António Costa está em risco de perder vários membros do Governo por empresas de familiares de governantes terem feito contratos com o Estado, mas a lei pode provocar uma baixa na oposição: de um vice-presidente da bancada do PSD. A empresa dos irmãos de António Leitão Amaro, a Arbogest, fez vários contratos públicos ao mesmo tempo em que este era secretário de Estado e, já na atual legislatura, deputado na Assembleia da República. A atual lei das incompatibilidades — que muda na próxima legislatura — é clara neste caso: prevê a perda de mandato.
A Arbogest é uma empresa de “recolha, transporte e comercialização de resíduos florestais” e tem registados no portal Base.gov.pt 18 contratos com um valor total de 5,8 milhões de euros. Há quatro deles, no valor de 1,1 milhões de euros, que foram adjudicados durante o atual mandato do deputado. Quanto à ligação familiar: há três irmãos de António Leitão Amaro que detêm, em conjunto, 50% da empresa e todos eles têm participações superiores a 10%: Vera Leitão Amaro (14%), Miguel Leitão Amaro (18%) e Inês Leitão Amaro (18%).
A lei das incompatibilidades ainda em vigor — a mesma que levou o primeiro-ministro a pedir um parecer à Procuradoria-Geral da República — estabelece que “ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas (…) as empresas de cujo capital, em igual percentagem, seja titular (…) os colaterais até ao 2.º grau“. É o caso dos irmãos. A infração “para os titulares de cargos eletivos” é, de acordo com a mesma lei, punida com “a perda do respetivo mandato”.
Questionado pelo Observador, António Leitão Amaro diz que desde que deixou de ser sócio (chegou a deter 7%, como declarou ao Parlamento no início do mandato de 2011) não acompanha o quotidiano da empresa. E que, quando tomou posse como deputado, perguntou se a empresa tinha contratos públicos e a resposta foi negativa: “O que me disseram é que não havia contratos públicos, havia sim com empresas já privatizadas como a EDP e a REN, mas que as restantes contrapartes eram privadas.”. Leitão Amaro explica que não andou “a perguntar mensalmente ou trimestralmente”. “Mas não pensei que algo tivesse mudado. Fico surpreendido, porque quando perguntei não havia“, acrescenta.
O deputado do PSD foi depois informar-se melhor sobre a situação e, dos quatro contratos celebrados no atual mandato que constam no Base, assume que só dois poderiam ser considerados problemáticos. Isto porque um deles, o mais volumoso (1.031.118,95 euros), foi com a REN e — uma vez que a empresa não é pública — o deputado entende que não há incompatibilidade. Outro, mais recente, com o município de Sever do Vouga — embora também tenha sido publicitado no Base “não chegou a ser executado”. Sobram então dois contratos, com a junta de freguesia de Pêro do Moço (liderada pelo PSD): um ajuste direto de 11 de maio de 2016 no valor de 24.270 euros e outro de 17 de março de 2016 no valor de 14.999 euros. Se a lei for aplicada, será o suficiente para a perda de mandato. Ao Observador, Leitão Amaro foi claro: “Não vou dizer como os outros que a lei não é para cumprir. Lei é lei. Se é assim, é assim.”
Também enquanto foi secretário de Estado da Administração Local — de 22 de abril de 2013 a 30 de outubro de 2015 — a empresa de família de Leitão Amaro continuou a fazer contratos com o Estado. Foram 11 contratos no valor de 707 751 euros, que incluíram ajustes diretos e concursos públicos que envolveram autarquias e o Governo Regional da Madeira: 31.248 euros de um ajuste direto feito pelo município de Gavião (PS), três contratos no valor de 297 mil euros com a secretaria regional do ambiente da Madeira (PSD), um contrato de 81. 866 euros por ajuste direto com o município de Tondela (PSD), 7.798 euros com a União das Freguesias de Cedrim e Paradela, dois contratos no valor de 156.531 euros com a câmara de Mação (PSD), com a freguesia de Silgueiros (PS), 34.420 euros num concurso público com a Câmara de Vila de Rei (PSD) e um ajuste direto no valor de 63.698 euros com a câmara de Vouzela (PSD). Todos estes contratos teriam ditado, pela lei, a perda do mandato como governante.
Do ponto de vista legal estes contratos como governante não têm qualquer efeito, uma vez que Leitão Amaro não pode ser demitido de um cargo que não ocupa. No entanto, ainda pode perder o mandato de deputado caso esse seja o entendimento do Tribunal Constitucional. Isto apesar de o Parlamento estar a funcionar em mínimos até às eleições de outubro. Leitão Amaro é, aliás, membro da Comissão Permanente, que garante o funcionamento daquele organismo fora do período efetivo. Quanto à próxima legislatura, Leitão Amaro anunciou logo em junho que não pretendia continuar.
No passado, quando foi o Parlamento a julgar casos similares — através da comissão de ética — os deputados decidiram pela aplicação do estatuto dos deputados, que no ponto 6 do seu artigo 21º diz que “sem prejuízo do disposto em lei especial” o impedimento de contratação pública é extensível ao “cônjuge não separado de pessoas e bens”. Os próprios deputados decidiram no entanto, na lei que entra em vigor na próxima legislatura, retirar essa referência. Assim, a mesma alínea do ponto seis vai passar a referir-se apenas aos deputados, que até a referência ao cônjuge deixaram cair. Vão ter é de, seguindo o regime geral, ver as relações familiares publicitadas quando estiver em causa contratação pública. No entanto, a decisão sobre a perda de mandato não será, tanto no caso de Leitão Amaro como dos governantes, avaliada pela subcomissão de ética do Parlamento, mas sim pelo Tribunal Constitucional.
Deputados advogados com sociedades a salvo (até outubro)
Há vários outros deputados da oposição (e do PS) que têm familiares ou empresas que têm contratos com o Estado, mas uma vez que se tratam de sociedades profissionais estão imunes por oito palavras entre vírgulas que estão na lei. Esse ponto da lei diz que o impedimento na contratação pública é “no exercício de atividade de comércio ou indústria“. A partir da próxima legislatura já não será assim e cai esta referência. Ou seja: os advogados passam a estar sujeitos ao mesmo regime. O irmão de Pedro Mota Soares, deputado do CDS, é sócio principal na Nobre Guedes, Mota Soares & Associados, onde o próprio centrista exerce advoacia, que fez sete contratos públicos na atual legislatura. Neste caso não há problema legal. Na próxima legislatura as regras mudam.
As sociedades de advogados de José Pedro Aguiar-Branco (que entretanto abandonou o Parlamento) e de Paula Teixeira da Cruz (F Castelo Branco & Associados) também fizeram vários contratos com entidades públicas, como consta do site Base.gov. O mesmo acontece com um contrato entre a sociedade de Pedro do Ó Ramos (“Ramos, Galhofa, Lourenço & Associados, Sociedade de Advogados, RL”) e a Associação de Desenvolvimento do Litoral Alentejano. Na atual legislatura foram ainda levantados problemas a Virgílio Macedo (revisor oficial de contas que tem vários contratos públicos) e a outros deputados (do PS e do PSD), mas a comissão de Ética decidiu pela não incompatibilidade.
Incompatibilidades. Deputados-advogados que contrataram com o Estado vão poder continuar deputados
É com base nesta decisão da Comissão de Ética que os deputados acreditam não estar em incompatibilidade, apesar de as sociedades de que são sócios terem contratos com o Estado. Especialistas ouvidos pelo Observador — que não se identificaram por razões profissionais — concordam que a advocacia não pode ser considerada uma “atividade comercial”. Logo, os deputados-advogados estão a salvo. Transportando esta interpretação da lei para os casos dos governantes, Francisca Van Dunem (ao contrário de Pedro Nuno Santos, Graça Fonseca ou José Artur Neves) pode ter aqui um forte argumento caso a sua situação venha a ser avaliada pelo Tribunal Constitucional.
Apesar disso, a decisão do Parlamento foi tomada por deputados, que interpretaram a lei e decidiram sobre colegas deputados. O caso de Van Dunem é diferente por ser uma governante (a lei distingue eleitos de não eleitos) e, por outro lado, por a avaliação depender do Tribunal Constitucional.
Pai de Pedro Nuno Santos também fez negócios com o Estado com o filho no Governo
Foi o CDS que propôs alteração à lei que vai isentar familiares
O atual secretário de Estado da Proteção Civil está em risco de ser demitido porque uma empresa detida (em 20%) pelo filho de José Artur Neves fez contratos com o Estado. Mas há uma nuance: se o caso ocorresse na próxima legislatura já não haveria qualquer problema legal, já que os deputados voltaram a legislar sobre os impedimentos.
A nova lei diz que “o regime referido no número anterior aplica-se às empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo, detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau, uma participação superior a 10% ou cujo valor seja superior a 50 000 euros”. Antes, o “conjuntamente” não existia, o que fazia com que empresas de familiares estivessem sujeitas às mesmas regras. Agora só estão se o titular do cargo tiver uma participação, ainda que minoritária, na empresa (o que acontece, por exemplo, no caso de Pedro Nuno Santos — mas da qual o governante pode facilmente abdicar antes da próxima legislatura).
Há, no entanto, um detalhe: o CDS foi dos partidos mais duros a reagir aos casos do secretário de Estado e a exigir consequências. No entanto, foi o próprio CDS que fez uma alteração à lei (viabilizada pelos restantes partidos) que isenta as empresas dos familiares deste impedimento a partir da próxima legislatura.
Neste momento o executivo aguarda o parecer pedido pelo primeiro-ministro à Procuradoria-Geral da República sobre o assunto. António Costa optou por segurar os governantes e fazer esta diligência.
Costa pede parecer a PGR sobre casos de contratos de familiares de governantes
A opinião do governo ficou expressa nas declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que considerou que “seria um absurdo uma interpretação literal da lei de 1995.” Entretanto, esta posição já foi alvo de várias críticas, até do próprio PS. A ex-eurodeputada Ana Gomes disse na SIC Notícias que “é inaceitável que um governante venha dizer que a lei não é para ser lida literalmente”. Mas como o próprio presidente do PS, Carlos César, disse e a própria Ana Gomes confirmou, o que a socialista diz não vincula o PS.