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Carlos da Câmara é climatologista e especialista em análise do risco de incêndios florestais
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Carlos da Câmara é climatologista e especialista em análise do risco de incêndios florestais

Ana Martingo/Observador

Carlos da Câmara é climatologista e especialista em análise do risco de incêndios florestais

Ana Martingo/Observador

Eucaliptos, incendiários, madeireiros. “É preciso acabar com os mitos” sobre os incêndios florestais

Carlos da Câmara, climatologista e especialista em risco de incêndios, critica a falta de ordenamento do território em Portugal e avisa que 2017 se pode repetir. Este verão será um teste fulcral.

Este verão vai servir para pôr à prova a capacidade portuguesa para lidar com os incêndios florestais, acredita o climatologista Carlos da Câmara, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e especialista em análise do risco de incêndios. Numa entrevista ao Observador, Carlos da Câmara avisa que “o fogo faz parte da paisagem mediterrânica”, mas que a crescente desertificação das zonas rurais deixou o país mais exposto aos incêndios e fez com que as populações deixassem de saber lidar com eles.

Salientando que o fogo só se entende através da análise do triângulo meteorologia-paisagem-atividade humana, Carlos da Câmara — um dos especialistas por trás da ferramenta de previsão de risco de incêndio Ceasefire — explica que as alterações climáticas estão a agravar as condições que permitem os incêndios florestais, restando melhorar o ordenamento do território e educar as populações. Até porque, diz, mais de 90% dos incêndios surgem por negligência humana.

A onda de calor verificada neste arranque de verão, associada à falta de limpeza, inventário e ordenamento do território na floresta portuguesa, podem levar o país a viver um verão semelhante ao de 2017 — ano em que incêndios de grandes dimensões fizeram mais de 100 vítimas mortais e que, de acordo com Carlos da Câmara, “é como os campos de concentração: uma pessoa não pode esquecer”.

Quais são as principais preocupações para este verão no que toca aos incêndios?
Eu diria que há uma primeira pergunta que é importante, que é nós percebermos o que é o fogo em Portugal, na Europa mediterrânica ou no mundo. Vou começar por uma coisa simples. Deve lembrar-se — todos aprendemos na escola — do chamado triângulo do fogo. Imagine um triângulo. Um dos lados diz combustível (para haver fogo é preciso haver qualquer coisa que arde); outro lado diz comburente ou oxigénio (para haver fogo é preciso oxigénio); o terceiro lado, que fecha o triângulo, diz ignição. Se eu conseguir cortar um dos lados do triângulo, nunca tenho fogo. No deserto do Saara há imensas condições para haver fogo, não há é nada para arder.

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O triângulo do fogo (ao centro) e a interpretação dos incêndios florestais com base no triângulo (por fora)

Ilustração: Ana Martingo/Observador

Não há combustível.
Se eu deitar água para cima de um fogo, corto-lhe o oxigénio. Se não houver ignições, também não há incêndios. Agora vamos transpor isto para a realidade dos incêndios rurais: um outro triângulo sobreposto a este. Onde está combustível, ponho a paisagem ou o coberto florestal; onde está oxigénio ou comburente, ponho meteorologia; no triângulo onde está ignições, ponho atividades humanas. No fim de contas, é dentro deste triângulo que temos de perceber os incêndios — e perceber que o controlo dos incêndios passa pelo controlo dos três lados do triângulo. A meteorologia, que é a minha especialidade, é aquele que não é controlável, mas é extremamente previsível, com uma regra muito simples, que já deve ter ouvido falar: a regra dos três trintas. Quando é que eu tenho um incêndio florestal? Quando a temperatura está acima de 30ºC, quando a humidade do ar está abaixo de 30% e quando o vento está com uma intensidade maior do que 30 km/h. A que eu costumo acrescentar ainda 30 dias sem chuva, fica a regra dos quatro trintas. Obviamente, isto é uma regra empírica, que funciona muito bem. Estas classes de perigo não são mais do que um sistema elaborado com modelos estatísticos em que, em vez da regra dos trintas, há uma coisa que se chama os índices de perigo meteorológico. Com dados meteorológicos, que são aqueles que era de esperar — precipitação, vento, humidade e temperatura —, nós elaboramos índices. O índice em si não é nada. O segredo é calibrar. Utilizamos os incêndios detetados por satélite: quando há um fogo, liberta energia, que é quantificável a partir de observações de satélite.

Que consegue captar a energia libertada.
Um satelitezinho que está a 36 mil quilómetros de distância consegue captar incêndios numa escala de quatro quilómetros. Esses satélites rodam solidariamente com a Terra, o que significa que estão sempre a ver a mesma coisa, e tiram fotografias de 15 em 15 minutos. Essa realidade é energia. É muito fácil para um físico tratar a energia e podemos fazer uma estatística em que nós calibramos os índices de risco com o historial. Por exemplo, temos aqui um incêndio com 290 megawatts [refere-se no mapa ao incêndio de Avis, que estava ativo durante a entrevista e que, entretanto, foi dominado pelas autoridades]. Está a ver a barragem da Aguieira? Em full-power, produz 300 megawatts. Temos aqui uma barragem da Aguieira em intensidade de incêndio. Se isto chegar aos 800, deixa de ser combatível. Quando muito, pode proteger-se aldeias… Este aqui está péssimo. E, se reparar, vamos ver onde é que ele está em termos de classe: na mouche. Na nossa classe excecional. Eu e os meus alunos não somos piromaníacos. Nestes dias, nós estamos em contacto com a Proteção Civil. Nós não somos consultores, mas a Proteção Civil muitas vezes está em contacto connosco. É a universidade a chegar a quem interessa.

Mapa apresentado pelo Ceasefire no dia 21 de julho, com o incêndio de Avis detetado por satélite precisamente na região onde a previsão do risco de incêndio apontava para um risco “excepcional”

Deve haver sinergias entre a academia e as autoridades.
E depois há outra coisa que é muito importante, sobretudo em países como Portugal, que é o facto de haver ligações de amizade. Eu conheço as pessoas há muito tempo. Mas estava eu a dizer: o segredo disto é calibrar os tais índices, que foram desenvolvidos pelos canadianos para as florestas do Canadá. O que é que tem uma floresta do Canadá a ver com isto? Nada, a não ser que estes índices medem o stress da vegetação. Se eu calibrar estes índices, com isto fazemos classes de perigo. E temos também, por exemplo, os mapas com os percentis. Quando vê um percentil de 95, quer dizer que, num historial de 40 anos, que nós temos, só 5% dos dias iguais aos de hoje é que tiveram valores superiores aos de hoje. Ou seja, está mau. Porque é que é muito importante olharmos para os percentis? No deserto, temos percentis elevadíssimos, mas como não há nada para arder… Ou seja, tenho de olhar para isto em contexto. Este é o lado do triângulo do fogo que não é controlável, mas é altamente previsível. Porque é que um índice de 80 é muito grave em determinados sítios e não é noutros? A razão é muito simples: se eu tiver uma floresta de eucaliptos ou pinheiros completamente abandonada e sem ordenamento nenhum, a probabilidade de ter um incêndio muito grande é muito maior. No Alentejo, por exemplo, tenho valores do índice muito elevados, mas o perigo é muito menor do que no Centro. Normalmente, estes índices são mais baixos no Minho e vão crescendo vindo para Sul e para Leste, para o interior. Se pensarmos em termos de paisagem, é exatamente o contrário: onde eles são mais elevados, a paisagem tem menos biomassa para arder. O perigo cresce de Norte para Sul e de Oeste para Leste, a vegetação vai diminuindo. Onde é que vou ter o máximo de perigo? No meio do território, onde as duas são razoáveis. Por isso é que temos incêndios sobretudo no Centro.

O que é o Ceasefire?

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O Ceasefire é uma ferramenta de análise e previsão de índices de risco de incêndio florestal em Portugal, construídos através de modelos estatísticos que têm em conta os padrões registados em parâmetros como a meteorologia, o estado da vegetação e as atividades humanas.

O projeto foi desenvolvido na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa por um conjunto de investigadores, incluindo Carlos da Câmara, e patrocinado pela The Navigator Company (que utiliza os alertas dados pelos investigadores para determinar quando é seguro operar cortes de árvores e outras atividades na floresta).

De acordo com Carlos da Câmara, o Ceasefire é também uma das ferramentas a que a Proteção Civil portuguesa presta atenção para antecipar o risco de incêndio em diversas partes do país, uma vez que as fórmulas foram calibradas com o histórico de 40 anos de incêndios em Portugal.

Os índices do Ceasefire podem ser consultados aqui, sendo preciso um registo inicial e a criação de uma conta.

Estes dois lados do triângulo — a meteorologia e o combustível — são os dois que é possível estudar e prever…
Todos são possíveis de prever, têm é características diferentes. A vegetação é controlável, no sentido em que se pode domesticar, se pode fazer um ordenamento do território. Esse é outro problema muito importante. Há aquelas pessoas que dizem sempre que no tempo do Salazar não havia fogos. Está bem, mas no tempo do Salazar não havia floresta. No tempo do Salazar, 90% da população era agrícola e 90% explorava a mata por razões de sobrevivência. Para a lareira, para a cama do gado… Nós tínhamos uma paisagem que não tem rigorosamente nada a ver com a nossa de hoje em dia. A área florestada aumentou. A área florestada abandonada também aumentou, porque a população deixou as terras do interior. As terras agrícolas, devido à Política Agrícola Comum e a uma série de fatores, desapareceram. Passaram a ser incultas. Os matos aumentaram. E há outro problema maior: as regiões agrícolas formavam mosaicos que interrompiam o contínuo que agora temos de vegetação altamente combustível. Uma mudança brutal. E depois há o terceiro lado do triângulo, que é a parte humana.

Estes são alguns dos mapas que podem ser consultados na ferramenta Ceasefire relativos ao perigo de incêndio (à esquerda) e aos índices para avaliar as condições para os incêndios (à direita)

E que fatores é que são tidos em conta nessa parte?
Primeiro mito urbano: o fogo é devido aos incendiários, o fogo é devido aos madeireiros, o fogo é devido a “n” interesses, é devido àqueles que combatem os incêndios, que os provocam. E não é. 95% das ignições são de origem humana. É um facto. Não são de causas naturais. Esta noite [de segunda para terça-feira] foi uma exceção — os fogos noturnos foram devido a esta trovoada. Mas isso é raríssimo. Mais de 90% são de origem humana. E, dentro dessas, a maioria é por negligência. É uma coisa que gostava de sublinhar. Os quatro incêndios grandes do sábado passado [dia 18 de julho] foram por negligência: um deles foi um churrasco feito num dia e num sítio proibidos; outro foi um velhote com uma motosserra — uma motosserra ou qualquer objeto cortante provoca uma faísca, deita uma faúlha e parece um rastilho —; outra foi uma pessoa a cortar uns galhos; e o quarto foi uma queimadazinha que fugiu de controlo. Tudo em dias proibidos. As pessoas têm de perceber que isto tem a ver com comportamento. É o terceiro lado do triângulo. A meteorologia é previsível, a vegetação é controlável e a componente humana é educável. Na realidade, a dinâmica da paisagem e as alterações climáticas estão a um ritmo tal que ultrapassa a capacidade de adaptação da população. Experimente: vá para o interior, fale com um velhote. “Mas o senhor é que me vem dizer quando é que eu devo fazer queimadas? Já o meu pai as fazia, o meu avô as fazia, o meu bisavô as fazia, e não havia nada disto.” Mas o problema não é esse. É que o modo de atuar já não pode ser o mesmo.

"Mais de 90% são de origem humana. E, dentro dessas, a maioria é por negligência"

O que é que temos de mudar, em concreto?
Sobretudo, a atitude perante os fogos. Comparo sempre os fogos a um problema que toda a gente compreende, sobretudo na minha geração, que são os acidentes de viação. Durante anos, éramos a vergonha da Europa, os que tinham mais acidentes. Havia duas fações, tal como agora há com os fogos. A primeira era a do combate e da repressão: existem acidentes porque as pessoas estão bêbadas, vêm em excesso de velocidade, não respeitam os sinais, portanto o que interessa é mais polícia na estrada e mais multas. Isto são aqueles que acham que o problema, nos fogos, é um problema de combate: mais aviões, mais tudo. E depois havia os outros que diziam: “Não, isto é um problema estrutural. É um problema das estradas, que têm de ser melhores, mais bem sinalizadas, mais protegidas, e é um problema de educação: dar uma carta tem de ser uma coisa mais séria do que antes”. Só que as medidas estruturais, como as medidas de ensino, que também são estruturais, veem-se no prazo de dezenas de anos, não no prazo de um ano. Nós, como vivemos na legislatura, que são quatro anos, tudo o que ultrapasse quatro anos não interessa. Acredito que isto é um problema estrutural. Um problema estrutural não se resolve; vai-se resolvendo.

Resolve-se com mudanças estruturais. Quais é que são essas mudanças, no seu entender?
Eu sou especialista na parte de meteorologia, e depois perguntamo-nos: “Porque é que isto funciona tão bem? Porque é que os fogos estão nos sítios certos?” É muito simples. A minha hipótese de base é que estão permanentemente a cair fósforos em todo o lado. Como estão sempre a cair fósforos em todo o lado, quem manda é a meteorologia. A meteorologia manda nos fogos. E porquê? Porque se deixa mandar. A meteorologia é uma condição necessária, mas não suficiente. Ela é necessária, só que as condições suficientes, que é haver o que há para arder e haver quem lá ponha ignições, esse é que é o verdadeiro problema. Como é que se resolve? No lado do triângulo da meteorologia, que é previsível, cada vez é melhor a previsão. Hoje em dia, as previsões a 24 horas e a 48 horas são fantásticas — a prova disso é que toda a gente fica muito indignada quando há um erro. Em segundo lugar, toda a gente sabe que a única maneira de impedir os fogos de se propagarem é que as pessoas limpem as florestas, tratem das suas propriedades e que haja esses mosaicos. Isso implica uma coisa fundamental que não existe: as pessoas terem rendimento para tratar do que é seu. Li há tempos um artigo curioso que dizia que a única maneira de se poder combater as alterações climáticas era dar valor à paisagem. Ou seja, no dia em que uma pessoa que tenha um hectare de pinheiros seja o mesmo que ter um Rembrandt em casa, como as coisas valem aquilo que nós damos por elas, uma pessoa trata muito bem o seu hectarezinho da mesma maneira que trata o Rembrandt. Nós ainda não damos o devido valor à floresta.

No contexto específico deste ano, preocupa-o que a pandemia tenha obrigado a adiar ações de limpeza dos terrenos?
Preocupa-me muito mais outra coisa, que é o aspeto das previsões a longo prazo. Estou a ficar muito preocupado. Tem alguma ideia de porque é que as pessoas escolheram plantar eucalipto? Essa árvore combustível, horrível, etc.? É muito simples. Um sobreiro só lhe dá rendimento ao fim de 30 anos. Hoje em dia, quem é que faz coisas para os filhos ou para os netos? Ninguém. Sobreiros, carvalhos, etc., são árvores que não se plantam. Um pinheiro dá-lhe rendimento ao fim de 15 ou 20 anos, enquanto um eucalipto, ao fim de dez, já começa a ter o primeiro rendimento. O período de retorno, hoje em dia, de um incêndio numa propriedade é menor do que 20 anos. As pessoas não são estúpidas. Qualquer agricultor sabe que se estiver a plantar uma árvore que tenha um tempo de retorno muito grande não vale a pena. Outro mito é as pessoas acharem que os pinheiros e os eucaliptos ardem mais. Não. O que arde mais é a floresta desordenada. Porque é que não ardem os eucaliptos da Navigator e da Altri? Não ardem porque são tratados. Agora, se eu posso obrigar o desgraçado de um sujeito que tem meia dúzia de eucaliptos a tratá-los… se calhar não. Mas esse é um problema socio-político e económico. A terceira coisa são as ignições. Continuam os cartazes “Portugal chama”, estão sempre a chamar-nos à atenção, e no entanto continuam os fogos por negligência. Não estamos a chegar a quem devemos chegar.

"No dia em que uma pessoa que tenha um hectare de pinheiros seja o mesmo que ter um Rembrandt em casa, como as coisas valem aquilo que nós damos por elas, uma pessoa trata muito bem o seu hectarezinho da mesma maneira que trata o Rembrandt. Nós ainda não damos o devido valor à floresta"

E quem é que são essas pessoas? É mais por causa das queimadas que se fazem, como dizia há pouco?
Aí é o Pedro Nunes [comandante da Proteção Civil] ou a Judiciária quem melhor lhe pode falar. Atenção: sabe-se muito mais das origens dos fogos do que as pessoas julgam. Isso é um outro problema. Hoje em dia, nós somos urbanos. O fogo faz parte da paisagem mediterrânica. Não faz parte é da cidade. Um incêndio, para nós, é uma coisa de tal maneira fora do nosso quadro de entendimento que temos de lhe dar sempre uma razão sobrenatural. Ou então, se não é sobrenatural, é um criminoso, é uma razão qualquer obscura. As pessoas não percebem que, no campo, lida-se com o fogo. É preciso modificar a maneira como se lida com o fogo no campo. Isso é complicado porque a população está envelhecida e a desaparecer. Os grandes incêndios são nas zonas mais ermadas do território. Por outro lado, há uma componente de longo prazo que é muito interessante. Em 2018, saiu um artigo no Observador que dizia que Monchique era o concelho que tinha mais probabilidade de arder. Está lá uma coisa simplicíssima: se tiver chuva em março, abril, o mato vai crescer; se, a seguir, tivermos seca em abril, maio, essa biomassa que cresceu vai ficar stressada, prontinha para arder. Uma seca durante abril, maio, vai tirar a água de dentro da terra. Porque é que a areia seca lhe escalda o pé e a areia molhada não, se as condições meteorológicas são exatamente as mesmas? Porque a água tem uma capacidade fantástica chamada capacidade calorífica. A água absorve brutalidades de energia sem variar a sua temperatura, enquanto que a areia não. É muito fácil de perceber. Uma mesma onda de calor tem efeitos muito mais nefastos em termos de ignição e propagação de um incêndio em anos secos do que em anos húmidos. Isso está na base de um modelo estatístico de longo prazo que nós fizemos. Não imagina o que esse artigo deu: recebemos telefonemas da presidente da câmara de Monchique a dizer que estávamos a denegrir a coisa, fomos acusados de ser especuladores imobiliários — devia ter enriquecido num ano e não enriqueci —, e, na realidade, o fogo foi mesmo nesse concelho. É sorte? Não. É estatística. Tão simples.

Então, vou voltar à minha pergunta inicial: o que é que o preocupa mais este ano?
O que me preocupa mais este ano é que, enquanto que, ao que tudo indicava, a época até começou bem, porque nos modelos de antevisão havia um stress relativamente pouco acumulado na vegetação, houve uma sequência de dias muito quentes e secos que têm vindo a fazer com que a vegetação comece a ficar cada vez mais stressada. Isso está a acontecer essencialmente no nordeste e também na região de Odemira, onde está particularmente mau. Esta época vai depender crucialmente das condições que se vão observar em julho e agosto.

E que análise é que tem feito do fator comportamento humano até agora?
Tem de haver, e já começou a haver, uma mudança de paradigma. O fogo deve ser encarado como os gatos. Um gato não é domesticável, nós aprendemos a conviver com um gato. Com o fogo é exatamente a mesma coisa. A ideia de um Portugal sem fogo mostra uma ignorância total do assunto. Um Portugal sem fogo é o mesmo que um gato a vir-nos lamber as mãos quando chegamos a casa. Não funciona. Como é que eu aprendo a conviver com o fogo? Olhando novamente para o triângulo do fogo e percebendo que a componente meteorológica vai tender a piorar, por causa das alterações climáticas. Já não é especulação, é um facto. Então temos de olhar para os dois outros lados do triângulo. É preciso uma mudança completa de uma política que vise a evolução da paisagem em Portugal, de forma a que permita a existência de fogos, mas controláveis. Isto implica valorizar a floresta e acabar com mitos de que existem árvores-bombeiras. É um conceito que nunca percebi o que é. No dia em que me mostrarem uma árvore bombeira, eu acredito. Quando se tem um grande fogo, até os arrozais ardem. A temperatura é de tal maneira extrema que evapora o conteúdo de humidade. Num incêndio gravíssimo, tudo arde. Carvalhos, pinheiros e eucaliptos. Não me interprete mal, não quero Portugal coberto de eucaliptos. O que quero é uma paisagem ordenada. Há pessoas que sabem o que isso quer dizer. Existem especialistas em floresta, silvicultores, que sabem muito bem o que é que acontece. Existem geógrafos que percebem como é que deve ser ordenado o território para que haja os tais corta-fogos naturais. A terceira coisa é uma política de educação, em que as pessoas percebam que o fogo não é nem sobrenatural nem um inimigo, mas é uma coisa extremamente perigosa, que se deve lidar com o máximo de responsabilidade.

Carlos da Câmara teme que 2017 se possa repetir em 2020

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Há dias, o investigador Xavier Viegas dizia que se pode repetir o cenário de 2017 este ano. Parece-lhe que se está a caminhar nesse sentido?
Acho que 2017 é como os campos de concentração. Uma pessoa não pode esquecer. O que aconteceu em 2017 é inaceitável. Os grandes incêndios são como os desastres de avião: nunca há uma causa única. É sempre uma conjugação de fatores — e é exatamente essa conjugação de fatores que não se pode deixar repetir. Da mesma maneira que, quando há um desastre de avião, isso normalmente leva a que haja uma comissão de inquérito, e nunca mais se larga o assunto, e tem sempre impactos enormes ao nível da segurança, de haver novos procedimentos, com os incêndios é exatamente o mesmo. As pessoas estão a começar a perceber que, quando nos vemos um avião a apagar um fogo, não devemos ficar muito satisfeitos, devemos ficar tristes, porque o problema foi ter havido o fogo. O combate tem de ser visto pela positiva para resolver um problema, mas é como uma ambulância para resolver um acidente: o problema é o acidente.

A questão da meteorologia podemos prever, mas não podemos controlar. Na parte do comportamento humano, dizia que tem havido uma evolução. Isto significa que o trabalho que é fundamental agora é a questão do ordenamento do território?
São as duas coisas. Agora, o problema é este: da mesma forma que os acidentes de viação não foram considerados um problema de esquerda ou de direita, porque os sucessivos governos continuaram com a prevenção rodoviária e viu-se os resultados à la longue, os incêndios é exatamente a mesma coisa.

Este ano estamos a assistir a um acumular de combustível semelhante a 2017?
Com uma diferença muito grande: há uma mudança para melhor na organização da Proteção Civil. Tem havido uma série de dias complicados e o que é que a Proteção Civil faz? Tem meios, tem uma resposta muito mais rápida e ataca logo com oito ou nove aviões. Qual é o meu medo? Se houver muitos dias seguidos destes ou, pior ainda, sete ou oito grandes incêndios ao mesmo tempo em Portugal, há a exaustão em termos de cansaço físico e em termos de meios materiais. Espero que não aconteça, mas há essa evolução.

"Acho que 2017 é como os campos de concentração. Uma pessoa não pode esquecer"

Há pouco tempo, o Observatório Técnico Independente alertava para o facto de ter havido uma diminuição do número de meios aéreos disponíveis em Portugal…
Há uma coisa que noto: cada vez que há um fogo, atiram-lhe com tudo o que há. Este aqui [aponta no mapa para o incêndio de Avis], por exemplo, neste momento tem lá nove aviões. Uma coisa que o Tiago Oliveira [presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais] dizia, e com razão, era que o fogo tem de ser atacado como um problema militar. Implica haver um comando único, uma horizontalidade de poder, atravessando vários ministérios, eventualmente na dependência do primeiro-ministro — são coisas em que ele é que é especialista, não sou eu. Há uma coisa que percebo: o fogo tem de ser atacado como um problema militar. E mesmo a tática é de guerrilha. O fogo não se ataca de frente. Quando uma pessoa vê aquelas figuras de que os jornalistas gostam muito, de um bombeirozinho com uma mangueirazinha à frente de uma chama enorme, é um absurdo. As pessoas têm de perceber que não é assim. Os fogos atacam-se de flanco, por trás, é preciso olhar para mapas e ver a evolução provável. Temos de ser mais espertos do que o incêndio. No fim de contas, acho que aí se tem progredido muito.

Ou seja, o que falta melhorar é a forma como os terrenos são cuidados e limpos. Por isso é que lhe perguntava há pouco se o confinamento e a pandemia, que atrasaram a limpeza dos terrenos, podem agora ter um reflexo na época dos incêndios.
É possível. No outro dia houve um webinar sobre esse tema em que participei e falou-se disso. Agora, não conheci ainda nenhum estudo quantitativo no sentido de dizer em que é que ficámos aquém. Acho é que o problema do ordenamento vai muito além disso. A primeira coisa que é preciso termos é um inventário florestal completo. Saber-se. Não sei se os seus avós tinham propriedades rurais ou não. Faço sempre a mesma pergunta: conhece onde são as propriedades? E a maior parte das pessoas diz que não. “Ah, eles têm umas coisas, lá para Figueiró dos Vinhos.” “Então e conhece os limites da propriedade?” “Não faço a mínima ideia.” As pessoas já lá não estão, e esse é o primeiro grande problema. Não é fácil nem barato. E é uma medida estrutural. Se nós não soubermos quem é dono do quê, como é que podemos responsabilizar? Depois, há um problema que é típico de Portugal (apesar de alguns entendidos dizerem que é possível resolver), em que somos diferentes de Espanha e França. É que em Espanha e França o maior proprietário florestal é o Estado e aqui são os privados. Portanto, a maneira de lidar com o problema tem de ser forçosamente distinta.

Então está de acordo com as críticas que o Observatório fez ao Governo, de que não há a certeza de que o país esteja suficientemente preparado para enfrentar um problema como o de 2017, caso se repita este ano?
Sim. Acho que não está e espero que nunca estejamos. Volto a dizer, isto é o mesmo que os gulags e os campos de concentração. É inaceitável. Tem de ser um marco que nos faz refletir. Não se poderá repetir. O que não quer dizer que estejamos a fazer tudo.

Acha que não está a ser feito tudo o que devia ser feito?
Acho que alguma coisa está a ser feita. Provavelmente dever-se-ia fazer mais. E, sobretudo, há uma muito maior vontade de as autoridades responsáveis colaborarem com a universidade. Isso é um aspeto muito importante, a educação. Essa educação não é só na universidade — da mesma maneira que havia prevenção rodoviária para os miúdos de cinco anos, tem de haver prevenção de incêndios e atitudes responsáveis desde a primária. Não tenho a mínima dúvida de que tem de ser assim. Só que os frutos só se veem daqui a 20 anos ou 30. Essa ideia de colaboração… Quando me doutorei nos Estados Unidos, a minha tese de doutoramento foi paga pela NOAA [National Oceanic and Atmospheric Administration], que é o ministério equivalente àquilo que tem a ver com a meteorologia. Porquê? Porque eles achavam que vale a pena investir na universidade para melhorar os seus produtos. Isto, até há relativamente pouco tempo, era incipiente. Eu considero-me um caso de exceção, no sentido em que eu e o José Miguel Cardoso Pereira, do Instituto Superior de Agronomia, que para mim é o grande especialista de fogos em Portugal, colaboramos desde 1991. Por uma razão muito simples: quando eu vim, novinho, de lá, e ele também veio, ele aparece-me um dia no meu gabinete a dizer “olhe, não nos conhecemos, mas eu preciso de um climatologista que perceba a sério destas coisas, porque os incêndios têm uma componente meteorológica muito sólida, gostava de trabalhar no assunto?” Desde então, começámos a fazer um programa, trocámos estudantes, etc. Mas isto era a exceção. Posso apontar outras exceções — o Francisco Castro Rego, do Observatório, por exemplo. Tenho muita pena que não fosse ao nível das instituições.

"O fogo tem de ser atacado como um problema militar. E mesmo a tática é de guerrilha. O fogo não se ataca de frente. Quando uma pessoa vê aquelas figuras de que os jornalistas gostam muito, de um bombeirozinho com uma mangueirazinha à frente de uma chama enorme, é um absurdo"

E, hoje em dia, já começa a ser?
Hoje em dia começa a ser. O que quero dizer é que, na realidade, a Proteção Civil já olha com espírito aberto. Isto é dos dois lados. Por exemplo, o facto de haver um Observatório Independente, acho que isto é raro. É independente.

Mas queixa-se de não ser ouvido.
Acredito que talvez devesse ser ainda mais ouvido. Mas há uma coisa de que eu gostei. A qualidade dos relatórios é de sublinhar. Eles ouviram quem percebe do assunto em todos os aspetos e são independentes. Havemos de lá chegar. Se não chegarmos, vai haver mais 2017s, não tenha a mínima dúvida. Este ano é um ano que acredito que seja para pôr as coisas à prova, porque as coisas não parecem boas. Só espero que corra bem e tenho alguma esperança, mas é um ano preocupante.

Porque do ponto de vista meteorológico há sinais preocupantes. Mas também do ponto de vista dos terrenos. Uma das críticas que o Observatório apontava é que, ao longo dos últimos três anos, depois de 2017, não foi feito todo o trabalho que devia ter sido feito na limpeza dos terrenos.
As pessoas têm de se capacitar de que se trata de um problema estrutural. Em todas aquelas críticas que são feitas habitualmente, por exemplo, a culpa do fogo é dos incendiários. Simples. Sabe-se praticamente quem os incendiários são. “Engavetar” os incendiários era a coisa mais fácil. Ou então: a culpa do fogo é dos madeireiros. Então não percebo porque é que a madeira lá fica. Dizia-me alguém uma vez que era o mesmo que um vendedor de automóveis andar a dar pontapés nos carros para os comprar mais baratos. É um absurdo. Diz-se também que o problema é o grande capital, o eucalipto. Um absurdo também. Então porque é que não ardem as propriedades deles? Todos estes mitos urbanos de fácil explicação e entendimento tornariam o problema extremamente simples de resolver. Agora, o verdadeiro problema é conhecido desde 2005 pelas pessoas que conhecem o assunto. Eu costumo dizer que vivo à custa disto. Eu vou melhorando os meus modelos meteorológicos porque sei que a resposta é sempre positiva. É como alguém estar a estudar a Covid com um bando de gente mal comportada: ótimo, os modelos seguem as exponenciais fantásticas. A variabilidade, de ano para ano, do que arde em Portugal, 66% dessa variabilidade é explicada pela meteorologia. Como é que eu posso controlar? Se eu melhorar o ordenamento do território, o tal lado do triângulo, apesar de as condições meteorológicas serem as mesmas, os incêndios vão diminuir porque se dificulta a sua propagação. Ou seja, vai diminuir a área ardida. Vai continuar a ser 66% de uma menor quantidade. Se eu educar as pessoas para não se fazerem ignições nos dias críticos, aí haverá menos ignições. Mas há um problema nosso com as reformas: nunca se esperam os resultados. Não é com dois ou três anos. Nunca se espera o tempo suficiente para perceber os frutos. Eu fiz parte de um comité europeu de deteção remota e estava lá um antigo diretor do serviço meteorológico francês. Encontrei-o e ele perguntou-me: “Então, como é que está o não sei quantos?” “Olhe, já não é diretor.” “Então porquê?” “Porque mudou o Governo.” E ele disse-me: “Não sabia que havia uma meteorologia de esquerda e uma meteorologia de direita. Eu estive 35 anos à frente do serviço meteorológico francês.” Enquanto não percebermos que isto só se resolve nesta perspetiva do triângulo, não iremos resolver o problema.

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