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Empresas de marido da ministra da Coesão receberam fundos comunitários. PGR diz que é legal, mas critica "obscuridade" da lei

Marido da ministra da Coesão concorreu a fundos já após Ana Abrunhosa tutelar as CCDR. Empresa criada 15 dias antes do início da execução do projeto. Ministra escuda-se em parecer que pediu à PGR.

Duas empresas detidas em parte pelo marido da ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, beneficiaram de centenas de milhares de euros em fundos comunitários. A ministra — que tutela as entidades responsáveis pela gestão dos fundos comunitários (as CCDR) — não vê, no entanto, qualquer incompatibilidade. A governante escuda-se ainda num parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) que considera que não é ilegal o marido concorrer a fundos, embora o mesmo documento fale em “obscuridade” da lei e sugira aos legisladores que “ponderem cuidadosamente” sobre o que está em causa.

Num dos dois projetos, o apoio da União Europeia é de 303.275 euros, dos quais 133 mil vão diretamente para a Thermalvet, empresa detida a 40% por António Trigueiros de Aragão, marido da ministra Ana Abrunhosa.

A empresa Thermalvet foi criada a 14 de outubro de 2020, já Ana Abrunhosa era ministra, e tem como sede o Balneário Termal das Terras de Monfortinho. A empresa foi constituída 15 dias antes do início da execução do projeto que tem como parceiro uma outra entidade, a HPRD, e arrancou a 1 de novembro desse mesmo ano.

O grande objetivo do projeto, financiado pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural, passa por desenvolver uma “gama diversificada de produtos inovadores de uso veterinário com ingrediente base comum, o recurso endógeno água termal das Termas Monfortinho”.

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Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o caso da ministra Ana Abrunhosa.

O caso da ministra Ana Abrunhosa

A empresa é detida em 40% pelo marido da ministra, de acordo com a declaração de rendimentos entregue pela governante a 27 de junho de 2022. No site do Ministério da Justiça onde são publicados os atos societários está apenas a constituição original da sociedade, quando António Trigueiros Aragão detinha só 20% da empresa de forma direta, embora tivesse outras participações indiretas na Thermalvet através de outras empresas, como a Multialimenta, ou a TRU, SGPS (que é presidida pelo sogro da governante). Desde essa altura, a posição do marido na empresa terá duplicado.

António Trigueiros Aragão diz ao Observador que não há qualquer interferência da mulher na gestão das suas empresas: “A gestão das empresas das quais sou sócio é feita exclusivamente por mim e outros gerentes ou administradores, e pela equipa de profissionais independentes que nelas trabalham, sem qualquer interferência da minha mulher, independentemente das funções que já exerceu, que actualmente exerce, ou que poderá exercer no futuro.”

O marido da governante afirma que mantém a “vida profissional separada da pessoal, embora, como todos os casais, troquemos opiniões sobre determinados assuntos”. António Trigueiros Aragão admite, porém, que falou com a ministra sobre o caso: “Neste caso concreto, embora não consiga precisar a data, falámos sobre o assunto, quando o consórcio que integra uma empresa de que faço parte decidiu candidatar-se a apoios comunitários. Sei que a minha mulher, já no âmbito das suas funções enquanto ministra, pedira pareceres jurídicos para analisarem (então em abstrato) esta questão, caso alguma vez ela se colocasse.”

Na verdade a ministra pediu o parecer à Procuradoria-Geral da República a 6 de abril de 2021, a aprovação final da candidatura foi a 30 de abril e o parecer seria emitido a 28 de maio — já depois do projeto estar aprovado.

Há ainda um outro apoio vindo de um fundo comunitário recebido por uma empresa na qual o marido da ministra tem uma participação indireta, embora esse seja de apenas 66.015 euros e no âmbito do programa Compete 2020, que é tutelado pelo Ministério da Economia. Trata-se da empresa XIPU, detida em parte pela Multialimenta, que, por sua vez, é detida em parte pelo marido da ministra da Coesão. Neste caso, não há uma tutela direta da governante — que no caso da Thermalvet existe.

Que influência pode ter a ministra no processo?

A atual lei orgânica do Governo estabelece que os projetos legislativos que prevejam financiamentos através de fundos europeus sejam “obrigatoriamente sujeitos” a “parecer favorável” da ministra da Presidência ou da Coesão Territorial. Diz ainda que “a ministra da Coesão Territorial exerce a direção sobre as comissões de coordenação e desenvolvimento regional”. No anterior Executivo (o XXII Governo Constitucional), durante o qual foram atribuídos os fundos, a ministra presidia à Comissão de Captação de Investimento para o Interior.

O ministério, em resposta ao Observador, elenca as várias razões que, no entender da tutela, não inibem o marido da ministra de concorrer a fundos comunitários. Questionada sobre se tinha conhecimento da situação, a ministra garantiu que “não acompanha os negócios que são do marido, empresário de carreira muito antes do casamento entre ambos, e com quem, aliás, está casada em regime de separação de bens”.

O marido da ministra conta uma história diferente sobre se falaram sobre este caso (já que admite que trocaram ideias sobre o assunto), mas partilha da opinião da mulher quanto à não existência de impedimentos: “Se houvesse incompatibilidade, os ministros só poderiam casar-se com outros ministros ou ser celibatários.” E acrescenta: “A obtenção de fundos comunitários é um direito para qualquer empresa ou cidadão, desde que estejam reunidas condições para poderem deles beneficiar”.

António Trigueiros de Aragão lembra ainda que, por ser “casado com ‘uma pessoa de interesse'”, tem “uma obrigação suplementar de prestar um conjunto de informações em todos os contactos com a Administração Pública, a todos os níveis”.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, acompanhado por Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, e por Manuel Cordeiro (C), presidente da Câmara Municipal de S. João da Pesqueira, durante a visita à 20ª Vindouro – Festa Pombalina / Wine and History em S João da Pesqueira, 2 de setembro de 2022. MIGUEL PEREIRA DA SILVA/LUSA

A ministra da Coesão foi, entre 2014 e 2019, presidente da CCDR-Centro

MIGUEL PEREIRA DA SILVA/LUSA

Voltando à ministra, esta reitera que, como governante, “sempre agiu com legalidade, cumprindo todas as disposições e princípios previstos no Código de Procedimento Administrativo, designadamente no que diz respeito ao dever de imparcialidade.” Recorda ainda — num facto que o Observador pôde comprovar junto do Tribunal Constitucional — que incluiu as empresas do marido na declaração de rendimentos e património entregue no Tribunal Constitucional.

Sobre a tutela das CCDR, a ministra destaca que “esta competência foi delegada durante o XXII Governo Constitucional no Secretário de Estado Adjunto e do Desenvolvimento Regional, e no XXIII Governo Constitucional na Secretária de Estado do Desenvolvimento Regional.”

No caso específico do apoio à Thermalvet, o ministério alega ainda que, sendo este “um projeto de I&DT em copromoção” foi um  “Organismo Intermédio”, a ANI, que “analisou o mérito da candidatura” e que, para isso, recorreu “a um painel de peritos externos”. Ou seja: o ministério alega que a intervenção da ministra é inexistente. Primeiro, porque são os secretários de Estado que tutelam os presidentes das CCDR e que eles, como presidentes dos Programas Operacionais Regionais, pedem a outros organismos que avaliem candidaturas como as do marido da ministra.

Quanto ao facto de a ministra presidir à comissão de captação de investimento para o interior, que existia na altura da atribuição dos apoios comunitários, o ministério garante que “esta comissão não tem quaisquer poderes executivos, é sobretudo um grupo de reflexão.”

O parecer da PGR: não é ilegal, mas existe “obscuridade” na lei

A própria governante teve dúvidas, em algum momento, sobre a legalidade de o marido receber apoios comunitários. A prova disso é que, para saber se o marido podia ou não pedir fundos comunitários, a ministra da Coesão solicitou dois pareceres: um interno, aos serviços da Presidência do Conselho de Ministros; e um externo, à Procuradoria-Geral da República. Este último parecer foi pedido a 6 de abril de 2021, mas a resposta chegou já após a aprovação da candidatura do marido da governante. Nenhum dos pareceres declarou que era ilegal o marido da ministra recorrer a fundos, mas um deles (o da PGR) deixou um aviso claro.

O que está em causa é que a Lei n.º 52/2019 — que define o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos — estabelece impedimentos para a contratação pública de cônjuges de governantes, mas não diz nada especificamente sobre fundos comunitários.

O parecer da PGR começa então por tentar perceber “se os financiamentos atribuídos ao abrigo do Programa Operacional Regional do Centro devem ser considerados procedimentos de contratação pública” e se o “órgão que desencadeia o procedimento integra a mesma pessoa coletiva pública” da ministra.

Relativamente a este ponto, nas conclusões do parecer a PGR escreve que “as estruturas de missão dos POR (Programas Operacionais Regionais) e a ministra da Coesão Territorial fazem parte da mesma pessoa coletiva pública — o Estado — circunstância que, aparentemente, inibiria o cônjuge do referido membro do Governo de tomar parte em procedimentos por todo e qualquer órgão do Estado”.  Na verdade, para a PGR é indiferente a tese da ministra sobre se toma uma decisão direta sobre os fundos ou não, bastando, para este efeito, que façam parte da mesma pessoa coletiva.

Isto porque, na mesma argumentação, o parecer da PGR concorda que à ministra não é permitido “revogar, suspender ou modificar” os atos decididos pelas CCDR”, mas destaca que a governante pode “anular atos ilegalmente praticados, oficiosamente ou ao decidir sobre recurso hierárquico e pode, principalmente, conceder ordens e instruções, em especial, ordens para suprir omissões legais de atos”.

A atribuição de um fundo é, no entanto, um “ato administrativo bilateral” e “não de um contrato”. Ora, diz o parecer, “a inibição que recai sobre o cônjuge de titular de cargo político respeita, estritamente, a procedimentos de contratação pública” e “não a subvenções”. Por isso, a PGR conclui que “a aprovação da candidatura apresentada pelo cônjuge da ministra da Coesão Territorial não é, em princípio, alcançada pelo conceito de contratação pública“. Neste sentido, diz o parecer, não há a “registar incumprimento de deveres de conduta por parte da ministra da Coesão Territorial”.

Excerto do parecer do Conselho Consultivo da PGR

Apesar disso, o parecer diz que a ministra está obrigada a aplicar as garantias de “imparcialidade consagradas no Código de Procedimento Administrativo”. A PGR deixa ainda críticas à forma como está desenhada a lei, em particular, num dos pontos referentes ao artigo que estabelece os impedimentos, dizendo que “a fixação literal nos conceitos de contratação pública e de pessoa coletiva (…) representa um duplo fator de obscuridade e que deve ser ponderado cuidadosamente, quer pelo legislador parlamentar quer pelo Governo”.

Excerto do parecer do Conselho Consultivo da PGR

O parecer interno, pedido aos Serviços de Auditoria e Inspeção da Presidência do Conselho de Ministros, também dizia que “não se constata eventual impedimento que impeça o cônjuge de eventual Membro do Governo, da área da Coesão Territorial ou outra, de, no âmbito e no respeito pelo quadro legal vigentes, apresentar candidatura a apoios comunitários e receber as verbas que sejam aprovadas no âmbito dessa candidatura, desde que não ocorra a realização de qualquer tipo de procedimentos de contratação pública”.

Nos anos anteriores a Ana Abrunhosa ser ministra, o marido raramente tinha concorrido a fundos comunitários. Só o fez, aliás, antes de serem casados. O próprio António Trigueiros de Aragão diz ao Observador que “no período de vigência do QREN (2007-2013, antes do meu atual casamento)” fez uma candidatura, porém não recebeu qualquer apoio: “A empresa acabou por desistir da candidatura.” Depois disso, não pôde concorrer porque, como recorda, Ana Abrunhosa era presidente da CCDR-Centro. Para provar que não tem um tratamento privilegiado, António Trigueiros de Aragão, faz questão de dizer ainda Observador que recentemente uma empresa a que está ligado fez uma candidatura a um fundo comunitário que acabou “infelizmente” indeferida.

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