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Soccer - World Cup France 98 - Group F - USA v Iran
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Adeptos de EUA e Irão no Mundial de 1998, em França

PA Images via Getty Images

Adeptos de EUA e Irão no Mundial de 1998, em França

PA Images via Getty Images

EUA e Irão vão defrontar-se em campo — mas a rivalidade vai muito para lá do futebol

Um golpe de Estado com ajuda da CIA e uma tomada de reféns semearam a desconfiança. De um lado, pede-se "Morte à América". Do outro, falou-se em "Eixo do Mal". Agora, o confronto decisivo é em campo.

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Chamaram-lhe “A Mãe de Todos os Jogos”, tal era o nível de tensão antes de os jogadores entrarem em campo. Foi a 21 de junho de 1998, em Lyon, durante a fase de grupos do Mundial de futebol em França. E desde cedo ficou claro que, ali, não se jogava apenas futebol entre Irão e Estados Unidos.

Tudo começou com a resistência do próprio ayatollah Khamenei em que fossem os jogadores do Irão a ir cumprimentar os adversários norte-americanos, como definiam as regras ditadas pelo sorteio que classificou o Irão como a Equipa B e os EUA como a equipa A. A negociação mediada pela FIFA conseguiu inverter essa regra e os norte-americanos é que avançaram — mas receberam rosas brancas, num gesto de paz, dos jogadores iranianos.

À volta, as medidas de segurança eram apertadas, até pela probabilidade elevada de protestos nas bancadas. “Demos fotos aos operadores de câmara para que soubessem que pessoas e que cartazes evitar”, recordou à Four Four Two Mehrdad Masoudi, delegado iraniano da FIFA responsável pela organização. “O jogo estava a ser transmitido para todo o mundo e a última coisa que queríamos era que um grupo sabotasse a ocasião e a usasse para os seus próprios fins políticos.”

Frankie Hejduk and Mehdi Mahdavikia

O jogo do Mundial de 1998 terminou com uma vitória para o Irão

Getty Images

Nem tudo, porém, foram rosas brancas e câmaras desviadas. A política entranhou-se no jogo, como relataria o selecionador norte-americano Steve Sampson, à revista TIME: o selecionador iraniano contou-lhe, garante, que no intervalo do jogo foram recolhidos os passaportes aos jogadores iranianos e foi-lhes dito que, se não derrotassem os EUA, não seriam bem-vindos de volta no Irão. Resultado ou não dessa alegada pressão, o Irão seria de facto vencedor, ao derrotar os norte-americanos por 2-1 e eliminando os EUA desse Mundial.

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Agora, 24 anos depois, os dois países voltam a defrontar-se numa fase de grupos de um Mundial, quando entrarem em campo esta terça-feira, no Qatar, para um jogo que é decisivo para que uma das duas equipas continue em frente na prova. E agora, como em 1998, o jogo será marcado pela tensão, porque a relação entre Estados Unidos e Irão é tudo menos pacífica. “É a relação mais invulgar que temos com qualquer país do mundo”, disse em tempos à BBC o diplomata americano Nicholas Burns. Mas por que razão são estes dois países adversários tais que um simples jogo de futebol se torna num acontecimento político?

Operação Ajax, o golpe de Estado da CIA. E o Xá amigo da América

Temos de começar por recuar à década de 1950. O primeiro-ministro iraniano Mohammad Mossadegh toma a decisão de nacionalizar a Empresa Anglo-Iraniana de Petróleo e garantir assim que os lucros do combustível revertem diretamente para os iranianos e não para os britânicos — que reagem com um embargo.

Só que um assunto que parecia confinado a esses dois países acaba por espoletar a intervenção norte-americana. Em 1953, um golpe de Estado leva à deposição de Mossadegh e à chegada ao poder do Xá Reza Pahlavi. E aquilo que muitos iranianos suspeitavam há muito acabaria por ser confirmado pelo próprio governo norte-americano em 1981 e, mais recentemente, clarificado pela própria CIA: a deposição de Mossadegh foi fruto de intervenção da própria agência de espionagem norte-americana em conluio com os britânicos, naquilo que foi nomeado Operação Ajax.

“O golpe militar que derrubou Mossadegh e o seu governo de Frente Nacional foi levado a cabo sob supervisão da CIA e como ato de política externa norte-americana, concebido e aprovado ao mais alto nível pelo governo norte-americano”, pode ler-se nos documentos divulgados em 2013. Ou seja, tudo teve autorização explícita do Presidente Eisenhower — e o Xá foi escolhido precisamente pelas suas posições pró-ocidentais.

Iran-Persia: Mohammad Mosaddegh or Mosaddeq (Persian: ____ ____), also spelled Mosadeck, or Musaddiq (16 June 1882 Ð 5 March 1967), Prime Minister of Iran from 1951 until being overthrown in a coup d'Žtat in 1953 Shah Reza Pahlevi Being Saluted by Soldiers

O primeiro-ministro Mohammad Mossadegh foi deposto para dar lugar ao Xá Reza Pahlavi

Pictures From History/Universal

Durante o reinado do Xá, a ocidentalização do país marchou sob a bandeira da Revolução Branca, aplicando medidas como o direito de voto às mulheres, mas também uma reforma agrária polémica. O descontentamento popular de alguns, acompanhado da repressão da polícia política, a SAVAK, foi capitalizado por um imã: Ruhollah Khomeini. Khomeini passou a criticar abertamente as tentativas de ocidentalização do Irão e acabaria por ser banido do país em 1964.

Eram assim as mulheres iranianas antes da revolução

Ao mesmo tempo, as boas relações entre EUA e Irão consolidavam-se. De tal forma que, em 1957, os dois países assinaram um programa de cooperação no âmbito do “Átomos pela Paz”, em que norte-americanos deram equipamento e treino ao Irão, que começou a desenvolver o seu programa nuclear. Atualmente, é precisamente esse programa nuclear o maior espinho nas relações entre os dois países — mas já lá vamos.

Ayatollah Khomeini Stepping Down from Plane

O regresso do ayatollah Khomeini ditou o sucesso da Revolução Islâmica de 1979

Bettmann Archive

Tudo parecia correr de feição entre os dois governos, mas, em 1979, um evento viria transformar o Irão e, por arrasto, a sua relação com os Estados Unidos. Logo no início do ano, os protestos de rua contra o regime ganharam ímpeto, de tal forma que o Xá acabaria por fugir do país em janeiro. Menos de um mês depois, Khomeini regressava do exílio e era recebido em êxtase por muitos. O ayatollah decretou a abolição da monarquia e a instauração de um novo regime islâmico. O Irão nunca mais foi o mesmo.

O sequestro na embaixada americana em Teerão que contaminaria toda uma relação

Debaixo do novo regime iraniano, não tardou a que rebentasse um acontecimento que manchou para sempre a relação com os Estados Unidos. A 4 de novembro de 1979, estudantes iranianos invadem a embaixada norte-americana em Teerão e fazem reféns 52 norte-americanos. Exigiam que o Xá, exilado nos EUA, fosse deportado para o Irão e submetido a julgamento no país.

Seguir-se-iam 444 dias de cativeiro. Um dos reféns, Bruce Laingen, recordou anos mais tarde ao jornalista Stephen Kinzer uma das suas experiências enquanto refém, que ilustra bem o ressentimento que muitos iranianos sentiam em relação aos EUA. Após quase um ano em solitária, a porta da cela de Laingen abriu-se e o norte-americano explodiu em críticas ao seu carcereiro. “Quando fiquei finalmente sem fôlego, o carcereiro parou por um momento, debruçou-se para a minha cela e disse, num inglês muito bom: ‘Vocês não têm direito a queixarem-se, porque fizeram todo o nosso país refém em 1953.’

40 anos depois, entrevista a um sobrevivente do sequestro de Teerão: “Ataram-me, vendaram-me e apontaram-me uma arma à cabeça”

A administração de Jimmy Carter reagiu à tomada de reféns procedendo ao corte de relações diplomáticas com o Irão e impondo uma série de sanções económicas duras. Ao mesmo tempo, a CIA ia trabalhando e consegue extrair do país seis norte-americanos que tinham conseguido refugiar-se na embaixada do Canadá — uma operação arriscada que seria imortalizada no filme “Argo” (2012).

Iranians Marching Hostages

Alguns dos reféns na embaixada americana de Teerão

Bettmann Archive

Mas, apesar de as relações entre os dois países terem atingido o seu ponto mais gelado, a negociação foi-se fazendo. Ao fim de mais de 400 dias, os reféns são libertados depois da assinatura dos Acordos de Algiers, minutos depois da tomada de posse de Ronald Reagan. Muito viria ainda a acontecer na relação dos norte-americanos com o Irão durante a sua presidência.

Os tempos de Reagan: ajuda a Saddam na guerra Irão-Iraque e as armas para os Contras

Não foi preciso esperar muito. Durante os primeiros dois anos da presidência Reagan, os Estados Unidos começam a assumir uma posição clara a propósito da Guerra Irão-Iraque, que se iniciara em setembro de 1980 com a invasão de território iraniano pelo regime de Saddam Hussein. Perante a reação militar bem sucedida dos iranianos, Washington começa a dar apoio ao Iraque em vários níveis: diplomático, de informações, económico e até militar. “Os EUA não podem dar-se ao luxo de permitir que o Iraque perca a guerra contra o Irão”, afirmou Reagan.

A guerra duraria até 1988, mas, antes do seu fim, ainda houve outros momentos em que os caminhos de Irão e Estados Unidos se cruzaram. O primeiro foi em 1983, quando um grupo próximo do Hezbollah (milícia libanesa com ligações ao regime iraniano) atacou militares norte-americanos e franceses no Líbano, matando 241 soldados dos EUA — o maior número de baixas militares norte-americanas num só dia desde a Ofensiva do Tet, na Guerra do Vietname, como aponta o Council for Foreign Relations.

Reagan reage declarando oficialmente o Irão como um “Estado patrocinador do terrorismo” e aumentando ainda mais as sanções ao país. Mas não tardaria a que os EUA negociassem com o Irão em segredo, quando tal lhes foi mais conveniente. Em 1987, rebentou o escândalo Irão-Contras e o Presidente Reagan acabou por admitir em público aquilo que havia sido noticiado por um jornal libanês: os Estados Unidos furaram o próprio embargo, fornecendo armas aos iranianos, em troca da libertação de sete reféns americanos que estavam no Líbano.

Ronald Reagan After Television Address

Ronald Reagan durante o discurso à Nação em que reconheceu o escândalo Irão-Contras

Bettmann Archive

Com o dinheiro da venda das armas, os norte-americanos financiaram os grupos rebeldes anti-marxistas Contras, na guerra civil que decorria na Nicarágua. O Hezbollah acabaria por matar dois dos reféns americanos e libertar os restantes ao longo dos anos seguintes.

Da ajuda no 11 de setembro ao discurso do ‘Eixo do Mal’

Com a guerra Irão-Iraque terminada, a década de 1990 seria de relativa acalmia na relação EUA-Irão, durante a presidência de Bill Clinton. Em 1998, o Presidente iraniano Mohammed Khatami dá uma entrevista à jornalista Christiane Amanpour, da CNN, onde dá sinais de abertura, dizendo que tem “respeito pelo grande povo americano” e pedindo mais intercâmbio entre os dois países. Também a secretária de Estado norte-americana, Madeleine Albright, reconheceria em público o papel dos norte-americanos no golpe de Estado de 1953, dois anos depois.

Mohammed Khatami

Mohammed Khatami tentou alguma abertura durante a presidência Clinton

Getty Images

Mas a desconfiança entre os dois países permanecia. O ayatollah Khamenei não partilhava da moderação de Khatami; e o discurso de Albright em 2000 continha também críticas ao governo iraniano.

Os ataques terroristas do 11 de setembro pareceram, porém, o prenúncio de uma aproximação. Levados a cabo por muçulmanos sunitas, fizeram com que o Irão xiita vincasse a sua condenação — tendo até Khamenei suspendido os gritos de “Morte à América” na sua oração semanal de sexta-feira. Os dois países começaram então a trabalhar juntos para tentar garantir o afastamento dos Talibãs do Afeganistão, assinando inclusivamente ambos um acordo para o futuro do país, o Acordo de Bona.

Bastaria um discurso, porém, para travar esta aproximação. Em 2002, o Presidente George W. Bush utiliza o seu discurso do Estado da União para denunciar aquilo que definiu como “O Eixo do Mal”. A ele pertenciam três países, explicou: a Coreia do Norte; o Iraque (que seria invadido pelos EUA no ano seguinte); e o antigo inimigo do Iraque na guerra de 1980, o Irão. “Depois do ‘Eixo do Mal’, o ímpeto desapareceu das negociações”, confessaria mais tarde o diplomata americano Ryan Crocker. “As conversas continuaram, mas eram rígidas e sem substância”.

Nazi Bush Placard

O discurso de Bush em que incluiu o Irão no 'Eixo do Mal' foi mal recebido no Irão

Getty Images

Sem substância parece ter sido também outra tentativa de abertura por parte do Presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. Em 2006, enviou uma carta a Bush — que ganharia o epíteto de “Grande Negociata” — pedindo o aliviar das tensões e garantindo que o programa nuclear que estava a ser desenvolvido no Irão tinha apenas fins energéticos e não militares. Só que, ao mesmo tempo, o país continuava a enriquecer urânio, processo essencial para a produção de armas nucleares.

Programa nuclear, o espinho que se mantém

O programa nuclear iraniano manter-se-ia no centro da discórdia com os Estados Unidos ao longo dos anos seguintes. Até que, em 2013, há um avanço inesperado: um grupo de seis países, conhecidos como P5+1 (membros do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha), anuncia ter chegado a acordo com o Irão para que este atrase o seu programa nuclear em troco do levantamento de sanções. E os Estados Unidos, liderados à altura por Barack Obama, fazem parte do acordo que teve a assinatura do Presidente iraniano Hassan Rouhani.

O feito foi celebrado efusivamente nas ruas de Teerão. Mas com a saída de cena de Obama e a chegada de Donald Trump, tudo mudaria. Em maio de 2018, o Presidente norte-americano anunciou que os EUA se iam retirar do acordo, ao mesmo tempo que iniciavam uma campanha de “pressão máxima” sobre o Irão. Para além da expansão das sanções, a pressão refletiu-se no ataque que matou o general iraniano Qasem Soleimani, à qual o Irão reagiu prometendo retaliação. A resposta, porém, é apenas um ataque a bases militares que não provoca mortes.

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O acordo nuclear de 2013 alcançado em Viena (à esquerda) caiu por terra com a saída dos EUA decretada por Donald Trump

Getty Images

O regresso ao poder dos democratas nos Estados Unidos representou para alguns uma esperança de que os EUA pudessem regressar ao acordo nuclear e a tensão com o Irão descesse para níveis históricos. Mas não foi assim. As negociações continuam num impasse e o contexto internacional não promove consensos. Por um lado, o Irão está a fornecer drones à Rússia na guerra da Ucrânia; por outro, há meses que o regime reprime fortemente os protestos contra a morte de uma jovem às mãos da polícia por não ter usado o véu islâmico na rua.

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Perante este cenário, e num Mundial que tem sido marcado pelos protestos contra o Qatar, também a situação no Irão tem provocado agitação entre jogadores, treinadores e adeptos. Antes da estreia no Qatar, o capitão da seleção iraniana, Ehsan Hajsafi, fez questão de prestar condolências às famílias dos manifestantes mortos no seu país. “Eles devem saber que estamos com eles”, disse. No primeiro jogo oficial da equipa, os jogadores iranianos recusaram cantar o hino.

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Em vésperas do encontro com os Estados Unidos, não tem, contudo, havido declarações políticas no que diz respeito à relação entre os dois países. E o selecionador americano, Gregg Berhalter, quer que tudo se mantenha assim: “Prevejo que o jogo seja ferozmente disputado pelo facto de as duas equipas quererem passar à próxima ronda, não por causa da política ou da relação entre os dois países. Somos jogadores de futebol, nós vamos competir, eles vão competir e é só isso.”

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Dentro do campo não se preveem, por isso, reações políticas — a não ser, talvez, dos jogadores iranianos relativamente ao seu próprio governo. Mas, fora dele, a política infiltra este Mundial. Nas bancadas estará o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, que viajou para o Qatar para apoiar a equipa, mas não só. Segundo a Associated Press, Blinken irá ter “conversações diplomáticas cruciais” com dirigentes do Qatar. E, tendo em conta que o pequeno país do Golfo é um intermediário frequente entre EUA e Irão, não há dúvidas de que a  relação dos norte-americanos com o regime de Teerão será ali abordada muito para lá do futebol.

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