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Maio de 2016. O Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, falava numa conferência sobre a segurança dos Balcãs quando revelou o teor de uma conversa privada que teve com o secretário-geral da NATO: “Vocês estão ausentes do Mar Negro. O Mar Negro tornou-se quase num lago russo”, terá dito Erdoğan a Jens Stoltenberg, de acordo com o relato feito pelo próprio. “Se não tomarmos uma ação, a História não nos perdoará”, acrescentou perante os participantes da conferência.
Há seis anos, o líder turco implorava à Aliança Atlântica para que aumentasse a sua presença na região para servir de contrapeso aos russos. O contexto era de tensão entre Ancara e Moscovo: a guerra na Síria intensificara-se, com os dois países em lados opostos da barricada (a Rússia a favor do Presidente Bashar al-Assad, a Turquia contra), e o ano anterior tinha até sido marcado pela ação turca de abater uma aeronave militar russa na Síria.
Mas o afastamento entre os dois países seria suavemente esbatido ao longo dos anos seguintes. De tal forma que, chegados a 2022, Erdoğan tem capital político suficiente junto da Rússia para se assumir como um país neutral face à guerra na Ucrânia, tentando mediar um acordo de paz. O esforço ainda não está a trazer resultados positivos para Ancara — mas já lá vamos. Antes disso, é impossível ignorar o novo papel que a Turquia tenta ocupar no panorama internacional, com Erdoğan a anunciar que poderia vetar a adesão da Suécia e da Finlândia à NATO.
Como explicar, porém, que em apenas seis anos o líder turco tenha passado de pedir robustez da Aliança face à Rússia para uma posição em que pode agora servir os seus interesses relativamente à NATO? E logo numa altura em que a Rússia tenta conquistar mais território em torno do Mar Negro?
A questão curda a servir de entrave à entrada da Suécia na NATO
Primeiro veio o torcer do nariz. “Estamos a acompanhar os desenvolvimentos com a Suécia e a Finlândia, mas não temos pensamentos favoráveis [à adesão]”, afirmou Erdoğan aos jornalistas, na passada sexta-feira, a propósito das intenções reveladas pelos governos sueco e finlandês de se juntarem à NATO. Dois dias depois, o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlüt Çavuşoğlu, vinha por àgua na fervura ao dizer que a Turquia necessitava apenas de “garantias de segurança” e que, caso fossem dadas, não colocaria entraves a essa adesão.
Mas eis que, esta segunda-feira, Erdoğan voltou a endurecer o tom: “Nenhum destes países tem uma atitude clara em relação a uma organização terrorista”, disse, referindo-se ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK na sigla original). “Como é que podemos confiar neles?”
Dois dias depois, surgiu a primeira ameaça a sério: Ancara bloqueou a fase inicial do processo, de acordo com informações de uma fonte ao Financial Times. “Não estamos a dizer que eles não podem ser membros da NATO”, comentou um delegado turco ao jornal. “Estamos apenas a dizer que temos de estar na mesma página.” A Turquia exige a extradição de 30 “terroristas” do PKK para mudar de posição.
Para Aaron Stein, investigador do Foreign Policy Research Institute e especialista em política turca, os ziguezagues das tomadas de posição pública de Ancara nesta matéria explicam-se pelas “tensões dentro do sistema”, entre o Presidente Erdoğan e os burocratas do aparelho de Estado. Em geral, o académico desvaloriza-as, porque diz que a posição geral é a mesma: “Veem a Suécia como um poder hostil.”
Em causa está a posição do governo sueco face ao PKK e, em particular, às YPG. O que significam todas estas siglas? Bom, vamos por partes. O PKK é há muito definido como um dos principais inimigos do Estado turco. Inicialmente proponentes da criação de um Estado curdo independente da Turquia, o PKK defende hoje mais direitos para a minoria curda. Só que, a par dessa evolução ideológica, o PKK também passou de movimento armado para grupo terrorista — é assim classificado não apenas pela Turquia, mas também pela União Europeia e pelos EUA.
E é aqui que entra a Suécia, como explica ao Observador Berk Esen, professor de Ciência Política da Universidade Sabancı, na Turquia: “Este conflito dura desde a década de 1980 e, por várias razões, a Suécia acabou por se tornar um refúgio para alguns membros do PKK que fugiram da Turquia e acabaram por se fixar ali.” Aaron Stein, por outro lado, invoca a perseguição política a alguns dos seus membros como razão para Estocolmo lhes ter concedido asilo. E acrescenta outro ponto: “A Suécia tem tido uma política de apoio às YPG”, diz, referindo-se às Unidades de Proteção Popular curdas, que têm protagonizado parte da resistência militar contra as forças de Assad (e, a partir de certa altura, contra o Estado Islâmico) no norte da Síria. A Turquia classifica também as YPG como terroristas, pela sua ligação histórica ao PKK, por ver em ambas ameaças à sua coesão territorial, caso os curdos consigam fundar um Estado autónomo.
A questão curda, porém, não é o único entrave a esta adesão da Suécia — e, por arrasto, da Finlândia — à Aliança Atlântica. “A política externa sueca tem sido muito crítica da Turquia, em parte por razões justificáveis como as violações de direitos humanos”, aponta o professor Esen (episódios como a prisão preventiva de magistrados e a limitação da liberdade de expressão de líderes religiosos sustentam as decisões de instâncias internacionais a este respeito).
“Mas, além disso, a Suécia tem em vigor um embargo à venda de armas à Turquia. Portanto, Erdoğan pode dizer ‘Como podemos estar na mesma aliança militar e pagar, de certa forma, a defesa de um país que se recusa a vender-nos armas’?” Os dados estão lançados. Irá a Turquia fincar o pé até ao fim ou poderá a sua posição ser mais flexível, como tem demonstrado face à guerra da Ucrânia?
Uma Turquia “em cima do muro” face a Ucrânia e Rússia
Uma no cravo, outra na ferradura. Esta parece estar a ser a estratégia turca face à invasão russa, ora agradando a Kiev — como quando classifica a “operação militar” como guerra e quando fornece drones Bayraktar ao exército ucraniano — ora a Moscovo — não impôs qualquer sanção à Rússia e acolheu vários oligarcas desde o início da guerra.
Como atacam os drones topo de gama que ajudam a Ucrânia e se tornaram um símbolo da resistência
Ao mesmo tempo, Ancara não esconde que tem como objetivo servir de mediador entre os dois lados e, possivelmente, promover um cessar-fogo ou até mesmo um acordo de paz. O porta-voz do Presidente, Ibrahim Kalin, tem liderado esses esforços, tendo já conseguido um encontro entre os ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países, ainda em março, e entre várias delegações — que incluíram o empresário sancionado Roman Abramovich como intermediário.
Porquê esse súbito interesse? Por um lado, há um elemento de relações públicas. “Se Erdoğan conseguisse acabar com a guerra, aumentaria o seu estatuto diplomático. Como líder autocrático que é, necessita disso”, resume o professor Esen. Aaron Stein acrescenta outro ponto: “Os turcos achavam que a guerra ia ser rápida e que a Ucrânia ia cair. Assim, convinha-lhes ser os mediadores, porque teriam mão no processo de paz e poderiam defender os seus interesses no Mar Negro.”
À medida que ficou claro que Kiev não seria tomada e que a guerra estava para durar, Ancara teve de se adaptar. “Continuam a ser oficialmente neutrais, mas estão a tomar passos inesperados, como a aplicação da Convenção de Montreux”, aponta. Em causa está um Tratado de 1936 que prevê que a Turquia possa fechar os estreitos do Bósforo e de Dardanelos a navios militares em caso de conflito, o que impede os russos de reforçar a sua frota de guerra no Mar Negro. Ao mesmo tempo, “estão a agilizar as vendas dos drones Bayraktar [ao exército ucraniano]”, acrescenta Stein. “Sei que estão a colocar a Ucrânia em primeiro lugar na lista de fornecimento e a acelerar a produção, mas a Turquia não assume o crédito disso, sublinha que é um negócio de uma empresa privada com a Ucrânia.” A empresa, porém, pertence ao genro do Presidente Erdoğan.
É uma posição “em cima do muro”, mas com os pés “para o lado da Ucrânia”, considera o investigador. E há várias razões para isso, que vão desde os laços económicos — a Turquia importa grande parte do seu trigo da Ucrânia e é o maior investidor estrangeiro no país — até ligações históricas, como aos tártaros da Crimeia. Bem como a preocupação de garantir que o Mar Negro não se torna no tal “lago russo” para que Erdoğan avisava em 2016 — situação mais próxima de acontecer agora que Moscovo tenta estender a ofensiva em direção a Odessa.
Mas, se assim é, porque não apoiar abertamente a Ucrânia? Porque antagonizar os russos significaria pagar um preço demasiado alto. Quase metade de todo o gás natural consumido na Turquia vem da Rússia, bem como 17% do petróleo e outra grande parte do trigo essencial ao país. A isso somam-se os turistas russos: 4,7 milhões por ano. Algo impossível de ignorar num país que enfrenta uma grave crise financeira — e que tem eleições para o ano.
A tudo isto soma-se a situação na guerra da Síria, onde ambos os países estão envolvidos. “A situação em Idlib [na fronteira com a Turquia] é muito delicada”, aponta Berk Esen. “Se Putin atacar civis em Idlib, centenas de milhares de refugiados vão dirigir-se para a Turquia.” É por isso que o Presidente russo, diz o professor, “tem a mão à volta da garganta de Erdoğan em Idlib”.
Turquia, o “rebelde dentro da NATO” que acaba por beneficiar Moscovo
Se neste equilíbrio difícil entre Ucrânia e Rússia a Turquia tem pendurado os pés “para o lado de Kiev”, a verdade é que continua também a servir os interesses de Moscovo. Aaron Stein reconhece-o num ponto: “Os russos não estão interessados numa verdadeira mediação e estão a usar a Turquia para promover os seus pontos de vista”, diz. Basta relembrar que a primeira vez que a Rússia falou no propósito de “desnazificar” a Ucrânia foi, precisamente, durante negociações.
É por isso que o investigador não tem dúvidas em afirmar que o processo de mediação turco não está a correr bem a Ancara. “A Turquia é a maior perdedora desta situação”, decreta, destacando como o prolongamento do conflito não beneficia uma solução de paz promovida por Erdoğan.
Talvez por isso, os turcos fazem agora um braço-de-ferro na questão da NATO, tentando extrair concessões da Aliança. Afinal, o porta-voz Ibrahim Kalin chegou mesmo a dizer que, “quando tudo isto tiver terminado, haverá uma nova arquitetura de segurança mundial”. “O governo de Erdoğan está a jogar um jogo a longo-prazo, tal como a Hungria de Viktor Orbán”, aponta o professor Esen. “As garantias de segurança destes líderes dependem da sobrevivência dos seus próprios regimes.”
Para isso, procuram “explorar crises, de forma a aumentar a sua posição de negociação com o Ocidente”, afirma, tal como Erdoğan fez no passado com a crise de refugiados de 2015, em que a Turquia aceitou acolher grande parte dos refugiados sírios em troca de um pacote de ajuda económica da União Europeia. O grande alvo para a Turquia são os Estados Unidos, atualmente de relações esfriadas com Ancara. “Tínhamos boas relações com Obama e com Trump e não tínhamos dificuldades em conversar. Conseguimos o mesmo com o senhor Biden? Não”, queixou-se recentemente o Presidente turco. Ao colocar entraves à adesão de finlandeses e suecos à NATO, Erdoğan chama a atenção dos norte-americanos, que nos próximos dias se desdobrarão em conversas com os turcos.
Mas, perante o cenário atual, qualquer estratégia que implique confrontar o Ocidente acaba, indiretamente, por ajudar a Rússia. E a NATO é o novo palco onde esse equilíbrio se joga: “Ao agir como rebelde dentro da NATO, a Turquia, à semelhança da Hungria, acaba por beneficiar a Rússia, porque pode enfraquecer a Aliança”, aponta Esen. “Com esta posição face à Finlândia e à Suécia, a Hungria tem agora margem para também se opor. E esse seria um ótimo negócio para Putin. A Turquia é muito mais valiosa para ele dentro do que fora da NATO.”
A grande dúvida que resta é se Erdoğan irá acabar por ceder nesta questão ou se poderá mesmo vetar a adesão dos nórdicos à NATO, num processo que exige unanimidade de todos os seus membros. Berk Esen diz que é impossível prever, mas admite que a solução para a Aliança possa estar em descobrir “qual é o preço de Erdoğan”. “Ele é um líder egoísta. Se conseguirem satisfazê-lo a um nível pessoal, talvez ele abandone a ideia de vetar esta adesão”, afirma.
Aaron Stein, porém, não está tão otimista. “Cada vez que a Turquia bate o pé, toda a gente diz ‘O Erdoğan está a negociar, ele age como se estivesse num bazar turco’, mas isso é uma treta. A Turquia tem princípios firmes, agarra-se a eles e exige concessões do outro lado. E quando não lhas dão, ele também não cede.”