Sim, em certo sentido, todos os políticos são atores, não é só um cliché (será raramente um cliché?). Mas convenhamos, desde Ronald Reagan, quantos terão estado de facto assim inscritos nas finanças? Vivemos tempos extraordinários em que o mediatismo pode transformar, do dia para a noite, anónimos em celebridades e celebridades em decisores. Um dia, far-se-ão muitos filmes sobre o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, mas nós, que estamos aqui e agora, podemos assistir ao seu extraordinário destino quase 24 horas por dia. E foi o que decidimos fazer, entre a Netflix e as notícias, a série “O Servo do Povo” e a guerra em direto, a personagem de uma história e a figura histórica. Não é um privilégio e nada tem de sorte, é só a realidade a ser bem mais fascinante do que a ficção.
Carregamos no play
“O Servo do Povo” começa com a premissa pouco credível de que um vídeo vazado na internet e um crowdfunding organizado por alunos bastaram para levar um banal professor de História a Presidente da Ucrânia, e basicamente sem que o próprio sequer se apercebesse. A história coloca o ficcional Vasily Petrovych Goloborodko no coração do decadente sistema político ucraniano. E é partir daqui, e não descurando a importância da sua complexão física na construção da imagem de um pequeno David enfrentando um Golias, que Zelensky vai tentar moralizar a política nacional, enquanto escapa aos ardis montados pelo primeiro-ministro Yuri Ivanovich Chuiko (interpretado por Stanislav Boklan), que é o “sir Humphrey” de serviço, o protetor do status quo, que tenta garantir que tudo muda para que tudo fique igual; pelos oligarcas sem rosto que jogam às cartas e bebem conhaque em contraluz; e, voluntária ou involuntariamente, pelos próprios pais e irmã a cuja casa voltou, depois de se separar da bela Olga Mischenko (Elena Kravets).
[o trailer de “O Servo do Povo”:]
A série estreou-se na Ucrânia em 2015 e terminou em 2019 porque, de certa maneira, se mudou da ficção para a realidade. Acompanha a saga de um tipo banal que se torna Presidente quase por acidente, depois de os compatriotas verem nele o porta-voz do desencanto perante os partidos políticos tradicionais, as instituições do país, a corrupção, a impunidade, as injustiças sociais e as servidões múltiplas a poderes cautelosamente na penumbra. É uma narrativa corriqueira, de tão batida que está na história cíclica das coisas políticas. Mas talvez por isso tenha ganhado espaço e popularidade.
Esta popularidade gerou um novo caminho: a trupe de Zelensky, responsável pela produtora Kvartal 95, arregaçou as mangas e registou um partido político com o mesmo nome da série – “Sluha Narodu”, no original – no Ministério da Justiça ucraniano. As duas primeiras temporadas da série têm 24 episódios cada; a terceira apenas três, o último dos quais emitido a 28 de Março de 2019. Três semanas depois, o comediante, ator, guionista e produtor Volodymyr Zelensky ganhava a segunda volta das eleições Presidenciais na Ucrânia, esmagando Petro Poroshenko, Presidente em exercício, com 73% dos votos. O resto é História – a acontecer.
Vemos o primeiro episódio por curiosidade histórica. Depois, ficamos para mais alguns porque a verdade é que nos fazem rir. Estranho, rir com o tipo com quem quase temos chorado todos os dias desde 24 de fevereiro. Está na televisão uma figura familiar, mas os motivos são de tal forma dramáticos que paramos várias vezes para fazer aquela pergunta simples: como é que tudo isto foi acontecer?
Tratamos do almoço a pensar se terá sido sempre assim. O mundo padece também desta esquizofrenia entre outras: de um lado, a tribo dos que se deslumbram ao primeiro olhar; do outro, a daqueles que não se deixam impressionar por nada. Nem que Jesus Cristo lhes aparecesse no bairro, montado num unicórnio, a trautear Enya. Ou Mata-Ratos. Para uns, ao fim de meio dia de guerra, Volodymyr Zelensky já era o maior herói da história humana desde Gandhi; para outros, não passava de uma imitação de pechisbeque de Winston Churchill, forrado a T-shirt verde e latas de atum enviadas pelo Presidente do Benfica [sic. Mas já chega de falar de Miguel Sousa Tavares].
Como de costume, a História, o tempo, o devir, a análise aprofundada dos acontecimentos e outras coisas sérias e aborrecidas que tais, hão-de nos mostrar a verdade. Todavia, e canonizações instantâneas à parte, é espantoso que não se reconheça a excecionalidade de um homem que, atacado por um dos maiores ditadores e assassinos da história contemporânea, não fugiu, não cedeu e decidiu enfrentá-lo olhos nos olhos. Com forças infinitamente mais pequenas. Num cenário geográfica e temporalmente próximo onde os seus congéneres e antecessores tinham acabado: a) acólitos do adversário; b) presos, envenenados ou acidentalmente empurrados de uma varanda que ia a passar.
Pedimos desculpa pela interrupção da temática deste texto, mas está aqui refletida a realidade: ao ver o episódios enquanto se sucedem na sala de estar, é fácil deixarmos de lhes dar atenção para nos concentrarmos no que passa a milhares de quilómetros de distância.
Retomamos o visionamento
“O Servo do Povo” é, na verdade uma agradável surpresa. Trata-se, por um lado, de uma comédia capaz de veicular emoções dramáticas, sentimentos, compaixão, admiração, desejo, surpresa, desgosto – o que não é nada fácil. A própria Netflix está recheada de conteúdos (péssima palavra) que tentaram cumprir esta tarefa e falharam de maneira óbvia. Por outro lado, moraliza sem ser moralista – feito ainda mais difícil.
Enquanto matéria humorística, tem muito de caricatural, às vezes previsível e mesmo um pé no slapstick (há literalmente uma cena de bolo na cara); porém, aos poucos, evolui do território da sátira (género a que interessam, sobretudo, os tipos) para outro, mais interessado nas personagens e, portanto, nas suas idiossincrasias, histórias pessoais e familiares. Aí, damos por nós, volta e meia, a rir à gargalhada – e confirmamos aquilo de que já suspeitávamos: somos muito parecidos. Aliás, somos iguais. Os ucranianos poderíamos ser nós. Rir em conjunto aproxima mais duas pessoas do que anos de diplomacia e lições de História. E depois venha alguém dizer que nisto da era da televisão total, 3.0 ou que lhe quiserem chamar, não se aprende nada…
Continuamos. Já não é só por curiosidade nem só por diversão. Carregamos em “continuar a ver” porque já estamos naquele ponto em que torcemos pelas personagens. Queremos saber o que lhes vai acontecer a seguir. Tudo isto soa a paradoxo. Continuamos perdidos entre a virtualidade da nuvem do streaming e a realidade nada virtual que acontece minuto a minuto, como nos dizem os liveblogs e as atualizações e as breaking news.
Mas o dia passa e ainda não vimos notícias. Com já 13 dos 51 episódios de “O Servo do Povo” na conta, quase diríamos que tudo não passou de um sonho mau, que Zelensky é ainda e sempre “apenas” uma vedeta da televisão ucraniana e a política no país dele matéria para comédia e crítica, não para sangue e terror. Ah! E outra coisa: nazi, Zelensky? É quimicamente impossível aquele sentido de humor e o nazismo coabitarem no mesmo corpo.
É quando saímos do menu da Netflix e voltamos à televisão “linear” que tudo se torna mais denso e, de algum modo, irresistível. Como se a série tivesse tomado um twist inesperado. A piada foi longe de mais ou será, pelo contrário, a melhor piada de sempre? O professor de História Vasily Petrovych Goloborodko, que tanto cita Lincoln como Che Guevara, César ou Plutarco, que tenta pôr na ordem o pai taxista e teme o próprio guarda-costas, deixou crescer uma barba rala e perdeu o sorriso. Está à frente das tropas do seu país, invadido por um genocida ganancioso, desumano, esquivo e cobarde.
É uma piada elaborada, caro leitor. Não é para rir, mas continua a servir para nos afastar da morte.