Perante o olhar vago de Ricardo Salgado, Jorge Novo desejou sorte ao ex-banqueiro e repetiu uma pergunta retórica que os chamados “lesados do BES” fazem há vários anos: “Onde está a provisão?“. Dez anos depois da queda do banco, alguns dos que investiram em títulos de dívida de empresas do GES, aos balcões do BES, continuam a exigir todo o dinheiro que perderam, recusando até o acordo de pagamento parcial que foi apadrinhado por António Costa no final de 2016. E a chave para o reembolso total está na tal “provisão” que foi feita por Salgado mas que, na sua leitura, foi apropriada pelo Novo Banco.
“O senhor [Ricardo Salgado] mandou-nos um documento escrito [a dizer] que deixou uma provisão“, garantiu Jorge Novo, exaltado, à entrada do Campus de Justiça em Lisboa. A referência é antiga e remonta aos primeiros meses de 2014, quando o Banco de Portugal iniciou a estratégia de ring fencing (delimitação) do Banco Espírito Santo (BES), para tentar proteger o banco dos problemas nas empresas do Grupo Espírito Santo (GES). Nessa altura, o supervisor exigiu que fosse feita uma auditoria independente.
Na sequência dessa auditoria, feita pela KPMG nos primeiros meses de 2014, foi determinado que o banco devia fazer uma provisão mínima de 700 milhões de euros, que deveriam ser colocados de parte para cobrir os riscos associados à exposição do GES. Quando a provisão foi feita foi ficando a perceção – até em notícias publicadas na imprensa – de que tinham sido colocados de parte 700 milhões de euros para dar maiores garantias de que os clientes que tinham subscrito papel comercial (dívida) de empresas não financeiras do GES não ficariam sem reembolso.
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O próprio Banco de Portugal reconheceu, num comunicado oficial emitido um ano depois, em março de 2015, que a análise da consultora tinha entre os seus objetivos estimar quais seriam os “eventuais riscos de incumprimento da Espírito Santo International [ESI, empresa do GES] perante os clientes de retalho do grupo ESFG”.
Provisão não foi criada no BES mas, sim, no ESFG. O que era o ESFG? E a ESI?
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O supervisor, então liderado por Carlos Costa, referia-se aos “clientes de retalho do grupo ESFG” porque a provisão “especial” de 700 milhões que depois foi criada não foi no BES mas, sim, na Espírito Santo Financial Group (ESFG), que era a holding da família que geria as participações em empresas financeiras (não só no BES mas, também, na seguradora Tranquilidade, entre outras).
A provisão foi criada para acautelar a exposição do banco à Espírito Santo International (ESI), outra empresa holding que geria as participações das empresas controladas pela família Espírito Santo, em vários setores e áreas de negócios. Foi na ESI que foram encontradas “irregularidades nas contas”, incluindo dívida não contabilizada.
O ramo não financeiro do grupo estava concentrado na ESI e na RioForte (cujo capital era totalmente da ESI). No final de 2013 a entidade tinha uma dívida total de 7.300 milhões de euros, cuja maior parte (6.039 milhões) dizia respeito a títulos de dívida (papel comercial) vendido a clientes de retalho e investidores institucionais.
Mas nesse mesmo comunicado esclarece-se que o facto de se ter constituído provisões não confere a ninguém direitos jurídicos de reclamar seja o que for. Ou seja, ordenar uma auditoria para calcular riscos e, em resultado dessa auditoria, ordenar uma provisão não é o mesmo que obrigar um banco a colocar de parte dinheiro para um fim específico, argumenta o Banco de Portugal.
“De acordo com a Norma Internacional de Contabilidade (NIC) 37, as provisões constituem passivos de tempestividade e quantia incerta”, afirmou o Banco de Portugal, acrescentando que as provisões “não representam passivos a pagar, nem direitos invocáveis por terceiros“. Por outras palavras, se as empresas não financeiras do GES (que são as entidades de quem os “lesados” são credores) vão à falência, o processo de insolvência deve seguir os trâmites normais – respeitando a hierarquia de acionistas e credores, como em qualquer falência. Nessa perspetiva, aquela provisão assumida na ESFG não poderia significar uma violação das regras normais da insolvência das empresas.
Ricciardi disse ser “testemunha” de que provisão foi constituída
Esta leitura não corresponde à de José Maria Ricciardi – primo de Ricardo Salgado que foi administrador do banco. Quando interpelou o ex-presidente do BES, à entrada do tribunal, o “lesado” Jorge Novo lembrou que há poucos anos Ricciardi defendeu que a provisão existiu e que, de facto, os “lesados” têm direito a ela.
Foi em abril de 2022, perante um grupo de “lesados”. “Sou testemunha viva de que se fez uma provisão absolutamente integral para vos pagar aquilo que vos era devido e que resultou da vossa confiança num nome que, infelizmente, apesar de ter sido credível durante muitos anos, foi destruído”, afirmou Ricciardi. “Sou testemunha de que foi constituída a provisão e testemunharei a vosso lado se alguma vez necessitarem”, acrescentou.
Mas a tomada de provisões significa apenas, sublinhou o Banco de Portugal, um “registo contabilístico que pretende lidar com a incerteza e acautelar nas contas um passivo eventual, em obediência a princípios de prudência”. “Ou seja, esse registo não gera na esfera jurídica de terceiros (para mais quando estes sejam indeterminados) um direito que estes possam invocar e fazer valer perante a entidade em causa“, termina o supervisor.
Em termos mais simples, mesmo que Ricardo Salgado (ou algum outro responsável do BES) tenha dito – implícita ou explicitamente – que aquela provisão assumida na ESFG, de alguma forma, acautelava os interesses de quem tinha investido no papel comercial do GES, essa posição nunca seria válida por uma razão simples: aqueles títulos não eram emitidos pelo banco (ou pela ESFG) e, portanto, não eram responsabilidade sua.
“A comercialização, por parte do BES, de dívida de entidades que integram o GES foi desenvolvida no âmbito da atividade de intermediação financeira“, sublinhou o Banco de Portugal, no comunicado emitido em março de 2015. É o mesmo que uma qualquer empresa do setor da energia que queira fazer um aumento de capital ou uma emissão de obrigações, por exemplo, contratar os bancos para venderem os títulos aos balcões (a troco de uma comissão). Se a empresa de energia falir, mais tarde, a responsabilidade não é do banco.
“O facto de o BES ter, em determinado momento, expressado a intenção de se substituir aos emitentes no reembolso da dívida por estes emitida na data do respetivo vencimento, por razões reputacionais e de retenção de clientes, não representa, só por si, uma garantia juridicamente vinculativa“, sublinhou o Banco de Portugal.
Só em duas circunstâncias é que a entidade que comercializou (o banco) pode ser chamada a responder por problemas na entidade que emite os títulos (a empresa): se o banco “se obrigar a certos pagamentos perante o cliente, nomeadamente através da prestação de garantias ou da celebração de um compromisso de aquisição dos instrumentos financeiros” ou, então, “nas situações em que o [banco] seja judicialmente condenado a indemnizar danos causados ao cliente em virtude de uma conduta ilícita e culposa na comercialização” – as chamadas práticas de misselling, ou venda enganosa.
Porém, num caso como o BES, mesmo que se prove “misselling“, juridicamente, isso seria uma responsabilidade da massa falida – o chamado “BES mau” – e não do Novo Banco, porque na resolução do Banco Espírito Santo foi definido que os direitos e responsabilidades jurídicas do BES não transitavam para o Novo Banco. Foi essa a decisão tomada no momento da resolução e reforçada no final de 2015, quando o Banco de Portugal fez a chamada “retransmissão” de obrigações que finalizou o perímetro da resolução.
A solução de Costa. "Lesados" receberam quase tudo – mas muitos ficaram de fora
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Em 2016, António Costa encarregou o advogado Diogo Lacerda Machado de fazer um acordo com os chamados “lesados do BES” e, dessa negociação, saiu um mecanismo para que o contribuinte adiantasse aos aforradores entre 50% e 75% do valor que tinham perdido.
Os clientes que aceitaram a solução receberam, entre 2016 e 2019, 75% do valor investido, num máximo de 250 mil euros, nas aplicações até 500 mil euros, e 50% para as aplicações acima dos 500 mil. O valor foi pago por aplicação e não por cliente (há aplicações que têm mais do que um titular).
Por exemplo, para uma aplicação de 400 mil euros foram pagos 250 mil euros, porque é o valor máximo possível para esse montante, ainda que seja abaixo dos 75%. Já para uma aplicação de 600 mil foram pagos 300 mil euros. Ou seja, de forma garantida, os clientes assumiram perdas, mas receberam dinheiro que teriam de provavelmente esperar anos para recuperar em processos em tribunal e de forma incerta.
Quem aceitou o acordo teve de ceder os direitos judiciais contra entidades em Portugal e entregou ao Fundo de Indemnização que foi criado para, depois, tentar recuperar em tribunal o dinheiro que o contribuinte adiantou aos “lesados”.
A larga maioria dos “lesados” aceitou esse acordo mas outros não aceitaram e formaram associações que têm lutado pelo reembolso total das aplicações. Mesmo alguns dos que aceitaram o acordo continuam a tentar o ressarcimento total através dos processos-crime que estão agora a ser julgados.
Por outro lado, muitos – mais de 1.500, segundo o advogado Nuno da Silva Vieira – não foram elegíveis para esse acordo já que subscreveram os títulos em balcões do BES que, na verdade, pertenciam a estruturas externas a Portugal (como, por exemplo, na banca privada em Lisboa, que dependia da unidade do Luxemburgo).
“Tendo em conta que nunca foi do BES a responsabilidade pelo reembolso de instrumentos de dívida emitidos por entidades terceiras, nunca poderia verificar-se a transferência dessa responsabilidade [jurídica] para o Novo Banco”, após a resolução, pelo que, na argumentação do Banco de Portugal, não faz sentido dizer que o banco que herdou a atividade comercial do BES (bem como parte dos seus ativos e passivos) beneficiou de uma provisão que, de alguma forma, deveria ter servido para pagar aos clientes que compraram títulos vendidos no âmbito da atividade de intermediação financeira.
O Observador contactou Nuno Silva Vieira, um advogado que representa cerca de 2.000 “lesados” – mas não representa Jorge Novo, o ex-cliente do BES que interpelou Ricardo Salgado à porta do tribunal. O advogado não quis fazer comentários concretos relativamente à validade jurídica da provisão mas lamentou que “essa provisão não tenha servido para reembolsar as pessoas, ainda que na base da equidade”.
Quando fala em equidade, o advogado refere-se ao conceito, no Direito, de como se deve garantir a aplicação da lei em termos que vão além da lei escrita, com uma análise baseada no caso concreto e na aplicação da lei natural, do respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade da pessoa humana.