A notícia foi dada pelo Presidente da República à saída da reunião: não vai mesmo ser pedida uma terceira renovação do estado de emergência e as restrições vão mesmo começar a ser levantadas a partir do dia 4 de maio. Mas isto foi o que disse fora de portas. Dentro da reunião que juntou especialistas e decisores políticos na sede do Infarmed, em Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa, pela primeira vez, não fez qualquer pergunta. Apenas ouviu. O mesmo fez o primeiro-ministro, que se limitou a fazer uma declaração final sem grandes novidades, apontando para daqui a 15 dias nova reunião. A ideia é essa: ouvir os especialistas, sem se comprometerem. Todo o cuidado é pouco e ninguém descarta que, daqui a 15 dias, não tenham de ser dados passos atrás. Para isso, ao que o Observador apurou junto de várias fontes presentes na reunião, os epidemiologistas procuraram munir o Governo de números que funcionam como uma espécie de cábula para saber se estamos a ir no bom caminho. Um dos números a reter é este: 4 mil internamentos, que é o máximo que o SNS suporta atualmente. Acima disso, haverá rutura. Objetivo: não chegar a esse número.
Mas que cábula é esta? Trata-se de um cenário traçado pela equipa de especialistas da DGS e do Instituto Doutor Ricardo Jorge na lógica de “cenário borderline“, ou seja, de cenário-limite, em que são calculados os números de internamento considerados ‘limite’ a cada 15 dias face à capacidade de resposta do SNS. Se, ao fim de dois meses (que é o tempo mais ou menos estimado para a duração de cada vaga do surto), atingirmos os 4 mil internamentos no SNS, tal significa que estamos no mau caminho. Isto é, significa que estamos a caminhar para a rutura, e que será preciso travar a fundo.
A lógica, contudo, tem de ser preventiva. Atualmente, Portugal está “apenas” com cerca de mil internamentos (esta terça-feira havia 936 internamentos, sendo que 172 pessoas estavam nos cuidados intensivos), o que significa que ainda “há folga”. Mas a ideia é que não podemos chegar ao fim de dois meses e perceber que estamos em rutura, nota uma fonte partidária ouvida pelo Observador. Daí a cábula: para cada 15 dias é calculado um número-limite de internamentos, se o Governo vir que o país se está a aproximar desse número, a cada 15 dias pode decidir apertar o cinto das restrições e inverter o sentido da marcha. Este, contudo, é apenas um dos critérios a ter em conta, mas há mais, como a taxa de mortalidade por outras causas (que não Covid-19) ou o número de internamentos em unidades de cuidados intensivos, que também tem de ser monitorizado de perto. Tudo deve ser tido em conta na hora de decidir levantar mais uma restrição aqui ou ali.
“Atualmente temos cerca de mil internados e há folga. Porquê? Porque o SNS, com a atual capacidade, aguenta até cerca de 4 mil casos de internamento por Covid-19”, afirma Luís Mira, presidente da Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP), presente na reunião, ressalvando contudo que os especialistas foram cuidadosos ao dizer que o cálculo é mais complexo do que isso, na medida em que tem de se ter em consideração fatores específicos como a capacidade de resposta dos cuidados intensivos. Ou seja, quantos dos internamentos estão em cuidados intensivos e quantos estão em enfermaria.
Para enquadrar estes cenários, foram mostrados vários números na reunião. A média de idades dos óbitos, por exemplo, ronda os 81,9 anos de idade (sendo que de 20 a 26 de abril a média de idades das pessoas que morreram foi de 83 anos), o que é considerado muito alta; 13% das mortes têm menos de 70 anos e “um elevado número de co-morbidades associadas”. E 25% das pessoas internadas fica em média 9 dias nas enfermarias.
Mas uma coisa ficou clara, no entender de Luís Mira: Portugal ganhou tempo, ganhou margem, ganhou folga nesta primeira vaga do surto, e agora pode levantar restrições e ir controlando a evolução do surto. “Há folga para que sejam tomadas, agora, estas medidas para aliviar o confinamento”, concluiu Luís Mira do que ouviu esta manhã. Ainda assim, foi uma espécie de “travão de emergência” — ainda com contornos a definir — o que os especialistas da DGS apresentaram hoje aos principais responsáveis políticos e parceiros sociais, numa tentativa de lhes darem os instrumentos possíveis para servir de escudo à difícil tarefa de reabertura da sociedade e da economia. Reabrir, sim, mas sempre com a cábula à mão.
Pressão social e “condicionamento” para reabrir
É que se não os podes vencer, junta-te a eles. Foi mais ou menos isso que fizeram os especialistas nesta reunião quinzenal, que foi mais curta do que o habitual, na medida em que já perceberam que a vontade política é de abrir, devagarinho. Embora o primeiro-ministro diga sempre que todas as decisões são sustentadas nos pareceres técnicos dos especialistas, e não o contrário, desta vez as várias fontes ouvidas pelo Observador notam que terá havido uma mistura dos dois. “Sentiu-se uma espécie de pressão” social da parte dos epidemiologistas, que “sabem que a saturação dos portugueses também não é para subestimar”, ouviu o Observador de uma fonte partidária.
Ainda assim, o que ficou subentendido, no entender de algumas das fontes ouvidas pelo Observador, foi que daqui a 15 dias haverá nova reunião — e, logo, haverá mais tempo para o tal índice ‘R’ de contágios diminuir — e só na segunda quinzena de maio é que deverá ser dada ordem para reabrir o grosso das instituições, nomeadamente as escolas (do ensino secundário), que é a parte considerada mais arriscada do processo.
“Esta foi a vez em que os especialistas pareciam mais condicionados no que estavam a dizer, como se estivessem pressionados a defender a reabertura da economia, e tentaram, claramente, dar argumentos para justificar o alívio das medidas“, diz outro líder partidário ao Observador. E acrescenta: “Ao contrário do que tinham feito nas outras reuniões, em que deram o ‘R’ como o índice a seguir, desta vez, como o ‘R’ estava pior, curiosamente falaram noutros fatores”. Ou seja, disseram que é preciso olhar para o “panorama geral” e não apenas para números mágicos.
‘R’ ligeiramente acima de 1, mas há outros fatores a medir
Até porque não há números mágicos. A questão do ‘R’, o índice que mede o número médio de contágios por cada infetado, continua a ser importante mas, desta vez, não foi tida como a única chave para decretar o desconfinamento. Se, noutras reuniões anteriores, os especialistas tinham chegado a indicar que o desconfinamento só deveria ser feito com o ‘R’ abaixo de 1, agora — com o ‘R’ nacional a rondar os 0,94 e 1,04, variando de região para região, sendo em Lisboa mais alto do que no norte —, já se mostraram disponíveis para facilitar esse parâmetro desde que houvesse uma conjugação de outros fatores — fatores esses que também já tinham sido referidos em reuniões anteriores. É o caso de avaliar se o número de mortes está a diminuir há cinco dias consecutivos ou se a média de novos contágios se mantém abaixo de 500 novos casos por dia, bem como se a taxa de ocupação em unidades de cuidados intensivos continua controlada.
Tudo critérios que estão (mais ou menos) a verificar-se em Portugal. Nos últimos cinco dias, o número de mortes desceu das 34 na sexta-feira, 24 abril, para 26 vítimas mortais a 25 de abril, descendo depois para 23 no dia seguinte, subindo ligeiramente para 25 no dia 27 e estando agora nas 20 mortes registadas a 28 de abril. Quanto a novos casos, há cinco dias que se mantêm em média abaixo de 500, tendo nesta terça-feira sido apenas 295, e na segunda apenas 163. Apenas no dia 25 de abril o número subiu acima dos 500, tendo-se registado 595 novos casos no país.
Os especialistas, explica ao Observador um líder partidário, referiram como aspetos positivos — que permitem a reabertura gradual — fatores como a ocupação de camas em hospitais (“destacaram que o número de internamentos hospitalares tem diminuído”), as consultas em unidades de cuidados de saúde primários (“que estão em linha com o que é normal”), a diminuição do número de mortes diárias por Covid 19, mas também o facto de as “mortes, no geral, sem ser por Covid, estarem em linha com o que é normal nesta época do ano”. Sempre a olhar para o panorama geral, e não apenas para o índice de contágio, o “R”, que, em países como a Noruega, a Dinamarca e a República Checa, que já iniciaram o desconfinamento, ronda os 0,8 — ou seja, está confortavelmente abaixo de 1.
Assim, apesar de os especialistas terem confirmado, por um lado, que este índice de contágio em Portugal é hoje menos positivo do que há quinze dias, já que “estava abaixo de 1 e agora está acima de 1”, também revelaram que — ao contrário de há duas semanas — “é mais baixo na região norte do que na região de Lisboa e Vale do Tejo”, o que se explica pelo “episódio específico do número de contaminados num hostel” da capital. Recorde-se que só o contágio que ocorreu no Hostel Aykibom, nos Anjos, em Lisboa, contribuiu com 138 afetados para os números globais. Ou seja, foi um fator pontual, que foi controlado e não provocou um descontrolo da situação.
A ideia, resumiu uma fonte política ao Observador, é que os especialistas se recusaram a dizer que era prematuro levantar já as restrições, por o índice de contágios ainda não estar abaixo de zero, e, em vez de se comprometerem e serem perentórios, preferiram olhar para “o panorama geral” e para a ideia de que “não dá mais”. “Mesmo que quiséssemos continuar a impor o confinamento, as pessoas já não estão a aguentar mais”, diz a mesma fonte partidária, referindo que isso também pesou na análise dos epidemiologistas, que, desta vez, ao contrário das outras, não se limitaram a fazer uma análise fria e técnica dos números. Prova disso é outro número que também foi levado para cima da mesa: houve um aumento da mobilidade dos cidadãos portugueses na ordem dos 60%, o que prova que os portugueses estão a sair mais.
Os especialistas voltaram a admitir ainda que a reabertura possa ter ritmos diferentes de acordo com as regiões do país, apurou também o Observador. Mas essa hipótese tem sido, no entanto, descartada pelo primeiro-ministro António Costa, e voltou a ser rejeitada pelo secretário-geral adjunto do PS nas declarações aos jornalistas, que prefere uma reabertura gradual mas ao mesmo tempo em várias regiões do país.
Um dos líderes partidários presentes na reunião ouvido pelo Observador ficou, assim, com a ideia de que “os especialistas concordaram em reabrir”, mas “de forma gradual, leve e sustentada”. No entanto, diz a mesma fonte, os especialistas — Rita Sá Machado, da DGS, mas em particular os epidemiologistas Baltazar Nunes e Manuel Carmo Gomes — quiseram deixar claro que com a reabertura terá de haver “a capacidade de recuar” se a situação piorar de forma significativa, definindo os parâmetros a partir dos quais se tem de voltar para trás. Ou seja: um “travão de emergência” a utilizar caso a monitorização da situação, que será avaliada de 15 em 15 dias, mostre que é necessário regressar ao confinamento. Lá está, é preciso ter a cábula à mão. Uma cábula com vários parâmetros e critérios.
Usar a tecnologia para rastrear contágios
O uso da tecnologia para melhor rastrear os contágios também foi recomendado pelos especialistas, neste caso pelo epidemiologista Henrique de Barros, do Porto. Segundo o Observador apurou, o especialista recomendou ao Governo o uso de uma aplicação deste tipo, criada ao nível da União Europeia, dentro das regras comunitárias e de proteção de dados.
Trata-se, segundo explicou uma fonte presente na reunião, de uma aplicação para smartphone que o utilizador tem de descarregar, logo, é de adesão voluntária, e que funciona através de bluetooth. A ideia é que os telemóveis detetem quando estão perto de uma pessoa infetada, enviando depois uma notificação para os utilizadores a dizer que estiverem em contacto com uma pessoa com Covid-19, não dizendo quem é. Os dados são anónimos e são destruídos ao fim de 14 dias.
Mais: é um médico que valida que determinado indivíduo tem Covid-19, confirmando isso mesmo no sistema, o que faz com que as pessoas sejam alertadas e tomem depois as medidas de prevenção necessárias e fiquem alerta para a existência de eventuais sintomas. “É uma ferramenta muito potente, que tem a vantagem de isolar rapidamente os casos suspeitos para que não haja uma expansão”, diz uma fonte ouvida pelo Observador, afirmando que o epidemiologista garantiu que a app cumpre as normas europeias de proteção de dados.
De resto, sobre a reabertura das escolas, pouco ou nada se falou, com algumas fontes ouvidas pelo Observador a ficarem com ideia de que o Governo poderá estar a pensar empurrar esse passo para a segunda quinzena de maio, fazendo um primeiro teste com o pequeno comércio local e serviços de atendimento ao público. Apenas a professora Carla Nunes, da Escola Nacional de Saúde Pública, referiu um estudo da Universidade Nova, que diz que de todas as atividades sociais, a educação é a que acarreta maior probabilidade de infeção, diminuindo se estivermos a falar de alunos universitários face a creches. “Não fez nenhuma recomendação direta nem foi perentória, mas referiu os riscos”, diz uma fonte.
Acordo de cavalheiros para não abrir o jogo
Quanto ao uso de máscaras e equipamentos de proteção individual a acompanhar a fase de reabertura, desta vez os especialistas foram unânimes em “recomendar o uso”. Mas nada disseram sobre se o uso devia ser obrigatório, e se o não-uso deveria implicar multa, como acontece noutros países. O enquadramento legal do que se seguirá ao estado de emergência, em todo o caso, ainda não está fechado. Como o Observador noticiou na semana passada, o Governo está inclinado para o “estado de calamidade”, previsto na lei de bases da Proteção Civil, mas há quem entenda que isso serve apenas para eventos pontuais e circunscritos.
André Ventura, na reunião desta terça-feira, dirigiu uma pergunta ao “Presidente e constitucionalista” Marcelo Rebelo de Sousa sobre essa matéria mas, ao que o Observador apurou, ficou sem resposta. O Governo vai ouvir os partidos políticos esta quarta-feira e na quinta-feira reúne-se para definir as medidas da reabertura e o respetivo enquadramento legal.
Certo é que, ao contrário do habitual em reuniões anteriores, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa não fez qualquer pergunta, tal como aconteceu com António Costa. Mesmo o primeiro-ministro fez apenas uma breve intervenção a anunciar a próxima reunião, daqui a 15 dias, e a informar que ia receber os partidos em S.Bento sobre este assunto já na quarta-feira. Um líder partidário presente na reunião comenta com o Observador: “A sensação que nós ficámos é de que havia mesmo ali um acordo para ninguém falar, entre Marcelo e Costa, para não se abrir o jogo”.