O Cristianismo atual encontra-se num momento de crise que exige uma nova reforma, de proporções comparáveis às da Reforma Protestante do século XVI ou do Concílio Vaticano II, acredita o teólogo e filósofo checo Tomáš Halík, um dos mais eminentes pensadores cristãos contemporâneos.
Em Portugal para um conjunto de conferências a propósito do seu novo livro, O Sonho de Uma Nova Manhã (ed. Paulinas), Halík não hesita no diagnóstico que faz dos dias de hoje: incapaz de dar respostas adequadas às questões dos novos tempos, a Igreja tem de desenvolver uma relação adulta com os fiéis e abandonar uma linguagem que os infantiliza, deixando de lado a convicção de que tem o monopólio da interpretação dos textos bíblicos e do sentido do espiritual.
Em entrevista ao Observador, a 21 de novembro, Tomáš Halík falou sobre o seu novo livro, que é composto por um conjunto de cartas escritas a um Papa imaginário, e defende a necessidade de a Igreja assumir que os textos bíblicos e a tradição cristã pode e deve ser continuamente reinterpretada ao longo dos tempos pelos diferentes povos — e isso significa aceitar diferentes e renovadas perspetivas teológicas, até mesmo sobre temas quentes como a ordenação de mulheres ou a moral sexual.
Lamentando que o Cristianismo tenha assumido uma posição de força contracultural a partir do século XIX, sobretudo em resposta ao Iluminismo e à Modernidade, Halík destaca que se verificou desde então uma “exculturação” do Cristianismo, que se tornou incapaz de “dar respostas adequadas às questões das pessoas, de ouvir as pessoas e de caminhar com elas com paciência, com sensibilidade”, preferindo assumir-se como “cultura de choque” contra “a cultura moderna, a arte moderna, a ciência moderna, a filosofia moderna”.
No livro e nas conferências que deu na semana em que esteve em Portugal, Halík sublinha a importância de aprender a ler os “sinais dos tempos”, que distingue do “espírito do tempo” (Zeitgeist), e não esconde que o mundo atual convida à reflexão. A pandemia e as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente exigem uma “descoberta contemplativa do sentido espiritual dos acontecimentos”, escreve Halík (que também já classificou, por exemplo, o recém-eleito Donald Trump como a “encarnação da oposição a todos os valores cristãos”).
“Usa-se Deus como uma espécie de punição, como um policiamento moral”
Este livro é composto por um conjunto de cartas a um Papa imaginário. Descreve a figura do Papa como “a mais alta autoridade educativa da Igreja Católica”, que “não é um inquisidor que anda atrás de falhas nas minhas afirmações”. Depois, quando retrata o imaginário Papa Rafael como “o Papa de todos os que procuram”, e que conheceu em sonhos, caracteriza-o como um “pai, como indica o título de Papa, um pai espiritual, mas um pai de filhos adultos, que respeita plenamente a sua maturidade, autonomia e liberdade”. Escreve isto porque lhe parece que existe uma tentação na Igreja Católica — ou em alguns na Igreja — para infantilizar os fiéis? Para os tratar, não como adultos, mas como crianças?
O Papa Francisco lança-nos um apelo para que sonhemos. Por isso, como padre obediente, faço-o. Uma noite, nos meus sonhos, apareceu-me um outro Papa. Gosto muito do Papa Francisco, mas percebo que ele não tenha tempo suficiente para ouvir todas as minhas perguntas. Por isso, uso este Papa dos meus sonhos. Uso-o como Carl Gustav Jung, que tem esta ideia de trabalhar com as figuras dos nossos sonhos, da nossa imaginação, como figuras reais. Penso que este Papa imaginário tem muito tempo para me ouvir. E, sim, é um pai de filhos adultos. Por vezes, esta palavra “pai” — Jesus diz “não chamem ‘pai’ a ninguém” e nós fazemo-lo [cf. Mt 23:9] — é para alguns uma sugestão de infalibilidade. Penso que precisamos de pais de filhos adultos — e nós precisamos de ser cristãos adultos.
Mas, quando olha para a Igreja Católica contemporânea, vê essa tentação de tratar os fiéis como crianças?
Sim, claro. Muitas pessoas aprenderam a vida da fé na infância e, para muitas, parou na primeira comunhão ou no crisma. O Papa diz que, para muita gente nestas famílias tradicionais, o crisma é como se fosse o sacramento da extrema-unção, o último sacramento. Para muitas pessoas, pára aí. E, depois, normalmente, vem alguma crise, porque não podemos continuar a viver com a nossa imaginação da infância. Nessa crise, por volta dos 15 anos, muitos abandonam a Igreja, porque não encontram respostas para as suas novas perguntas, para os seus novos problemas. Muitas pessoas sentem que a Igreja os tenta empurrar de novo para a infância, mas isso não é possível.
A Igreja fica presa numa linguagem que infantiliza as pessoas?
Sim. É um problema que muitas pessoas têm. Penso que é normal que exista alguma crise, porque também nas relações com os pais há, por vezes, alguma crise nesta idade da adolescência. E, depois, têm de definir relações adultas com os pais.
E isso também é necessário na Igreja?
Com a fé, com a Igreja e com Deus. Não se pode ter estas projeções infantis, porque algumas destas projeções são também distrações — como se a Igreja fosse um polícia, que nos está sempre a punir. Usa-se Deus como uma espécie de punição, como um policiamento moral.
No livro, explora a ideia da liberdade para a interpretação do espírito. Escreve que “o Espírito não pode ser travado por uma fixação angustiada e pouco criativa no que foi outrora escrito”. Diz que “a revelação de Deus tem o caráter de um mistério inesgotável: por isso, há que se deixar sempre espaço para outras procuras e compreensões mais profundas”.
O Papa tem dito o mesmo: diz que não podemos parar quando encontramos alguma coisa; temos de procurar novamente, para irmos mais fundo. Uma grande inspiração para mim é um dos meus colegas, o filósofo irlandês e americano Richard Kearney, que fala do “anateísmo”: acreditar de novo. Algumas pessoas — e sei-o também pela minha prática pastoral — regressam dizendo “acredito, agora, no mesmo em que acreditava quando era criança, mas acredito de outra forma”. O sujeito é o mesmo, mas acredita de uma forma diferente. O filósofo Paul Ricœur falava de uma “segunda ingenuidade”. É algo na história da cultura, mas também na história individual. Os povos ancestrais tinham uma certa “primeira ingenuidade”, um certo acesso natural ao divino. Mas este acesso natural à esfera divina perdeu-se no Iluminismo e na Era Moderna. Não podemos voltar atrás, até à era pré-moderna, à antiguidade: temos de encontrar uma nova forma de entender estas coisas. Pela interpretação. Perdemos estas evidências, mas temos de encontrar um caminho pela interpretação.
“Estes escândalos com os abusos sexuais são um sinal de que todo o sistema do clericalismo está errado”
Ainda neste contexto, a certa altura cita a célebre expressão de São Paulo “a letra mata, mas o espírito vivifica” e acrescenta: “Tal como não nos podemos fixar na letra, também não nos podemos fixar nos professores, não nos podemos livrar de toda e qualquer responsabilidade apenas no ‘magistério dos professores’.” Escreve ainda que a Igreja “esteve por séculos sujeita sobretudo a essa tentação” de interpretar a palavra “creio” como “creio obedientemente em tudo o que a Igreja me apresenta para crer”. O que é que está a propor aqui? Diz que a Igreja tem de abdicar do “monopólio exclusivo da plena compreensão do espírito”: todos os fiéis, todos os cristãos, têm de ser mais capazes de aceder e interpretar o espírito, independentemente dos ensinamentos da Igreja?
Nós temos uma responsabilidade para com a nossa tradição e a nossa herança. É importante. Mas não podemos levá-la como fundamentalistas. A Bíblia pode ser levada à letra ou levada a sério. Literalmente ou seriamente. Seriamente significa pensar nela, pô-la no contexto, trabalhar com base nela; não ter um acesso naïf, literal, primitivo. O papel da Igreja e dos teólogos tem sido, ao longo da história, interpretá-la, dizer como as coisas devem ser interpretadas. A tradição é um rio de águas correntes, de recontextualização, de reinterpretação… O mesmo texto é lido e interpretado de formas diferentes quando o lemos em criança, em adulto ou em velho. Lemos o mesmo texto e entendêmo-lo de formas diferentes, se o lemos depois do jantar de domingo ou numa prisão, ou quando estamos doentes. A Bíblia explica-nos o sentido das nossas situações de vida, mas num círculo hermenêutico, as nossas situações de vida ajudam-nos a entender melhor o texto. Tem de haver sempre um círculo hermenêutico. Se nos limitamos a repetir mecanicamente o que os nossos pais e avós nos disseram, terá um significado diferente. O próprio sentido de algumas palavras está a mudar, o contexto está a mudar. O papel da Igreja e dos pregadores é sempre a reinterpretação. E isso tem de ser feito com responsabilidade: não é acreditar no que queremos.
Mas o que propõe é uma espécie de hermenêutica popular, digamos assim? O que significa: eu posso seguir, mas não tenho de depender exclusivamente das interpretações feitas pela Igreja, pelos bispos, pelos padres? Posso, também, ter um acesso pessoal aos textos e fazer as minhas interpretações?
Bom, é parte do ensinamento da Igreja. Existe o magistério da Igreja, obviamente, o magistério dos bispos. Existe também algum magistério dos teólogos — que deve ajudar o magistério dos bispos, deve ser complementar. Por vezes, há tensões, o que é normal. O desafio é irmos sempre um pouco mais fundo: tem de haver um diálogo entre o magistério dos bispos e o magistério dos teólogos. E também existe este consensus fidelium, o sentido dos fiéis, do povo de Deus. O magistério, quando interpreta a palavra de Deus, tem de ter em conta as experiências de vida e as experiências de fé das pessoas. É algo muito responsável. Não proponho uma abordagem superficial. É um caminho muito exigente, que temos de levar a sério: sim, o magistério é o garante da fidelidade à tradição, mas também tem de haver a teologia e também tem de haver as experiências de vida das pessoas. Todos têm de encontrar o seu caminho, porque há tantas formas diferentes de acreditar, que mudam no nosso tempo de vida: é diferente na infância, na idade adulta e na velhice. Há alguns textos na Bíblia que só são acessíveis aos velhos! Penso no Eclesiastes e na ideia do cansaço. Percebo agora, mas não percebia quando tinha 20 anos, o que é este cansaço da vida. Também o livro de Job, por exemplo, que penso que é talvez o melhor e mais profundo livro do Antigo Testamento: quem nunca teve uma experiência de sofrimento não o consegue compreender. A fé cristã é também uma experiência com a reconciliação e com o perdão — e penso que as crianças não tiveram ainda uma experiência com o pecado, com o significado mais grave desta experiência.
Nem com o sentido do arrependimento, por exemplo.
Exato. Penso que é necessária alguma experiência de vida.
Esta perspetiva teológica contemporânea é, de certa forma, uma ameaça às antigas visões do poder da Igreja, certo? É que, durante séculos, a Igreja resistia à tradução da Bíblia para as línguas comuns e mantinha-se como a guardiã da única interpretação possível dos textos. Esse foi um erro que, na sua opinião, a Igreja tem de trabalhar no sentido de corrigir?
Sim. Esse é um sistema a que o Papa Francisco chama clericalismo. Penso que estes escândalos com os abusos sexuais, abusos psicológicos e abusos espirituais foram a gota de água. O Papa Francisco reconheceu que não houve apenas falhas de indivíduos: é um sinal de que todo o sistema do clericalismo está errado, que há algo errado no sistema e que, para uma renovação, temos de destruir este sistema clericalista e encontrar uma nova forma de Igreja, uma Igreja sinodal. Àquilo a que o Papa Francisco chama clericalismo eu chamo triunfalismo: penso que existe uma incapacidade de distinguir entre uma ecclesia militants, uma Igreja dos homens, e uma ecclesia triumphans, uma Igreja dos santos no céu, uma Igreja perfeita.
Mas nós não somos uma Igreja perfeita, somos uma comunidade de pecadores. Nós não estamos no objetivo, no ponto ómega, no paraíso, no futuro escatológico. Nós somos uma communio viatorum, uma comunidade de peregrinos. Não somos donos da verdade completa: só Jesus Cristo pode dizer “eu sou a verdade”. Nós não somos Jesus Cristo, somos seguidores de Cristo, discípulos de Cristo, estamos no caminho, mas não estamos na meta. São Paulo dizia que agora nós vemos apenas parcialmente, vemos como que ao espelho. Temos de ter também algum ceticismo saudável. Sim, confiança na Igreja, confiança na Bíblia, mas Deus é um mistério inesgotável. Isto não deve levar-nos a parar o nosso pensamento, mas devemos sempre encontrar uma nova forma de compreensão mais profunda, de compreensão num novo contexto. A Igreja é o trabalho do Espírito Santo, e o Espírito Santo continua a trabalhar, não o podemos impedir.
Usou aí uma expressão que também usa no livro — a ideia de que a crise dos abusos sexuais foi a gota de água que fez transbordar o copo e que levou ao afastamento de muita gente da Igreja Católica. De que é que o copo já estava efetivamente cheio?
A incapacidade de dar respostas adequadas às questões das pessoas, de ouvir as pessoas e de caminhar com elas com paciência, com sensibilidade. A Igreja foi sempre uma Igreja que ensina, mas não pode ser só uma Igreja que ensina — tem de ser também uma Igreja que aprende. Especialmente no final da Era Moderna, depois do Iluminismo e particularmente no século XIX, a Igreja afirmou-se como uma cultura de choque contra as revoluções, a Revolução Francesa, muitas revoluções sociais e culturais. A Igreja do século XIX tornou-se mais como uma contracultura, contra a cultura moderna, a arte moderna, a ciência moderna, a filosofia moderna.
Imperava a ideia de que a sociedade se estava a afastar de Deus.
Sim. Foi uma “exculturação” do Cristianismo, enquanto o principal papel da Igreja é a inculturação. A evangelização tem de ser uma inculturação, como disse o Papa Paulo VI na Evangelii Nuntiandi: tentar sempre encarnar os valores do evangelho no estilo de vida e de pensamento dos povos. A evangelização sem inculturação é apenas endoutrinação. No século XIX, a Igreja seguiu o processo oposto, a “exculturação”, e afastou-se da cultura moderna.
E construiu muros à sua volta.
Exato. Perdeu-se esta arte do discernimento dos sinais do tempo. A Igreja não deve aceitar acriticamente tudo o que faz parte do espírito do tempo, do Zeitgeist. No processo sinodal tem de haver uma distinção entre o espírito do tempo e os sinais do tempo. O espírito do tempo é o Zeitgeist, é a linguagem deste mundo, é a opinião pública, algumas ideologias, e por aí fora. É a linguagem deste mundo. Mas há também os sinais do tempo: a palavra de Deus através dos acontecimentos da sociedade e da sociedade. Só os podemos reconhecer através da abordagem contemplativa. O papel da Igreja é ensinar esta abordagem contemplativa. Penso que é uma dimensão muito importante deste processo sinodal e o Papa tem dito sempre que temos de ouvir, temos de ter alguma liberdade interior para as nossas primeiras reações emocionais.
Quando diz, como faz no início do livro, que temos de ler a Bíblia em novos contextos e novos tempos, ler a vida de Jesus em novos contextos, isto também pode significar novas perspetivas teológicas? Incluindo em assuntos fraturantes em que a Igreja tem tido posições rígidas, como as questões das mulheres ou das pessoas LGBT?
O processo sinodal é uma renovação muito importante da Igreja, que é necessária. Como dizia, penso que estes escândalos foram a última gota após um longo caminho de “exculturação” e de um sistema de clericalismo, que não foi apenas um uso indevido da autoridade espiritual — porque o clericalismo, de certa forma, usa a autoridade espiritual como poder, e o poder é sempre possível de ser corrompido. Isto também na Igreja: a corrupção do poder não foi apenas uma falha dos indivíduos, foi um problema de todo o sistema. E o sistema estava errado em muitos aspetos, incluindo nesta arrogância de que somos donos da totalidade da verdade.
Nós somos os servos da verdade — e a verdade é sempre maior e mais profunda do que as nossas imagens. Precisamos desta abordagem contemplativa. Exige-se uma nova teologia, mas também uma nova espiritualidade, especialmente de uma ligação entre a teologia e a vida espiritual e de uma maior sensibilidade àquilo que está a acontecer na sociedade e na cultura. O Papa Francisco tem um maravilhoso documento, Ad theologiam promovendam, sobre o futuro da teologia, em que defende que a teologia tem de ser interdisciplinar, estar sempre em diálogo com outras ciências, e que precisamos desta ligação entre a teologia e a espiritualidade. Penso que mais do que uma teologia anti-moderna, é uma teologia moderna. Eles queriam combater o positivismo, o marxismo, o socialismo, mas tornaram-se muito semelhantes. Queriam tornar-se como a ciência positivista, ser um sistema racional que se pode explicar, defender que tinha a resposta a todas as perguntas, que tinha toda a verdade. Como o materialismo ou o cientismo, este catolicismo do século XIX perdeu a dimensão do mistério, da profundidade espiritual. A teologia sem uma dimensão mística e espiritual, sem esta abertura ao mistério, tornou-se uma ideologia.
Mais próxima da filosofia?
Se a filosofia se tornar ideológica também é uma catástrofe: o marxismo-leninismo era ideologia, mas não filosofia. A filosofia tem, também, de ser uma forma viva de perguntar, de procurar, e não de dar respostas.
“Não consigo encontrar objeções teológicas sérias contra a ordenação de mulheres”
Defende que é preciso distinguir os sinais dos tempos do Zeitgeist. Diz que as mesmas palavras, as mesmas histórias bíblicas, o mesmo magistério ao longo da história, tem de ser lido de diferentes formas, com diferentes sentidos, em diferentes tempos. Acredita que nos temas da ordenação sacerdotal das mulheres, as questões LGBT e do casamento ou o aborto a Igreja tem de abandonar uma perspetiva rígida e tentar ler os sinais dos tempos? Como os conhecimentos científicos que temos hoje e não tínhamos há 100 anos?
Penso que precisamos de alguma renovação, por exemplo, na moral sexual. A moral sexual foi baseada neste conceito aristotélico-tomista de uma natureza imutável. O Papa Francisco, no documento do sínodo, diz que temos de criar uma ética moral e sexual focada nas relações. É uma questão filosófica bastante complexa para sumarizar numa entrevista. Mas, sim, esta filosofia da natureza imutável tem alguma importância na defesa dos direitos humanos, e por aí fora, contra o relativismo cultural. Na moral sexual, claro que há aspetos imutáveis nesta parte da natureza humana, mas há também, por exemplo, o papel social. Entre sexualidade e género: o sexo como um dado biológico e o género como um papel social. O papel social das mulheres está a mudar na história, é diferente em diferentes culturas. O papel das mulheres na sociedade e na família era diferente nos tempos antigos, na Idade Média, no século XIX e agora.
E tem sido uma mudança positiva, de obtenção de mais direitos.
Tem sido uma mudança positiva. Tem de haver sempre uma sensibilidade para a cultura específica, não pode dizer-se que um modelo específico é o modelo certo para toda a gente.
De uma perspetiva teológica, considera, por exemplo, que as mulheres deveriam poder receber a ordenação sacerdotal?
Penso que, hoje em dia, depois do sínodo, a Igreja está a procurar novos ministérios para as mulheres na Igreja. Agora, falamos mais dos ministérios do que da ordenação. Pode ser uma solução, pois há também o perigo da clericalização das mulheres.
Ou seja, é preciso “desclericalizar” o poder?
Exato. Mais foco nos ministérios. E penso que é isso que está a acontecer agora. As mulheres têm ministérios na Igreja: podem ser catequistas, podem pregar durante a missa, e por aí fora. Claro que tem de haver alguma descentralização da Igreja, porque o papel histórico das mulheres é diferente em África e na Europa, por exemplo. Não podemos ter uma solução num dia para toda a gente, sem sensibilidade aos meios culturais. Agora, não consigo encontrar objeções teológicas sérias contra a ordenação de mulheres. Há o argumento de que Jesus escolheu apenas homens como apóstolos. Bom, Jesus escolheu apenas judeus — e hoje podemos ordenar portugueses e japoneses. Este argumento, para mim, não é importante. Penso que as objeções são mais psicológicas e culturais do que teológicas. Porém, isto não significa que eu penso que, se amanhã as mulheres pudessem ser ordenadas, se resolvia tudo. Concordo com o Papa: é preciso mais reflexão. Neste momento, deve haver um maior foco nos ministérios e não apenas na ordenação. Vamos ver.
Quando diz que a Igreja tem de aprender a ler os sinais dos tempos, enfrenta também um possível contra-argumento da parte dos mais conservadores, que lhe vão dizer que isso representa o perigo do relativismo, é a Igreja a adaptar-se ao mundo. Como responde a esta objeção?
Digo sempre que não é uma adaptação, é um diálogo. Temos de distinguir. Sou contra uma modernização superficial, uma adaptação, uma conformação. Sou totalmente contra essa ideia de conformação. Tem de ser uma cultura do discernimento espiritual, tem de ser um fruto desta abordagem contemplativa. A sinodalidade não é apenas a mudança das instituições. O mais importante é a mudança de mentalidade e o aprofundamento da espiritualidade. O meu foco está no aprofundamento da espiritualidade, nesta arte de cultivar uma abordagem contemplativa à sociedade. Não uma adaptação superficial. Tem de haver sempre uma terceira via. O conservadorismo e o progressismo são muito semelhantes, porque ambos sobrevalorizam o papel das instituições. Os conservadores pensam que, se as instituições ficarem na mesma, tudo ficará bem; os progressistas pensam que, se mudaram as instituições, tudo ficará bem. Temos de mudar as mentalidades, não adaptando, mas aprofundando uma cultura de discernimento espiritual. Penso que isto foi ofuscado, no século XIX, pela generalização do dizer “não” à modernidade. Também teria sido um erro dizer “sim” acriticamente. Mas o papel profético da Igreja é fazer essa distinção.
Nesse contexto, qual é a avaliação que faz do Sínodo dos Bispos que terminou no mês passado?
Estou muito feliz. Penso que depende sempre das expectativas que temos. Esperar que todos os problemas sejam resolvidos em duas sessões seria ingénuo. Este sínodo não foi um concílio ecuménico, que poderia mudar tudo, mas foi mais como um retiro espiritual, para inspirar a mentalidade e para mostrar o sentido do caminho. Temos de ir neste sentido, temos de ouvir mais o Espírito Santo, temos de saber como interpretar melhor os sinais dos tempos. No fim de contas, foi muito importante o facto de o Papa ter dito que agora não vai escrever um documento, uma encíclica: o rebanho é vosso.
Desde o início, houve dois grupos com expectativas diferentes. Havia aqueles que esperavam que o sínodo mudasse as regras da Igreja sobre a ordenação de mulheres e outros assuntos — essa expectativa foi muito amplificada na comunicação social. Outros esperavam que o principal fruto deste sínodo não seria o conteúdo, mas o processo: a ideia de passar a tomar decisões de forma coletiva, partilhada, comum. Suponho que partilhe mais desta segunda perspetiva.
Absolutamente. Penso que é importante ter esta abertura. Recentemente, enviei uma carta pessoal ao Papa Francisco — não ao Papa imaginário — com algumas sugestões sobre o que penso que deve ser o próximo passo. Deveria ser um sínodo ecuménico dos teólogos. Houve um sínodo dos párocos, que têm um papel muito importante na Igreja, antes do Sínodo dos Bispos. Vieram padres de paróquias de 99 países, de todos os continentes. Foi uma parte importante do processo sinodal. Mas penso que os teólogos são também uma parte importante da Igreja e deveriam ter também algum tipo de reunião sinodal.
Ecuménico? Também com teólogos protestantes, por exemplo?
Ecuménico. Convidar também alguns pensadores protestantes e ortodoxos. Não para ser apenas mais um congresso científico — já há muitos congressos —, mas sim para usarmos o método da sinodalidade: rezar juntos, meditar juntos. Isso surge também no documento do sínodo: o próximo passo deve ser ecuménico. Penso que deverá ser este encontro dos teólogos, que deverão dar algumas sugestões sobre como ler os sinais dos tempos e sobre qual deve ser a resposta do Cristianismo aos sinais dos tempos. O aniversário do primeiro concílio ecuménico, de Niceia, no próximo ano, é uma ocasião muito boa para convocar este encontro. Pedi ao Papa que pensasse nisso, vamos ver.
No ano passado, discursou na abertura da Assembleia da Federação Mundial Luterana — foi o primeiro católico a fazê-lo — e, tal como agora volta a fazer neste livro, defendeu a necessidade de uma nova reforma. Compara até os tradicionalistas contemporâneos aos vendedores de indulgências do século XVI. O Cristianismo está, hoje, à beira de precisar de uma nova reforma? Está num momento de crise comparável ao que motivou a Reforma Protestante?
A Igreja, como dizia Santo Agostinho, é semper reformanda, em reformação permanente. Há momentos de pequenas reformas e há momentos de grandes reformas: a Reforma Gregoriana, as reformas de Trento, o Concílio Vaticano II… Penso que estamos novamente neste ponto. O Concílio Vaticano II foi a resposta à Modernidade, mas penso que veio um pouco tarde. Aconteceu num momento em que a Modernidade já estava a acabar, já estava a morrer. Agora, estamos numa nova situação, numa globalização pós-moderna, uma situação muito difícil, e por isso precisamos de uma nova forma de escuta, de discernimento espiritual, e por aí fora. Penso que o Sínodo é um bom caminho. Não houve apenas a Reforma Protestante: ao mesmo tempo, houve a Reforma Católica.
A Contrarreforma.
Penso que Contrarreforma não é bem o nome mais adequado. Não foi apenas uma resposta à Reforma Protestante. Houve grandes personalidades como Teresa de Ávila, Inácio de Loyola ou bispos como Carlos Borromeu. Penso que precisamos de algo semelhante. Olho para alguns místicos, alguns teólogos, que poderão dar alguns impulsos espirituais para que se vá mais fundo. É muito importante não ir para a esquerda, não ir para a direita, não ir para o progressismo nem ir para o conservadorismo: é preciso ir mais fundo.
E, na sua perspetiva, é preciso inaugurar uma nova era para o Cristianismo?
Sim. E o Papa já disse que o Sínodo é uma nova forma de ser cristão, uma nova forma de ser Igreja no nosso mundo. É um programa para todo o terceiro milénio. Não podemos esperar que tudo aconteça agora, mas temos de ir passo a passo, com coragem e responsabilidade.