Há uns meses, Joana Fraga Ximenes recebeu um aviso das autoridades: tinha três dias para deixar a precária casa onde morava e ao lado da qual mantinha uma banca onde fazia vendas de rua. Aquela estrada, na zona de Bidau, em Díli, seria um dos lugares por onde o Papa Francisco iria passar de carro durante a sua visita de três dias a Timor-Leste. Passados três dias, chegaram as retroescavadoras.
“Porque é que temos de esconder a pobreza?”, perguntava a mulher de 42 anos, entrevistada em Díli pelo The New York Times a propósito da visita do chefe da Igreja Católica. “Esta é a realidade. O Papa não vem para ver coisas boas em Timor-Leste. O Papa está cá para ver as nossas vidas reais.”
Francisco está atualmente em Timor-Leste, o terceiro país no roteiro da mais longa viagem apostólica do seu pontificado: partiu na semana passada de Roma em direção à Indonésia, já passou pela Papua-Nova Guiné antes de chegar a Timor-Leste e na quarta-feira segue para Singapura, a última paragem desta visita de quase duas semanas.
Depois de ter estado no maior país muçulmano do mundo (onde visitou uma importante mesquita e assinou mais uma declaração de apelo ao diálogo inter-religioso), Francisco está agora num lugar peculiar: a primeira nação independente do século XXI (a independência foi formalizada em 2002) é um caso de estudo na Ásia, sendo um país esmagadoramente católico em que a Igreja tem um poder e uma influência na vida pública absolutamente dominante, muito devido ao papel fundamental que a Igreja Católica teve no processo de independência.
A visita de João Paulo II a Timor-Leste em 1989, quando o território estava ainda sob ocupação indonésia, é ainda hoje vista como um momento decisivo para os esforços de independência dos timorenses, por ter colocado o foco da atenção internacional na luta daquele povo. Institucionalmente, a Igreja foi central no apoio concreto aos timorenses perseguidos. Por outro lado, figuras como o bispo Ximenes Belo foram fundamentais na defesa da independência de Timor-Leste: Ximenes Belo seria, em conjunto com Ramos-Horta, laureado com o Prémio Nobel da Paz em 1996 pelos esforços em prol da paz e da independência de Timor. Ainda é hoje considerado um herói nacional.
Francisco chegou a Timor-Leste com uma agenda delicada para gerir. Por um lado, trata-se de um dos países mais pobres do mundo, com uma grande percentagem da população a viver na pobreza e a depender da agricultura de subsistência. Francisco leva os pobres e as periferias na agenda, apesar dos esforços do país para esconder a realidade da pobreza.
Por outro lado, Francisco está num dos países mais católicos do mundo (98% da população diz-se católica), mas onde a própria pertença à Igreja está ainda em larga medida por desenvolver: o trabalho da Igreja em prol da independência de Timor-Leste e o destaque de figuras como Ximenes Belo motivou uma onda de conversões ao catolicismo no final do século XX num país que, no início do século passado, tinha uma minoria de 4% de católicos; falta agora um aprofundamento da fé cristã, diz quem conhece o território.
“Aquele batismo massivo levou ao conhecimento da doutrina, mas o aprofundamento da fé está muito aquém”, contava recentemente ao Expresso o padre Constâncio Gusmão, que saiu de Timor antes da ocupação indonésia. “É preciso dar uma volta para que não fique na superficialidade da fé, apenas com multidões nas celebrações, mas para uma compreensão mais profunda do mistério da fé.”
Devido ao papel decisivo que teve no processo de independência de Timor-Leste, a Igreja Católica é profundamente admirada e reverenciada pelos timorenses — e a reverência traduz-se no modo como o clero é tratado. Como lembra o jornal Crux, os sacerdotes católicos são habitualmente tratados por Amu, ou “senhor”, e a sua autoridade e honorabilidade raramente é posta em causa.
E é aqui que entra a questão mais sensível da visita de Francisco a Timor-Leste: num país em que o clero é reverenciado, as vítimas de abusos sexuais tiveram nos últimos anos muitas dificuldades em fazer-se ouvir. Sobretudo quando a polémica incidiu sobre Ximenes Belo, um herói nacional que muitos timorenses se recusam a ver como possível criminoso.
Francisco chegou a Timor-Leste com uma decisão difícil para tomar: falar da crise dos abusos sexuais referindo explicitamente o caso de Ximenes Belo e arriscar perder todo o seu auditório ou ignorar o tema, frustrando as expectativas das vítimas e das organizações que pedem ao Papa Francisco uma palavra forte contra os abusos naquele país. Num encontro esta terça-feira com representantes da Igreja Católica timorense, Francisco optou por uma terceira via: posicionou-se fortemente contra o clericalismo e pediu aos membros do clero que não se deixem levar pela “tentação” de olharem para o sacerdócio como um garante de “prestígio social”.
Sobre o tabu Ximenes Belo, apenas referências indiretas
A polémica em torno do bispo Carlos Ximenes Belo rebentou em 2022 nas páginas da imprensa holandesa, que trouxe a público testemunhos de alegadas vítimas de abusos sexuais que teriam sido cometidos pelo herói timorense durante os anos que passou como administrador apostólico de Díli. O caso remontaria a 2002, quando teria sido feita a primeira denúncia contra Ximenes Belo. As notícias conhecidas há dois anos levaram a uma releitura sobre o modo como o bispo deixou as suas funções em 2002.
Nesse ano, Ximenes Belo renunciou ao cargo de administrador apostólico de Díli e o Papa João Paulo II aceitou a renúncia — apesar de o bispo ter, à época, apenas 54 anos de idade, mais de vinte anos antes da idade com a qual habitualmente os bispos se reformam. A Igreja alegou, na altura, motivos de saúde para a saída de Ximenes Belo, que se fixou em Portugal. Durante cerca de duas décadas, o bispo timorense manteve uma agenda pública frequente, até à eclosão da polémica em 2022.
Depois da publicação das notícias sobre o caso, o Vaticano veio a público confirmar que tinha recebido as primeiras alegações sobre os comportamentos de Ximenes Belo em 2019 e que, no ano seguinte, tinha imposto um conjunto de sanções ao bispo, que incluíam limitações nos movimentos e no exercício das funções, uma proibição de contactos com menores e uma proibição de deslocações a Timor-Leste. As medidas seriam reforçadas em 2021. Quando a polémica rebentou, Ximenes Belo desapareceu para parte incerta, tendo saído da casa dos salesianos de Lisboa (onde morava) num carro da embaixada timorense em Portugal.
Mas, num país em que Ximenes Belo é reverenciado como herói nacional, as denúncias contra o bispo foram particularmente mal recebidas. Ao The New York Times, um antigo conselheiro governamental timorense, Josh Trindade, contou que um jornalista que tentou investigar as denúncias contra Ximenes Belo chegou a receber ameaças de morte — e a fúria coletiva em Timor-Leste não foi dirigida ao alegado abusador, mas às alegadas vítimas.
Ao mesmo jornal, o Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta limitou-se a dizer que o caso já tinha sido “tratado há anos pelo Vaticano” e que, atualmente, Ximenes Belo “é ainda muito admirado pela maioria do povo por causa do seu papel no passado, pela sua coragem em dar abrigo às pessoas, em proteger as pessoas”.
Em antecipação à visita do Papa Francisco, o FONGTIL (Fórum das Organizações Não-Governamentais de Timor-Leste), que reúne mais de 400 organizações naquele país, escreveu uma carta aberta ao pontífice em que tocou no tema dos abusos, embora sem referir o nome de Ximenes Belo. Na carta, citada pelo 7Margens, as ONGs aplaudem “as recentes ações da Igreja para lidar com o abuso de mulheres e crianças, mesmo quando cometido por membros do clero”, mas também deixam um apelo: “Pedimos a Vossa Santidade que encoraje os líderes e o povo de Timor-Leste a tomar medidas mais eficazes para prevenir o abuso sexual e a violência doméstica.”
Mais perentória foi a ONG norte-americana Bishop Accountability, que se dedica à defesa das vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica. Dias antes da visita do Papa Francisco, a ONG escreveu uma carta aberta ao cardeal Seán O’Malley, presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, pedindo-lhe que influenciasse o Papa Francisco no sentido de falar do assunto e de referir explicitamente o nome de Ximenes Belo.
Na carta, a ONG pediu a O’Malley que aconselhasse Francisco “a falar ferozmente durante a visita” em nome das vítimas, ajudando o Papa a perceber “o quão sozinhas e assustadas se devem sentir”.
“Um número incalculável de vítimas de abuso sexual de menores em Timor-Leste tem, provavelmente, medo de denunciar o seu sofrimento, já que vêem os abusadores poderosos a desfrutar da afirmação pública apesar das graves acusações de abuso contra eles”, diz a carta, assinada pela co-diretora da Bishop Accountability, Anne Barret Doyle. “Quando uma criança é violada num país devotamente católico, e quando o abusador é um bispo e um herói nacional, os sobreviventes sentem-se especialmente impotentes e intimidados ao silêncio.”
Outro caso significativo é o do ex-padre norte-americano Richard Daschbach, expulso do sacerdócio em 2018 na sequência de abusos sexuais que cometeu contra crianças quando era missionário em Timor-Leste. Daschbach, também ele reverenciado como uma figura relevante da Igreja Católica na luta pela independência em Timor-Leste, foi condenado em 2021 a 12 anos de prisão por abusos de menores. Mais tarde, o primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão, visitaria publicamente Daschbach na cadeia, o que causou polémica entre as organizações de defesa das vítimas de abusos.
Todo este contexto ajuda a perceber a complexidade da posição do Papa Francisco em Timor-Leste: condenar publicamente um herói nacional como Ximenes Belo acarreta o risco de criar tensões com a liderança e com o povo timorense; ignorar o assunto num país onde os abusos ganharam dimensão nos últimos anos tinha o risco de prejudicar a imagem internacional de Francisco, que tem procurado colocar o combate aos abusos no centro da agenda da Igreja Católica.
Para a ONG Bishop Accountability, a prioridade era só uma: Francisco tinha de mencionar o nome de Ximenes Belo. “É uma situação sombria para as vítimas, mas o Papa Francisco pode mudá-la. É venerado em Timor-Leste. Se condenar explicitamente [Ximenes] Belo e Daschbach e elogiar a coragem das suas vítimas, as suas palavras podem ter um enorme impacto positivo”, diz a organização. “Para terminar com o apego do povo a Daschbach e a Belo, o Papa tem de denunciar os dois homens pelo nome. Uma referência genérica que omita os nomes dos abusadores vai ser facilmente ignorada ou mal-interpretada.”
O Papa Francisco chegou a Timor-Leste na segunda-feira, vindo da Papua-Nova Guiné, e logo na sua primeira intervenção — num encontro com as autoridades, o corpo diplomático e representantes da sociedade civil timorense — tocou ao de leve no assunto quente. “Não esqueçamos muitas crianças e adolescentes feridos na sua dignidade. Trata-se de um fenómeno que está a emergir no mundo inteiro. Todos somos chamados a agir de forma responsável para evitar qualquer tipo de abuso e garantir que as nossas crianças cresçam tranquilamente”, disse o Papa, num discurso em que procurou chamar a atenção para as “chagas sociais” que afetam especialmente os jovens, incluindo a violência e o alcoolismo.
Na intervenção, Francisco não estabeleceu sequer qualquer ligação entre os abusos sexuais de menores e a Igreja Católica, muito menos referiu o caso concreto de Ximenes Belo. Havia, contudo, a expectativa de que o Papa guardasse para esta terça-feira um posicionamento mais forte sobre a questão dos abusos — sobretudo no encontro com bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas, seminaristas e catequistas na Catedral da Imaculada Conceição, em Díli.
No entanto, também neste segundo dia a intervenção do Papa Francisco não terá correspondido aos anseios das organizações de defesa das vítimas de abuso. O líder católico preferiu não se focar na questão dos abusos sexuais nem fez qualquer referência explícita a Ximenes Belo, mas optou por uma via diferente: dedicou uma grande parte do discurso a criticar o clericalismo e a avisar os padres e bispos de Timor-Leste que pertencer ao clero não significa integrar uma elite poderosa. Numa sociedade como a timorense, em que os sacerdotes católicos são reverenciados de forma senhorial e figuras como Ximenes Belo são incontestáveis, Francisco preferiu alertar para a tentação dos sentimentos de superioridade e apelar à humildade.
“Aos sacerdotes, em particular, queria dizer-vos: inteirei-me de que o povo se dirige a vós afetuosamente chamando-vos ‘Amu’, que aqui é o título mais importante, significa ‘senhor’. Mas isto não vos deve fazer sentir-se superiores ao povo, vocês vêm do povo, nasceram de mães do povo, cresceram com o povo, não esqueçam a cultura do povo que receberam. Não são superiores”, avisou o Papa.
“Isto também não deve levar-vos à tentação da soberba e do poder. Sabem como começa a tentação do poder? Entenderam, não? A minha avó dizia-me: ‘O diabo entra sempre pelos bolsos.’ É por aí que entra o diabo. Entra sempre pelos bolsos. Por favor, não pensem no ministério como um prestígio social. Não. O ministério é um serviço. Se algum de vós não se sente servidor do povo, vá pedir conselhos a algum sábio sacerdote que o ajude a ter esta dimensão tão importante”, acrescentou.
Mesmo sem referir a crise dos abusos ou o bispo-celebridade Ximenes Belo, o Papa Francisco deu a entender que está atento ao problema da excessiva reverência dirigida ao clero católico em Timor-Leste e à perversão que pode provocar: “Jamais, jamais o sacerdote deve aproveitar-se do seu ofício, mas deve sempre bendizer, consolar, ser ministro de compaixão e sinal da misericórdia de Deus.”
Um “impulso de evangelização” num país pobre e com uma fé a amadurecer
A visita de Francisco a Timor-Leste acontece numa altura em que os timorenses comemoram 25 anos do referendo que conduziu à independência do país, após um longo e sangrento período de ocupação indonésia em que a Igreja Católica se posicionou ao lado dos timorenses na luta pela independência. A visita de João Paulo II a Timor-Leste em 1989 ainda está bem marcada na memória coletiva timorense — e contribuiu para o entusiasmo com que Francisco foi recebido na segunda-feira em Díli.
Com uma população de 1,3 milhões de pessoas, 98% das quais católicas, Timor-Leste é um dos países mais pobres do mundo. Entre os principais problemas da sociedade timorense contemporânea destacam-se a violência praticada por gangues de artes marciais e o consumo de álcool entre os mais jovens — e a visita de Francisco serviu também para lembrar que a Igreja Católica deve colaborar ativamente no desenvolvimento da sociedade timorense, tal como colaborou nos esforços de independência.
“Esperamos que esta visita nos ajude a encontrar as melhores formas de desenvolver a nossa Nação e de enfrentar os problemas que a nossa sociedade enfrenta — pobreza, desemprego, subnutrição, desigualdade e injustiça social e económica”, dizia a carta aberta de 400 ONGs timorenses antes da visita.
Papa Francisco defende “impulso na evangelização” contra “tudo o que humilha”
“Esta visita tem lugar num momento muito diferente daquele em que o povo timorense recebeu a visita de Sua Santidade o Papa João Paulo II em 1989”, escreveram as organizações. “Nessa altura, o povo de Timor-Leste vivia sob a brutal ocupação militar indonésia. O Santo Padre ajudou a mobilizar e a abrir os olhos da comunidade internacional para o sofrimento do povo timorense e para a nossa luta pela independência. Hoje, Sua Santidade o Papa Francisco visita-nos numa era de independência e liberdade, em que os militares indonésios já não estão cá. A autodeterminação de Timor-Leste foi conseguida através da forte luta do povo de Timor-Leste, com grande apoio da comunidade internacional, incluindo a Igreja Católica. Podemos celebrar juntos durante esta visita.”
“Timor-Leste continua a enfrentar muitos desafios, incluindo problemas estruturais, educação universal de qualidade, água potável, habitação para o povo, nutrição, soberania alimentar, estradas rurais e saúde pública”, acrescentava ainda a carta. “Embora as autoridades e o povo estejam a tentar resolver estes problemas, há ainda um longo caminho a percorrer. Vossa Santidade tem-se manifestado frequentemente a favor das pessoas pobres e marginalizadas, e encorajamo-lo a fazê-lo em Timor-Leste.”
Na intervenção desta terça-feira, o Papa Francisco lembrou todos estes problemas do país — e incentivou o clero timorense a levar a cabo um “impulso de evangelização” num país em que a fé católica se espalhou muito rapidamente devido à intervenção da Igreja Católica no final do século XX, mas que ainda não teve tempo de amadurecer. Francisco pediu à Igreja timorense que seja capaz de “inculturar” a fé católica na realidade do país, aprofundando-a e purificando-a de crenças “arcaicas” e “supersticiosas”.
Mais tarde, Francisco presidiu a uma missa de grandes dimensões em Díli onde voltou a enfatizar a importância de chegar aos mais pobres e marginalizados da sociedade timorense. Um discurso que contrasta com a atitude do governo timorense — denunciada por associações de defesa dos direitos humanos na imprensa internacional — que procurou esconder alguns dos sinais mais evidentes de pobreza antes da chegada do Papa. Nas estradas por onde o Papa iria passar de carro, várias casas foram demolidas pelas autoridades. Apesar de o governo timorense garantir que só foram demolidas casas ilegais que já tinham recebido ordem de despejo, o The New York Times cita uma carta do governo que, em abril, detalhava a urgência do projeto de demolições por causa da visita papal.
O Papa Francisco está em Timor-Leste até quarta-feira, dia em que parte para Singapura para a última etapa do seu périplo pela região da Ásia-Pacífico. Na manhã de quarta-feira, ainda terá um encontro com jovens timorenses no centro de convenções de Díli — que será a última oportunidade para o Papa Francisco abordar diretamente, em território timorense, o tema dos abusos sexuais de menores e o caso do bispo Ximenes Belo.