Quando o assunto é Josef Estaline, “tirano sanguinário, um político-máquina, uma personalidade paranoica, um burocrata sem piedade e um fanático ideológico” são epítetos que nos ocorrem — e que abrem o livro do historiador Geoffrey Roberts, A Biblioteca de Estaline — muito mais depressa do que “intelectual amante de livros e da leitura.” Não se pode dizer que a fama seja imerecida. Entre manobras maquiavélicas (terá lido O Príncipe quando estava no exílio) para ascender à liderança do partido comunista e da União Soviética, a eliminação desapiedada de muitos dos inimigos, reais ou imaginários, que o ameaçavam, a implementação de uma máquina de censura e repressão gigantesca, a gestão de um denso regime burocrático assente no terror e na paranoia e a promoção de um grandioso culto da personalidade, não sobraria muito tempo a Estaline para se afirmar como intelectual.
Mais do que a iconografia dos seus tempos áureos que o mostrava frequentemente a ler e rodeado de livros, impuseram-se na perceção universal de Estaline não só as suas ações conspícuas, mas também opiniões de homens como Lenine que, num post-scriptum ao seu testamento, o classificou de grosseiro e inadequado, por falta de prudência e tolerância, para liderar o partido, Trotski, o seu grande rival na luta pela sucessão de Lenine, que considerava Estaline a “mediocridade eminente” do partido, e o seu sucessor, Nikita Kruschev que, no célebre discurso secreto de 1956, três anos após a morte do tirano, criticou o culto da personalidade perante uma plateia incrédula de membros do partido comunista da União Soviética. Independentemente da origem, e da absoluta justeza, dessa imagem, o facto é que em “termos intelectuais, Estaline sempre foi considerado um pigmeu, que pouco ou nada contribuiu para a formulação do marxismo”, como escreve Richard Overy em Os Ditadores.
Geoffrey Roberts, que, por causa de obras anteriores, como Stalin’s Wars: From World War to Cold War, já foi acusado de assumir o papel de advogado de defesa de Estaline (von Scheliha on Roberts, Stalin’s Wars: From World War to Cold War, 1939-1953), branqueando alguns dos muitos episódios negros do longo domínio do ditador, como o do massacre de Katyn, procura equilibrar esse retrato sombrio com uma paleta de cores suaves que, sem mascarar os crimes do estalinismo, o apresenta a uma luz mais favorável: a luz dos seus esforços intelectuais e do seu amor duradouro pelos livros e pela leitura.
Título: “A Biblioteca de Estaline — Um ditador e os seus livros”
Autor: Geoffrey Roberts
Editora: Zigurate
Tradução: Frederico Pedreira
Páginas: 384
Se compararmos este livro com outra investigação dos hábitos de leitura e a influência dos livros sobre o pensamento e a ação de outro ditador — A Biblioteca Privada de Hitler, de Timothy W. Ryback — constatamos que a obra de Roberts é mais ambiciosa e mais dispersa porque não se demora na prospeção minuciosa das leituras de Estaline, que, no entanto, também analisa, preferindo um enquadramento intelectual da biografia do ditador. Se aquele livro é, de facto, um livro sobre a biblioteca de Hitler, este tem no seu centro o estatuto (discutível e pouco reconhecido) de intelectual de Estaline e não tanto a sua biblioteca e as anotações do próprio nos livros que a compunham, que aqui servem mais de prova acessória desse mesmo estatuto.
Roberts não tem dúvidas quanto à forma como Estaline se via a si mesmo: “Via-se não como um operário, nem sequer como um camponês, mas como um intelectual cuja tarefa era disseminar a instrução e a consciência socialista. Foi esta escolha, de fundamental importância, de uma identidade intelectual que acabou por motivar a sua dedicação, fanática e de uma vida inteira, à leitura e ao desenvolvimento pessoal”. Porém, sem negar a inteligência de Estaline, que se revelou desde cedo (o historiador Simon Sebag Montefiore, autor de Estaline: A Corte do Czar Vermelho, diz que era “uma criança imensamente inteligente, super-sensível e emocionalmente atrofiada, que possuía um forte complexo de inferioridade mas também uma enfatuada arrogância” e Dmitri Volkogonov, um dos biógrafos de Estaline, citado por Roberts, apontou a sua “inteligência excecional”), e outras qualidades fundamentais como a sagacidade e o seu carácter prático, para se atribuir à sua dimensão intelectual o caminho que o levou de ator secundário da revolução russa a líder todo-poderoso do partido e da União Soviética teria de se ignorar que nesse trajeto ultrapassou adversários intelectualmente mais brilhantes do que ele.
Zinoviev e Kamenev, que juntamente com Estaline constituíram um triunvirato após a morte de Lenine, e, sobretudo, Trotski, que se opunha aos restantes, eram todos intelectualmente superiores a Estaline e provavelmente uma das chaves do triunfo deste na luta pela sucessão a Lenine terá estado na forma condescendente como os outros o viam, um georgiano oriundo de uma família modesta e cuja formação passara por um seminário de Tbilisi. Nem Zinoviev, Kamenev ou Trotski nutriam grande consideração intelectual por Estaline, uma opinião generalizada entre os bolcheviques: “[Estaline] não possuía nenhuma das qualidades que os bolcheviques costumavam associar a uma liderança excecional. Não era uma figura carismática, bom orador, ou um teórico marxista digno de nota como Lenine ou Trotski. Não era um herói de guerra, um filho honesto da classe operária, não era sequer um intelectual”, escreve Sheila Fitzpatrick em A Revolução Russa, referindo também a descrição marcante que Nikolai Sukhanov, um menchevique, fez de Estaline: uma “mancha cinzenta”.
Zinoviev, anos mais tarde, chegou a lamentar a postura condescendente para com o homem que ele vira apenas como representante das minorias nacionais (foi, a certa altura, o comissário para os Assuntos das Nacionalidades), e essa combinação da complacência dos rivais com a determinação de Estaline explica em grande medida a sua ascensão: “Enquanto [Trotski] desfrutava do prestígio por ter constituído o Exército Vermelho e escrevia as suas obras em vários volumes, Estaline empenhava-se em reunir a sua própria equipa de funcionários fiéis e em acumular poder”, escreve Volkogonov na sua biografia sobre Lenine, acrescentando que o “grande segredo da invulnerabilidade de Estaline, a sua força diabólica, foi o seu monopólio de Lenine, o monopólio da interpretação e da ‘proteção’ do legado de Lenine”. A sugestão para que o corpo de Lenine fosse embalsamado, e que enfrentou, num primeiro momento, a resistência da cúpula partidária, partiu de Estaline, mas Roberts, sempre benevolente com Estaline, não vê na apropriação do legado de Lenine uma manobra cínica para obter ganhos políticos. Diz mesmo que, embora seja provável que Estaline tenha ficado irritado com as críticas de Lenine, das quais teve conhecimento antecipado, permaneceu sempre fiel à sua memória.
Mesmo que o desprezo de Trotski, ao qual, na opinião de Roberts, se deve em boa parte a fama do ditador, pelas capacidades intelectuais de Estaline tenha estabelecido uma imagem caricatural, o certo é que Trotski e Estaline (a quem chamavam depreciativamente “Camarada Arquivo”) não estavam decididamente no mesmo patamar intelectual. Aliás, terá sido a consciência desse fosso (o complexo de inferioridade referido por Sebag Montefiore) a impelir Estaline para uma vida de leituras, procurando o reconhecimento do estatuto de intelectual de que não desfrutava naquele círculo do poder revolucionário, enquanto explorava outras vias de afirmação em que se revelou muito mais hábil e capaz do que qualquer dos seus rivais. Não foi a superioridade intelectual de Estaline que o conduziu ao poder, mas a capacidade de manobrar o que o historiador Ian Kershaw chama de “alavancas cruciais” do poder no partido, o “luxo de poder circular” nas palavras de Robert V. Daniels. Afinal, os mais brilhantes Kamenev, Zinoviev e Trotski acabaram todos da mesma maneira: assassinados por ordem de Estaline.
Ao mesmo tempo que denuncia como caricatural a imagem de um Estaline grosseiro e medíocre, salientando que o interesse do ditador pelos livros e os seus hábitos de leitura eram bem conhecidos, Roberts aponta-lhe fraquezas: “Há que reconhecer que a complexidade, a profundidade e a subtileza não eram o ponto forte de Estaline, que também estava longe de ser um pensador original”, escreve, indo ao encontro da opinião de outro dos biógrafos de Estaline, Robert Service, que cita: “A mente de Estaline era a de um acumulador e regurgitador. Não era um pensador original nem sequer um escritor notável. Ainda assim, foi um intelectual até ao fim dos seus dias”.
Porém, enquanto, para Service, a aprendizagem de Estaline “conduzira apenas a umas poucas mudanças básicas nas suas ideias”, Roberts afirma convictamente que Estaline lia não para confirmar as suas ideias mas para saber mais, além de insistir na ideia de “desenvolvimento pessoal”, realçando que “sempre à procura de informação e argumentos úteis, Estaline estava disposto a aprender até com os adversários que mais desprezava”. Faltou acrescentar que, a quase todos os que desprezava, mandou matar, expondo assim os limites da sua crença nas virtudes do puro combate ideológico.
Essa foi, aliás, uma das principais críticas endereçadas, postumamente, por Kruschev a Estaline, realçando a diferença de métodos entre este e Lenine: “As características de Lenine — a educação persistente e meticulosa das pessoas, a habilidade de induzir as pessoas a segui-lo sem recorrer à coerção, mas sim através da influência ideológica do coletivo — eram totalmente estranhas a Estaline. Descartou o método leninista de persuasão e educação, abandonou o método do confronto ideológico pelo da violência administrativa, da repressão em massa e do terror”, disse na alocução ao 20.º Congresso do PCUS.
A defesa que Roberts faz das virtudes intelectuais de Estaline torna-se mais explícita quando refere a opinião de Roy Medvedev, um antigo dissidente soviético que também viria a estudar a biblioteca do ditador, e que na década de 1970 publicou no Ocidente um livro intitulado Let History Judge em que concluía que o legado teórico de Estaline era medíocre. “Aquilo que havia de interessante nos seus escritos nada tinha de original, ao passo que o que havia de original era falso”, é o resumo que Roberts faz da opinião de Medvedev, que atribui ao facto de o historiador, naquela altura dissidente, não ter acesso aos arquivos soviéticos e de, por essa razão, ter recorrido a “um vasto número de fontes inéditas baseadas em memórias”.
Numa dessas memórias, contava-se a história de, na década de 1920, Estaline ter tido aulas particulares de dialética hegeliana e de, segundo o professor, revelar grandes dificuldades para “dominar a matéria”. Roberts, depois de pôr em causa a veracidade do episódio, faz outra interpretação do mesmo: “A história é geralmente contada em seu desfavor, como forma de abalar as suas pretensões intelectuais, mas a aparente prontidão para receber formação filosófica revela a seriedade com que o Estaline de meia-idade encarava a perspetiva de evoluir em termos intelectuais”.
Roberts adianta que a opinião de Medvedev sobre Estaline sofreu uma “transformação notória” anos mais tarde, alegando que a severidade da primeira opinião se devera em grande medida à influência da “condenação de Estaline por Kruschev em 1956”. O conteúdo do célebre discurso secreto serve de espantalho argumentativo a Roberts, sobretudo no que respeita ao culto da personalidade de Estaline, o principal vetor das críticas do seu sucessor. Naturalmente, o discurso de Kruschev tem de ser contextualizado no processo de desestalinização que se seguiu à morte do ditador. A nova liderança tinha de restaurar a confiança e a autoridade do Partido e do Politburo e, nesse sentido, era necessário afirmar que “só Estaline, Béria e o NKVD eram culpados de ‘violação da legalidade revolucionária’, enquanto o Partido e, mais ainda, o Politburo eram inocentes” ao passo que “qualquer tentativa em apurar as causas do regime terrorista era fortemente restringida”, como escreve Volkogonov.
Mas não é menos verdade que Estaline, à medida que consolidara o seu poder, criara uma ditadura de um homem só, esvaziando as funções do Comité Central e do Politburo, como também adianta Volkogonov: “Lenine transformara a ditadura do proletariado na ditadura do Partido, e Estaline deu mais um passo ao transformar a ditadura do Partido numa ditadura de um só homem. (…) o Politburo continuava a ser o aparelho central que, na opinião pública, mantinha a aparência de uma liderança coletiva ou colegial, quando na verdade era absolutamente subserviente, com os seus membros a competirem entre si para inventarem um novo epíteto elogioso para O Líder”.
É possível que a certa altura o culto da personalidade estivesse tão enraizado no subconsciente do povo e dos funcionários do partido que Estaline nem sentisse necessidade de o alimentar ainda mais. Mas Roberts afirma repetidamente que Estaline não só não o alimentava como desconfiava desse culto: “Estaline era demasiado inteligente e consciente de si mesmo para acreditar nos panegíricos do culto da sua própria personalidade”. Uma coisa é não acreditar na imagem pública de si próprio que o regime impunha ao povo, outra coisa é imaginar que esse não foi um instrumento usado consciente e deliberadamente por Estaline para reforçar e concentrar em si todo o poder, mesmo que perante a bajulação excessiva de alguns subordinados o ditador possa ter respondido com alguma moderação. Roberts está plenamente convicto de que assim foi: “De um modo geral, Estaline continuou a resistir à ideia de biografias ou hagiografias consagradas à sua própria pessoa, uma vez que não queria encorajar em demasia o culto da sua personalidade”. Inadvertidamente ou não, a Roberts só falta louvar a modéstia de Estaline: “Embora se tivesse em grande conta, essa opinião ficava muito aquém dos extremos do culto da sua personalidade”.
Estaline controlava tudo o que era publicado, dedicando especial atenção ao que o tinha como objeto. Por isso, já no pós-guerra, editou a sua Breve Biografia, embora com o intuito, para Roberts, de “atenuar a adulação e insistir que se atribuísse uma maior notoriedade a outros revolucionários”. Roberts não os identifica, mas partindo do princípio de que não seriam os antigos companheiros que, uma vez no trono, perseguiu implacavelmente, seria interessante saber quais os revolucionários com que Estaline estaria disposto a partilhar os louros.
Destas afirmações de Roberts depreende-se uma vontade de demonstrar que, ao contrário do conhecimento estabelecido, Estaline nunca traiu verdadeiramente os princípios coletivistas do partido e que, no fundo, foi para defender a revolução e comunismo que aceitou concentrar em si todo o poder e o culto da personalidade que lhe era prestado. Roberts apresenta um Estaline bastante cético quanto aos excessos do culto da personalidade, defendendo-o assim, em retrospetiva, das acusações de Kruschev, e coincidindo com a imagem que o próprio Estaline queria passar de si mesmo. Uma das alterações que fez pelo próprio punho à Breve Biografia é elucidativa: “Estaline nunca permitiu que o seu trabalho fosse manchado pelo menor indício de vaidade, presunção ou autoadulação”. Desta forma, Roberts aproxima-se perigosamente de teorias revisionistas e negacionistas, como a do académico norte-americano Grover Furr, segundo as quais quase todas as acusações de Kruschev sobre o culto da personalidade de Estaline são falsas.
Como já foi referido, a defesa que Roberts fez de Estaline valeu-lhe críticas contundentes aquando da publicação de Stalin’s Wars, nomeadamente sobre o quase apagamento da responsabilidade de Estaline no massacre de Katyn (um massacre que Grover Furr atribui aos nazis, entre outras alegações sensacionalistas e mirabolantes). Rápido a cobrir Estaline de louvores pelos feitos militares da União Soviética durante a guerra, nesse livro Roberts limita-se a dizer que as execuções de milhares de oficiais polacos aconteceram após uma deliberação do Politburo, omitindo que Lavrenti Beria, chefe do NKVD, pedira autorização diretamente a Estaline.
Na biografia de Lenine, Volkogonov refere pormenorizadamente os contornos da ordem dada pelo Politburo ao NKVD: “Os processos de 14.700 antigos funcionários polacos, funcionários públicos, proprietários rurais, polícias, agentes dos serviços secretos, gendarmes, colonos, e guardas prisionais; e os processos de 11.000 membros de várias organizações de espionagem contra-revolucionária e de sabotagem, antigos proprietários rurais, proprietários fabris, funcionários públicos e desertores, que agora estão presos nas províncias ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia, deverão ser reavaliados segundo uma determinada ordem e ser-lhes aplicada a pena de morte por fuzilamento”. Volkogonov faz questão de sublinhar que os homens a quem se “aplicava isto não eram prisioneiros de guerra, e não cometeram qualquer crime contra a União Soviética (…) eram vistos apenas como uma força anti-soviética potencial que tinha de ser eliminada”.
Se, como escreve Roberts, as “criminosas repressões em massa da década de 1930 foram instigadas por esta sua perceção de uma ameaça existencial de contornos extremos ao Estado soviético” — mesmo que o espantoso número de 600 mil execuções entre 1937 e 1938 levante algumas questões sobre que tipo de ameaça, a não ser a criada por um clima de paranoia política, que não paranoia psicológica, poderia impender sobre a União Soviética que o explicasse — qual era a argumentação lógica, “arreigada na razão” (afirmação de Roberts sobre as justificações de Estaline para o recurso à violência), para um crime como o de Katyn?
O massacre foi denunciado pela Alemanha nazi em 1943, enquanto os aliados, que precisavam de Estaline e do esforço de guerra do povo soviético, se mantiveram em silêncio. Mas o que era compreensível numa guerra contra um inimigo comum já não é desculpável num historiador ao analisar o acontecimento à distância de 60 anos, ao não apontar a responsabilidade direta de Estaline num crime de tais proporções. E Roberts opera de forma semelhante neste livro, absolvendo Estaline pelos seus fracassos e atribuindo-lhe todo o mérito pelos triunfos. Dois casos paradigmáticos deste procedimento destacam-se no livro.
Enquanto comissário do Exército Vermelho na Frente Sudoeste da Guerra Polaco-Soviética de 1919-20, Estaline foi responsabilizado pelo fracasso militar que redundou na derrota dos bolcheviques (ver Laurence Rees, Segunda Guerra Mundial à Porta Fechada), tendo tentado mais tarde apagar o registo deste facto dos Arquivos de Kiev (segundo Volkogonov, citado por Rees). Estaline chegou a ser criticado por Trotski e Lenine pelos seus erros estratégicos, mas Roberts atenua a culpa de Estaline, socorrendo-se de opiniões que dizem que a derrota se deveu a vários fatores e que mesmo que os reforços que Estaline não conseguiu, ou não quis, providenciar tivessem sido enviados, a derrota dificilmente poderia ter sido evitada.
O segundo caso prende-se com acontecimentos cruciais da Segunda Guerra Mundial. A 22 de junho de 1941, a Alemanha deu início à operação Barbarossa, perante a incredulidade de Estaline, confiado que Hitler respeitaria os termos do Pacto Ribbentrop-Molotov. Apesar de avisado para a concentração de tropas alemãs junto à fronteira e para o risco de um ataque iminente, Estaline deu ordens para que o exército soviético não atacasse as tropas nazis, ainda que estas entrassem em território russo. Segundo William C. Fuller Jr., no livro História da Rússia, “foi esta ordem insensata que permitiu que a Wehrmacht obtivesse resultados espantosos logo no primeiro dia da invasão”. Embora Roberts reconheça que este “foi um erro de cálculo que acabou por se revelar desastroso”, a culpa de Estaline pelas pesadas baixas sofridas pela União Soviética nos primeiros meses de invasão não se cingiu a esse erro de cálculo e avaliação.
A purga das forças armadas soviéticas desencadeada em 1937 enfraqueceu a liderança militar e a capacidade de resposta do exército, além de ter tido um efeito desmoralizador nos oficiais que sobraram ou que ocuparam os postos deixados vagos. E sobre a purga militar em particular não havia dúvidas de que a mesma tinha partido da cúpula, recaindo a responsabilidade em Estaline. Aqui não servia a teoria estruturalista da desorganização do partido e das purgas orgânicas, ou seja, realizadas de baixo para cima e não de cima para baixo. Conclusão: “A maior culpa do início ruinoso da guerra deve ser imputada ao próprio Estaline”.
Perante estes factos, Roberts prefere voltar ao discurso de Kruschev no qual o secretário-geral alegou que Estaline teria sofrido um colapso nervoso aquando da invasão alemã. Também fala de outra versão do “mito” segundo a qual “o sucesso inicial do ataque-surpresa alemão no dia 22 de junho deixou Estaline numa terrível angústia mental”. Roberts não nega que Estaline tenha ficado perturbado com os acontecimentos — apesar de ter sido repetidamente avisado para a iminência do ataque alemão — mas também diz que o mais provável é que o ditador, nas 36 horas em que esteve ausente do Kremlin, se tenha refugiado na sua dacha para refletir sobre o que acontecera e preparar o “magistral discurso transmitido pela rádio”.
Além disso, aventa a possibilidade de, nesse período, Estaline ter feito o que habitualmente fazia quando ia para a casa de campo, ler um livro, neste caso um sobre o comandante Kutuzov, marechal que tinha derrotado o exército napoleónico em 1812 e no qual Estaline se teria inspirado para conduzir a União Soviética à vitória. Em suma, de acordo com Roberts, Estaline teria permanecido sempre “senhor de si e da situação”, um intelectual a ler tranquilamente uma biografia de um famoso oficial russo enquanto os alemães avançavam sem oposição rumo a Moscovo.
A crítica de Kruschev era muito mais vasta do que a questão do colapso nervoso e dirigia-se sobretudo ao enaltecimento desmesurado do papel de Estaline na guerra nos anos que se seguiram ao conflito. Nos romances, filmes e estudos históricos, apresentava-se um Estaline que previra tudo, que apostara na tática da “defesa ativa” e que, graças a essa tática e somente ao seu génio estratégico, tinha ripostado e derrotado o inimigo. Com ou sem esgotamento, os erros anteriores de Estaline e a sua desorientação nos primeiros tempos após a invasão alemã eram evidentes e nenhuma reavaliação (para não dizer revisionismo) o pode negar.
Rees, no seu livro de 2008, Segunda Guerra Mundial À Porta Fechada, mencionou a “tendência recente para ‘relativizar’ o comportamento de Estaline por volta desta altura — por outras palavras, não o culpar tanto como antes; decerto não tanto quanto Winston Churchill, que descreveu Estaline e os seus conselheiros como ‘os mais completos trapalhões e despistados da Segunda Guerra Mundial’, mas que, seja como for, a ‘capacidade de avaliação de Estaline durante este período continua a parecer excecionalmente má’. (…) Se Estaline não foi um ‘trapalhão despistado’, é difícil saber quem alguma vez na história poderá tê-lo sido”. Não obstante, é possível apontar os erros de Estaline e, em simultâneo, reconhecer que a reviravolta na guerra só foi possível graças à própria natureza do regime e à sua liderança, sem menosprezar o custo humano que a mesma representou. É isso que faz William C. Fuller Jr. quando afirma que, embora Estaline “tenha cometido erros militares durante a guerra, melhorou enquanto estratego — pelo menos, tornou-se ciente das suas limitações profissionais”.
Podemos concordar com Roberts quando, logo no início do livro, escreve que “Estaline não era nenhum psicopata” e que “não foi uma psicose, mas sim o vigor do sistema pessoal de crenças de Estaline que lhe permitiu iniciar e manter os métodos bárbaros utilizados para modernizar e comunizar a Rússia soviética”. A tendência impressionista para a caracterização psicológica de ditadores responsáveis por milhões de mortes como “psicopatas”, “monstros”, “megalómanos”, “sádicos” e “paranoicos” satisfaz a sede de exorcizar demónios, mas não adianta muito para a compreensão das motivações de seres humanos de carne e osso. Mas se Estaline não era um “megalómano”, no sentido em que dificilmente acreditaria na imagem propagada pelo seu inquestionável culto da personalidade, nem por isso deixou de o promover e aproveitar todas as vantagens políticas desse mesmo culto.
Da mesma forma, o facto de o pouparmos à classificação clínica de “psicopata” ou de “sádico patológico” em nada diminui — bem pelo contrário — o horror pela utilização do assassínio e das execuções em massa como arma política a uma escala até então inimaginável. Porém, Roberts, se evita o impressionismo negativo incorre num impressionismo de sinal contrário quando afirma que Estaline não era um psicopata, mas “um intelectual dotado de inteligência emocional e de sensibilidade”. Ou quando diz que o ditador “tinha um elevado grau de inteligência emocional”, embora lhe faltasse “compaixão ou piedade para com aqueles que considerava serem inimigos da revolução” (não vamos discutir se a total ausência de compaixão ou piedade, mesmo que assente em bases ideológicas e tendo em vista um bem maior, é ou não um traço de psicopatia, deixemos a discussão para os profissionais). Ou quando elogia o seu “amor pela leitura”, como se a leitura e os livros não fossem para Estaline instrumentos políticos, mas atos e objetos de devoção.
Dizer, como faz Roberts, que “a sua [de Estaline] fundamentação lógica para a violência, a repressão e o autoritarismo bolcheviques apresentava inúmeras falhas, mas era sua e estava arreigada na razão” só iliba Estaline de qualquer condição patológica, não o absolve de nenhum dos crimes e de ter erguido um sistema político essencialmente paranoico, que tinha no centro um culto megalómano da personalidade e que recorria ao assassínio burocrático com a frieza de um psicopata, mesmo que possamos não imputar nenhuma destas características ao ser humano.
Roberts afirma que nem no auge do culto da personalidade (que afinal existia e é difícil imaginar que existisse sem o beneplácito de Estaline), este era visto como um deus — isto para rejeitar a analogia intuitiva entre comunismo e religião. No livro de Rees encontramos este testemunho: “Estaline era em grande medida um deus para toda a gente. E tudo o que ele dizia era a última palavra em qualquer assunto”. Isto demonstra que o facto de um ditador todo-poderoso não se sentir, no seu íntimo, um deus, não invalida a realidade política da perceção dessa divindade e da sua infalibilidade. (Basta ver o filme “Funeral de Estado”, de Sergei Loznitsa, que recorre a imagens de arquivo dos dias que antecederam o funeral de Estaline, para se ter uma noção aproximada do estatuto quase-divino de Estaline na sociedade soviética). Do mesmo modo, ainda que a perceção de Estaline de si mesmo fosse, como acredita Roberts, a de um intelectual, não é essa a imagem que perdurará porque nem os seus feitos intelectuais o justificam, nem a sua ação política e revolucionária– “o seu métier, a razão da sua existência”, nas palavras de Richard Overy — o permite.
A Biblioteca de Estaline é um livro que mostra outro Estaline que não o indivíduo grosseiro e medíocre retratado por muitos dos que conviveram com ele, mas que está longe de ser convincente na sua tentativa de o apresentar como sendo, acima de tudo, um intelectual porque, como o próprio Roberts afirma, em contradição com a sua ideia de que Estaline raramente lia para “confirmar aquilo que já sabia ou em que acreditava”, o ditador era, em teoria, “um defensor da verdade e do rigor intelectual”, mas na prática “as suas convicções eram dogmas politicamente instigados”. Na prática, que é o que interessa, a blindagem ideológica do “racional” Estaline tornava-o absolutamente impermeável à razão e aos factos, o que, aliado ao desprezo pelo valor da vida dos que não aceitavam as suas ideias, o transformou naquilo pelo que será lembrado: um tirano sanguinário e inflexível e não um intelectual.
“Não sendo estúpido, Estaline também nada tinha de intelectual, uma palavra que, aliás, veio a cunhar como um insulto”, escreve Richard Overy. E essa talvez seja a única boa razão para lhe chamar intelectual.
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