O teólogo checo Tomáš Halík, um dos mais reputados intelectuais católicos contemporâneos, propôs esta quinta-feira em Cracóvia uma “nova reforma” do Cristianismo para o século XXI, apelou a todos os cristãos que sejam capazes de “transcender as atuais fronteiras mentais e institucionais, confessionais, culturais e sociais”, devolvendo ao Cristianismo a sua missão universal — e deixou duras críticas a Vladimir Putin por usar “cinicamente o messianismo religioso russo” para fazer avançar os seus objetivos.

Halík falava esta manhã na abertura da 13.ª Assembleia da Federação Mundial Luterana. Foi o primeiro católico na história a fazer a intervenção de abertura daquele congresso, comparável a um concílio católico, que reúne 800 delegados de 149 Igrejas Luteranas de 99 países diferentes — representando 77 milhões de fiéis. O Luteranismo é um dos principais ramos do Protestantismo, herdeiro direto da Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero no século XVI.

No discurso, que será publicado em livro em língua portuguesa pela editora católica Paulinas, Halík sublinhou que o Cristianismo se encontra, hoje, “no limiar de uma nova reforma”.

“Não será a primeira, nem a segunda, nem a última. A Igreja vive, nas palavras de Santo Agostinho, em permanente reforma, semper reformanda. No entanto, particularmente em tempos de grandes mudanças e crises no nosso mundo comum, é tarefa profética da Igreja reconhecer e responder ao chamamento de Deus em relação a estes sinais dos tempos”, sustentou.

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O teólogo e filósofo checo lembrou que, tal como no século XVI houve duas reformas paralelas (a Refoma Luterana e a Contrarreforma Católica), no século XX houve dois novos momentos de reforma: o Concílio Vaticano II, na Igreja Católica, e a “expansão do Cristianismo Pentecostal”.

“Uma reforma, a transformação da forma, torna-se necessária sempre que a forma bloqueia o conteúdo ou inibe o dinamismo do núcleo vivo. O núcleo do Cristianismo é o Cristo vivo e ressuscitado, que vive na fé, na esperança e no amor dos homens e mulheres, na Igreja e bem para lá das suas fronteiras visíveis”, disse Halík. “Estas fronteiras precisam de ser alargadas, e todas as nossas expressões exteriores de fé exigem transformação, caso se interponham no caminho do nosso desejo de ouvir e compreender a Palavra de Deus.”

No entender de Tomáš Halík, “o ecumenismo do século XXI deve ir muito mais longe do que o ecumenismo do século passado”. “A unidade entre os cristãos não pode ser o objetivo final da nova Reforma; só pode ser uma consequência do esforço para reunir toda a família humana e assumir uma responsabilidade comum pelo seu ambiente, por toda a criação”, disse ainda.

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A luta pela unidade dos cristãos, historicamente divididos em vários ramos (como os católicos, os protestantes e os ortodoxos), não deve ter como objetivo “tornar o Cristianismo mais poderoso e influente neste mundo”, mas sim torná-lo mais credível. “Devemos comunicar a mensagem que nos foi confiada de uma forma credível, inteligível e convincente. As tensões entre cristãos minam essa credibilidade”, disse Halík. “É esta unidade entre os cristãos, unidade na diversidade, que deve ser o princípio, a fonte e o exemplo de coexistência dentro de toda a família humana, uma forma de partilha, de compatibilidade mútua dos nossos dons, experiências e perspetivas.”

O teólogo checo lembrou que a primeira reforma da história do Cristianismo teve origem no próprio São Paulo, que levou a jovem religião “para fora dos estreitos limites de uma das seitas judaicas e ao encontro da mais vasta oikumene do mundo de então”, apresentando o Cristianismo “como uma oferta universal, que transcende as fronteiras religiosas, culturais, sociais e de género”.

“Também hoje, o Cristianismo enfrenta a necessidade de transcender as atuais fronteiras mentais e institucionais, confessionais, culturais e sociais, a fim de cumprir a sua missão universal”, disse. “Contribuiremos nós para que o nosso testemunho ajude a transformar este mundo numa civitas oecumenica, ou seremos cúmplices, através da nossa indiferença e egocentrismo, do trágico choque de civilizações? Tornar-se-ão as comunidades de fé parte da solução para as dificuldades que enfrentamos.”

O alerta contra o “pecado da idolatria”

No discurso perante os delegados da Assembleia da Federação Mundial Luterana, Tomáš Halík deixou ainda um alerta: qualquer cristão que considera que a sua Igreja é “final e perfeita”, ao contrário das outras Igrejas cristãs, está a cometer uma heresia e um pecado.

“A história do mundo e da Igreja não é nem a de um progresso de sentido único, nem a de um declínio permanente e alienação de um passado idealizado, mas um drama aberto, uma luta constante entre graça e pecado, fé e incredulidade, travada em cada coração humano”, afirmou Halík, pedindo “maturidade” na fé cristã.

“Se conseguirmos transformar o conflito entre fé e dúvida nas nossas mentes e corações num diálogo honesto, isso ajudará a maturidade da nossa fé e poderá contribuir para um diálogo entre crentes e não-crentes que vivem juntos numa sociedade pluralista”, disse. “A fé sem questões fundamentais pode conduzir ao fundamentalismo, à intolerância e ao fanatismo. A dúvida que é incapaz de duvidar de si mesma pode conduzir ao cinismo. A fé e o pensamento crítico precisam um do outro.”

Halík foi mais longe para sublinhar que “a Igreja, na Terra, não é a ecclesia triumphans, a Igreja vitoriosa e perfeita dos Santos no Céu”. “Aquele que considera qualquer forma de Igreja e a sua teologia, no meio da História, como final e perfeita, aquele que confunde a ‘Igreja militante’ terrena (a ecclesia militans – cuja principal batalha é com os seus pecados) com a vitoriosa ecclesia triumphans, comete a heresia de triunfalismo, o pecado da idolatria”, sustentou.

Tal como no século XVI Martinho Lutero se indignou contra quem aproveitava os receios dos crentes para vender indulgências, também hoje há “populistas, nacionalistas e fundamentalistas religiosos” a explorar os medos contemporâneos em “benefício do seu próprio poder e interesses económicos”, acusou Halík.

“Exploram-no da mesma forma que o medo pela salvação da alma foi explorado no tempo em que as indulgências estavam à venda. Oferecem enquanto substituto da ‘alma’ vários tipos de identidade coletiva, sob a forma de nacionalismo e sectarismo político ou religioso. Abusam igualmente dos símbolos e da retórica cristã; tornam o Cristianismo uma ideologia política identitária”, disse, pedindo uma “nova evangelização” e um “ecumenismo do século XXI” que transforme o modo como os cristãos se dirigem ao mundo. “Não podemos abordar os outros como arrogantes possuidores da verdade”, sintetizou.

O discurso de Halík será publicado na íntegra em livro pela editora Paulinas com o título "No limiar de uma Nova Reforma do Cristianismo"

“O objetivo da missão não é recrutar novos membros para a Igreja de modo a comprimi-los nas fronteiras mentais e institucionais existentes das nossas Igrejas, mas antes ir para lá dessas fronteiras e, juntamente com eles, em respeito mútuo e diálogo mutuamente enriquecedor, dar o passo seguinte rumo a um Cristo que é maior do que as nossas ideias sobre Ele”, disse Halík.

“Vladimir Putin usa cinicamente o messianismo religioso russo”

O teólogo e filósofo dedicou a parte final do seu discurso à realidade política contemporânea e à guerra na Ucrânia. Lembrando que o encontro das Igrejas Luteranas acontece na Polónia, um país do espaço pós-comunista, Halík — que é checo e tem grande parte do seu pensamento moldado justamente pelas tensões do período pós-comunista — lembrou que “a democracia não é, simplesmente, um particular regime político, mas, antes e sobretudo, uma certa cultura de relações interpessoais”.

“A democracia não pode ser estabelecida e sustentada apenas pela mudança das condições políticas e económicas; ela pressupõe um certo clima moral e espiritual”, disse, lamentando que esse processo tenha sido “negligenciado” em muitos países pós-comunistas. “Muitos dos últimos comunistas tornaram-se os primeiros capitalistas. Alguns países pós-comunistas são governados por populistas e oligarcas – antigas elites comunistas, as únicas que, após a queda do comunismo, detinham o capital, contactos influentes e informação”, disse.

Halík deu como exemplo a Rússia, onde se vive uma “crise económica, moral e demográfica”, já que “o regime ditatorial de Putin não tem nada a oferecer à sua população, senão a droga do messianismo nacional”.

“Após o colapso do comunismo, surgiram visões otimistas de que estava próximo o final feliz da História, a vitória global da liberdade e da democracia. Hoje, não muito longe do local onde nos encontramos, está a ganhar forma um apocalipse que representa a ameaça real de um ‘fim da História’ bastante diferente: a guerra nuclear”, lembrou. “A agressão da Rússia contra a Ucrânia não é apenas mais uma das suas guerras locais; a tentativa de genocídio do povo ucraniano faz parte do plano da Rússia para restabelecer o seu império em expansão. A principal razão para a invasão russa foi o receio, por parte do regime russo, de que o exemplo das ‘revoluções coloridas’ democratizantes, nas antigas repúblicas soviéticas despertasse a sociedade civil e o desejo de democracia na própria Rússia.”

Halík deixou ainda um aviso ao Ocidente: “Se o Ocidente traísse a Ucrânia e cedesse às exigências de Moscovo, como fez no caso da Checoslováquia, no limiar da Segunda Guerra Mundial, não estaria a salvar a paz, mas a encorajar ditadores e agressores, não apenas no Kremlin, mas em todo o mundo. Amar o inimigo significa, no caso de um agressor, impedi-lo de fazer o mal, ensina o papa Francisco na sua Encíclica Fratelli tutti; por outras palavras, tirar a arma do crime da sua mão.”

No entender do teólogo e filósofo, “Vladimir Putin usa cinicamente o messianismo religioso russo e os corruptos líderes da Igreja Ortodoxa Russa para promover os seus objetivos”. “A comunidade cristã ecuménica global também não pode ficar cega e indiferente a este escândalo. Quando a Igreja estabelece ‘uniões de facto’ com o poder político, especialmente com partidos nacionalistas e populistas, paga sempre um preço elevado. Quando a Igreja se deixa corromper por um regime político, perde, primeiro, a sua juventude e o seu povo educado no pensamento crítico; a nostalgia do passado, do casamento entre Igreja e Estado, priva a Igreja do seu futuro.”

“Quando a Igreja entra em ‘guerras culturais’ com o seu ambiente secular, sai sempre delas derrotada e deformada; as guerras culturais aprofundam o processo de exculturação e secularização”, sublinhou.