O debate já tem vários anos e volta na próxima semana ao Parlamento, em clima de divergência entre PS, BE, IL e PAN e o Presidente da República depois do último veto ao diploma para a legalização da morte medicamente assistida. Nesta nova leva, os partidos retiraram um termo da lei que pode resultar em novo veto, a julgar pelo texto do último, e levar a um novo choque com Marcelo Rebelo de Sousa.
Carlos César, presidente do PS, garante ao Observador que o partido “não está nem quer afrontar o Presidente da República. Pelo contrário. O PS, todavia, não pode deixar de defender o que sempre defendeu e se sabe que defende”, acrescenta o socialista.
A base da discordância é que o diploma foi sofrendo alterações ao longo do processo, e a última que todos estes partidos defendem é a retirada da expressão “doença fatal”. No texto que Marcelo Rebelo de Sousa vetou em novembro de 2021, constava que a eutanásia era legal em situação de “sofrimento intolerável com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal”.
Nos textos que avançam agora, a expressão “fatal” desaparece, com os partidos a argumentarem que, de acordo com o espírito da lei, a fatalidade da doença incurável nunca foi uma condição para a eutanásia — e que a mais recente versão da lei apenas faz pequenas correções de linguagem. Ainda assim, a divergência com Marcelo é clara.
No PS, Maria Antónia Almeida Santos argumenta que “a preocupação do PS não é responder ao Presidente, mas ao acórdão do Tribunal Constitucional”. Isto porque, antes do veto de novembro, tinha acontecido um chumbo por inconstitucionalidade, depois de um pedido de fiscalização preventiva de Marcelo. O diploma foi então alterado, mas ficou com falhas na redação que os partidos dizem estar agora a corrigir, justificando desta forma a retirada do termo “fatal”.
Do lado da Iniciativa Liberal, Rodrigo Saraiva assegura que a mudança não é um “choque ou provocação” a Marcelo. Porquê? A interpretação do partido é que a “noção de fatalidade” fica “incluída no conceito do é grave”, que “engloba o facto de ser uma ameaça à vida”. Assim, na visão da IL — que não cola com a de Marcelo — “ao fixar no seu projeto que a doença tenha de ser grave e incurável, a Iniciativa Liberal já prevê que a situação em causa implique grande sofrimento sem que se consiga identificar uma perspetiva do seu fim”.
O Bloco de Esquerda mostra-se em perfeita sintonia com o PS: o problema que Marcelo levantou – pelo menos para quem ler a primeira parte da argumentação apresentado pelo Presidente da República – tinha a ver com uma “desconformidade de expressões” e com “imperfeições que podiam ter sido limadas”. “Simplificar o diploma, na sequência dos pedidos do PR”, resume Pedro Filipe Soares.
Acreditando que nesta versão os problemas assinalados por Marcelo serão todos “devidamente sanados”, o bloquista evita entrar assumidamente em choque com o Presidente. Mas deixa recados claros: “Esperamos que o processo seja célere, também do lado do Presidente da República”.
Quanto às referências de Marcelo a uma sociedade que ainda não consensualizou a sua posição sobre a eutanásia nestes moldes – sem ser em caso de doenças fatais –, Pedro Filipe Soares corta a eito: “Não há diploma que tenha sido tão discutido na sociedade. O Presidente da República saberá o que tentou fazer. Nós respondemos ao veto como ele foi apresentado”.
O resultado final, no entanto, é mais abrangente e marca bem as diferenças de opinião entre os partidos que apresentaram projetos e o Chefe de Estado. “Na nossa cabeça esteve sempre um alcance que não se cinge estritamente aos casos de morte iminente. Esse minimalismo extremo nunca esteve na nossa visão”, esclarece um dirigente bloquista.
A mesma fonte chega a admitir que “formalmente” as alterações até podem mesmo resultar numa abrangência alargada dos casos em que a eutanásia se pode aplicar. “É possível fazer essa leitura”, reconhece-se no Bloco de Esquerda. Ainda assim, vingou outra tese. “Na nossa perspetiva foi uma clarificação”, defende a mesma fonte do partido.
Sobre um eventual novo chumbo de Marcelo Rebelo da Sousa, os bloquistas recordam com ironia o que o Presidente da República sempre disse: a decisão não será tomada de acordo com a consciência pessoal do Presidente e a lei só precisa de ficar “juridicamente” inatacável. Goste Marcelo ou não.
O PAN concorda com esta leitura e deixa um aviso direto a Marcelo Rebelo de Sousa: “Já houve um amplo debate na sociedade portuguesa. Esperemos que este veto não venha a perpetuar-se. As pessoas que elegeram esta composição do Parlamento leram os programas e sabiam ao que vinham”, remata Inês Sousa Real, líder e deputada única do PAN.
Uma lei a precisar de correções
O problema, dizem os partidos, começou no ano passado, quando o CDS ainda tinha assento no Parlamento. A primeira tentativa de legalizar a eutanásia tinha sido vetada pelo Tribunal Constitucional e, na pressa de publicar a lei alterada pelos deputados, os partidos que tinham projetos nesse sentido combinaram fazer algumas alterações a posteriori, na redação final da lei.
Ora este passo serve, teoricamente, apenas para fazer correções de forma, e não de substância – e o CDS, a quem convinha atrasar o processo numa altura em que faltava pouco para o Parlamento ser dissolvido, reclamou, garantindo que as alterações tinham sido mais profundas do que deviam.
O então Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, deu razão aos democratas-cristãos, o que devolveu o diploma à sua versão inicial. Os partidos que defendem o diploma querem agora aperfeiçoar o texto, fazendo as alterações que já tinham tentado fazer, mas que o CDS conseguiu impugnar.
O Bloco é duro na análise: “O CDS arranjou um expediente para criar um elemento dilatório e com o tempo condicionar a aprovação da lei, porque se aproximava a dissolução da Assembleia. Considerámos isto uma forma pouco correta de tomar posição política por termos burocráticos”, atira o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares.
Mas as alterações atuais já não se resumem apenas a questões de linguagem. Na homogeneização de termos ao longo do diploma, os partidos optaram pela formulação que tem potencial de polémica junto de Belém. O PS argumenta, como fez Isabel Moreira em entrevista ao Observador, que “na letra e no espírito da lei nunca esteve a hipótese de só estar apto a pedir a morte medicamente assistida alguém que estivesse na iminência da morte, daí o problema da expressão fatal.”
No diploma aprovado em fevereiro de 2021, constava o termo “fatal” por três vezes: quando se definia em que circunstâncias se podia recorrer à morte medicamente assistida, quando se definia os termos da confirmação por médico especialista e ainda quando se definia o que tinha de constar no relatório final. Quando esse diploma foi alterado, o termo “fatal” continuou a constar nos mesmo três pontos e só agora desaparece por completo.
Nos projetos já entregues, do Bloco de Esquerda, PAN e IL, constata-se o mesmo: os partidos construíram os projetos da mesma forma e, quase palavra por palavra, definem a situação elegível para eutanásia como “uma situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável”. Nos quatro projetos de lei, só existe uma pequena variação (uma alínea em que o PAN refere apenas uma “doença incurável” como condição, sem referências à sua gravidade).
Já na exposição de motivos do seu projeto, o PAN vai ainda mais longe e parece até responder às dúvidas de Marcelo sobre se esta decisão vai ao encontro do sentimento dominante da sociedade portuguesa, recorrendo a um estudo da Eurosondagem que indicava que 67,4% dos portugueses defenderiam a legalização da morte medicamente assistida.
O que pensa Marcelo sobre a retirada da expressão “fatal”
O texto do último veto, em novembro passado, já era claro sobre o que pensa Marcelo Rebelo de Sousa de uma alteração ao diploma que retirasse a expressão “fatal”. No entendimento presidencial, essa alteração teria como efeito “ampliar a permissão da morte medicamente assistida, ou seja do suicídio medicamente assistido e da eutanásia”.
E continuava: “Se assim for, alinhará pelos três Estados europeus citados pelo Tribunal Constitucional e pela Espanha – que, entretanto, aprovou lei no mesmo sentido -, os quatro com solução mais drástica ou radical, e afastando-se da solução de alguns Estados Federados norte-americanos, do Canadá e da Colômbia”.
Essa situação, dizia ainda Marcelo, suscita “uma questão mais substancial”. “Corresponde tal visão mais radical ou drástica ao sentimento dominante na sociedade portuguesa?”, desafiava o Presidente da República. Perante o diploma que se prepara agora para ser aprovado no Parlamento, Marcelo já avisava que quereria “saber em que bases se apoia a opção pela solução mais drástica e radical”.
O que pensa a sociedade, garantia também, era o seu alfa e ómega nesta decisão, rejeitando que estivesse contaminado por “qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal”: “O juízo que formulo acerca do que corresponde ao que considero ser o sentimento valorativo dominante na sociedade portuguesa.”
Em tese, o argumento poderia colar com os que o Chega tem usado para propor a realização de um referendo, proposta que já voltou a apresentar nesta sessão legislativa — resta saber a posição do novo líder do PSD, Luís Montenegro, sobre o assunto. O quadro parece, por tudo isto, favorável a novo veto do Presidente da República.