teria início a 17 de outubro. No mesmo dia, Musk decidiu contra-atacar e decide processar o Twitter. O que mereceu resposta da rede social, dizendo que as acusações do dono da Tesla “eram factualmente imprecisas, legalmente insuficientes e comercialmente irrelevantes”.
Twitter filed a response to Mr. Musk’s counterclaims. His claims are factually inaccurate, legally insufficient, and commercially irrelevant. We look forward to the trial in the Delaware Court of Chancery. See the filing here: https://t.co/beAyGqRxFL
— Bret Taylor (@btaylor) August 4, 2022
Uma nova venda de ações da Tesla, com Musk a jogar pelo seguro
Com os dois lados a construírem os respetivos casos, Elon Musk tentava jogar pelo seguro, através de uma nova venda de ações da Tesla.
A situação foi noticiada a 9 de agosto, depois de ser conhecido que Musk tinha vendido ações da Tesla no valor de 7,5 mil milhões de dólares. No Twitter, quando foi questionado sobre o tema e se já teria acabado estas vendas, Musk respondeu afirmativamente, explicando que estava a acautelar possíveis cenários menos favoráveis aos seus planos, nomeadamente o de o Twitter poder vencer o processo.
“No (esperemos pouco provável) cenário de o Twitter forçar o negócio e de alguns parceiros não avançarem, é importante para evitar uma venda de emergência de ações da Tesla”, escreveu na rede social. Mesmo nas alturas mais “quentes” da preparação para o julgamento, Elon Musk nunca se afastou desta rede social.
A denúncia do ex-chefe de segurança do Twitter agita as águas
Dias mais tarde, a 22 de agosto, a defesa de Elon Musk decide intimar Jack Dorsey, o criador e ex-CEO do Twitter, para revelar comunicações “ligadas ao impacto ou efeito de contas falsas ou de spam no negócio e operações do Twitter”.
Isto aconteceu na véspera de Peiter Zatko, antigo responsável pela área de segurança do Twitter, vir a público denunciar as “deficiências extremas” que considerou existirem na rede social, em áreas como a segurança e a privacidade. De acordo com o Washington Post e a CNN, que avançaram a notícia, a denúncia de Zatko chegou às mãos do regulador de mercados dos Estados Unidos, a SEC, ao Departamento de Justiça e à FTC, a Comissão Federal do Comércio.
A rede social negou as acusações, dizendo que Zatko tinha sido despedido do Twitter por ter uma liderança fraca e não ter um desempenho à altura da pretensão da empresa. A reação oficial acusava ainda Zatko de algum oportunismo, dado o facto de a denúncia acontecer numa altura sensível da história do Twitter.
Rapidamente o antigo chefe de segurança do Twitter foi intimado para prestar declarações no julgamento Twitter contra Musk.
Pelo tipo de utilização do Twitter, principalmente por políticos, agências governamentais e ativistas, rapidamente o Senado norte-americano quis ouvir Peiter Zatko a propósito destas vulnerabilidades de segurança do Twitter. A audição foi marcada para 13 de setembro. Zatko respondeu a diversas perguntas dos senadores norte-americanos sobre como a plataforma poderá estar sujeita a agentes maliciosos estrangeiros e sobre possíveis falhas de segurança.
Como seria de esperar, Elon Musk acompanhou a sessão e fez questão de mostrar na rede social que estava atento. Primeiro, fez uma publicação com um emoji de um balde de pipocas, uma piada recorrente na internet. Mais tarde, partilhou uma imagem do grilo da consciência do filme Pinóquio a assobiar, acompanhada do trocadilho “give a little whistle”. Tratava-se, claro, de um jogo de palavras com whistle (assobio) e a expressão whistleblower, usada para designar denunciantes.
Depois da revelação de mensagens e acusações, a surpresa: Musk queria novamente o Twitter
Ao longo das semanas, continuaram as notícias sobre o que acusação e defesa estavam a preparar para o julgamento que se avizinhava. A juíza do Delaware obrigou o Twitter a dar mais dados a Musk, com o propósito de analisar a situação.
Foram ainda reveladas várias mensagens de Elon Musk. Uma delas, dirigida a um banqueiro, sugeria que a mudança de ideias do patrão da Tesla não estaria ligada às dúvidas sobre as contas falsas, mas sim pelo receio de “uma terceira guerra mundial”.
Mais tarde, também foram divulgadas mensagens entre Elon Musk e Jack Dorsey, o fundador e ex-CEO do Twitter, que revelavam que Dorsey teria aberto a porta a Musk ainda antes de o magnata ter feito a oferta. As mesmas mensagens também revelavam já alguns indícios de mau estar entre Parag Agrawal, o atual CEO, e Elon Musk.
Mensagens revelam que fundador discutiu futuro do Twitter com Musk ainda antes do anúncio de compra
A 4 de outubro, chegava a surpresa, com uma carta de Musk a dizer que pretendia outra vez comprar o Twitter, pelo mesmo valor. “Comprar o Twitter é um acelerador para criar a X, a aplicação de tudo”. Esta foi uma das poucas vezes em que Musk revelou planos para o Twitter, ainda que tenha sido escasso em detalhes.
No dia seguinte, havia um acordo entre Musk e Twitter. A 6 de outubro, a juíza decidiu suspender o processo, com o intuito de dar margem a Elon Musk para fechar o negócio. Foi nessa altura que ficou definido o prazo de 28 de outubro para a conclusão da compra.
Ao longo das últimas semanas sucederam-se as notícias de como Elon Musk estava a tentar financiar a aquisição do Twitter e também os comentários sobre como achava que estava a pagar “um preço excessivo”.
Também foi notícia a vontade de Elon Musk despedir cerca de 75% dos 7.500 trabalhadores do Twitter. Entretanto, na visita ao quartel-general da rede social, esta quarta-feira, Elon Musk deu o dito por não dito e rejeitou a intenção de fazer um despedimento do género.
O início da era Musk?
Durante as primeiras horas desta sexta-feira, jornais como o Financial Times e o Wall Street Journal avançam, citando fontes próximas, que o negócio terá ficado fechado na quinta-feira, 27 de outubro. O facto de Musk ter escrito no Twitter “o pássaro está livre” deu a entender que já tinha concluído a compra.