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Aseel, trabalhadora humanitária, está na Cisjordânia e uma das primeiras coisas que faz todas as manhãs quando acorda é ligar para os colegas na Faixa de Gaza. Mas esta não é uma chamada qualquer: “Ligo-lhes para saber se ainda estão vivos”. Zawar, médico, esteve em Gaza até há poucos dias. Tem experiência em cenários de catástrofe, mas afirma que “nada se compara” ao enclave palestiniano: “É intimidante”, resume. Mas vai voltar em breve: “Foi para isto que fomos treinados”.
O ataque do Hamas a Israel de 7 de outubro faz este domingo seis meses e o “marco” surge numa semana em que as organizações humanitárias estiveram no centro das atenções pelos piores motivos: sete funcionários morreram num ataque de Israel. Tal levou à suspensão temporária de várias operações humanitárias — o que agrava ainda mais a situação no terreno.
Como é que as ONG’s estão a reagir? Como é estar no enclave perante esta situação? Como se faz um parto num hospital improvisado? Nos seis meses da escalada do conflito, o Observador reúne testemunhos de profissionais que estão no terreno a ajudar civis e dão conta de um cenário devastador.
“Há explosões e tiros à nossa volta. E o nosso hospital é feito de tendas, o que não oferece grande proteção”
Sete trabalhadores da World Central Kitchen (WCK), de várias nacionalidades, morreram no dia 1 de abril, num ataque aéreo do exército israelita. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu fala num “caso trágico” e as forças de defesa admitem que cometeram um erro. “Isto é imperdoável”, reagiu no próprio dia a ONG.
Zawar Ali, médico especialista e coordenador do programa de vacinação da International Medical Corps, admite que a notícia foi “um golpe na moral dos trabalhadores humanitários”. Em conversa com o Observador a partir do Cairo, no Egito, onde está a coordenar o envio de ajuda humanitária para Gaza, Zawar Ali fala numa “tragédia”, mas lembra que qualquer guerra “acarreta sempre violência” para este tipo de voluntários.
Aseel Baidoun, palestiniana, pertence à Medical Aid for Palestinians, onde colabora como diretora legal e de campanhas. Ao Observador, também fala num “ataque trágico”. Mas lembra que não é a primeira vez que trabalhadores humanitários morrem em Gaza desde a escalada do conflito com o Hamas: “Desta vez, a notícia tem mais eco porque as vítimas eram estrangeiras”. E acrescenta: “Estes trabalhadores têm de ser protegidos”.
Questionados sobre a experiência de trabalhar no terreno, num conflito que, de acordo com as autoridades palestinianas, já fez mais de 33.000 mortos e 75.000 feridos, os adjetivos utilizados são semelhantes: “Horrível, devastador, caótico e perigoso”.
O médico Zawar Ali foi para Gaza no dia 1 de janeiro, onde, logo depois do ataque do Hamas, a International Medical Corps montou um hospital de campanha com capacidade para 140 camas. A ONG, fundada em 1984 nos Estados Unidos, fornece ajuda médica a civis afetados pelo conflito. “Temos capacidade para fazer cirurgias e partos. Temos raio-x, reservas de sangue e medicamentos. E estamos a expandir a capacidade”, explica ao Observador. De acordo com Zawar Ali, o hospital dá resposta a “600 pacientes” por dia e, só entre janeiro e março, tratou “30.000 vítimas”, para além dos “mais de 300 partos”. O staff é de 400 voluntários. “Estamos a ter um impacto positivo”, destaca.
Ouça aqui na íntegra as declarações dos dois trabalhadores humanitários:
10h. Assinalam-se hoje 6 meses desde o início do conflito entre Israel e o Hamas
Mas as necessidades humanitárias dos civis afetados pelo conflito entre Israel e Hamas são intermináveis. E nem toda a ajuda do mundo chega, diz o médico.
“As condições são horríveis. Já estive noutros cenários, mas nada se compara a Gaza. As circunstâncias são diferentes: é uma área muito pequena, com muitas pessoas que não conseguem satisfazer as necessidades humanitárias. E há explosões, há tiros, e o nosso hospital é feito de tendas, o que não oferece uma grande proteção. Já houve incidentes muito perto de nós. E ouvimos as pessoas a chorar. É intimidante. É uma experiência diferente e um trabalho difícil. Mas foi para isto que fomos treinados. Estamos a distribuir ajuda em Gaza e vamos continuar a fazê-lo”, conta Zawar Ali, da International Medical Corps.
Ao Observador, o especialista relata ainda um cenário em que a morte é uma constante — desde crianças a idosos. “Muitos civis chegam ao hospital já mortos. O nosso trabalho, nesses casos, é tratar os cadáveres com respeito e contactar os familiares”. E Ali destaca que é frequente criar ligação com os pacientes. “Enquanto médico, o paciente é a nossa prioridade. Claro que ficamos apegados. É natural”. Questionado sobre um caso que o tenha marcado mais, o profissional de saúde recorda o episódio de um homem que foi baleado na cabeça.
“Este paciente tinha muitos danos no cérebro e tivemos de fazer uma cirurgia de emergência. Tememos o pior, pensávamos que não ia sobreviver. Mas, graças a Deus, sobreviveu e melhorou. Saiu do coma e está a recuperar. São histórias que nos acompanham para sempre”, destaca.
A International Medical Corps opera em Gaza há vários anos e trabalha com vários parceiros internacionais para oferecer ainda serviços de ajuda psicológica, nutrição, apoio contra a violência de género e acesso a água potável e higiene pessoal.
As chamadas para os colegas, as longas horas de espera na fronteira e a “logística caótica”: “Sinto-me de coração partido”
A partir da Cisjordânia, Aseel Baidoun, que integra a Medical Aid for Palestinians, também ajuda no envio de bens humanitários para a Faixa de Gaza. Esta organização de caridade, baseada no Reino Unido, já distribuiu “milhões de dólares” em apoio humanitário no enclave.
É um apoio que ganha ainda mais relevância depois da destruição do Hospital Al-Shifa, o maior de Gaza. A Organização Mundial da Saúde alertou este sábado que a instituição de saúde está completamente em ruínas, depois dos ataques de Israel, e com várias sepulturas e vestígios de cadáveres no interior.
Perante este cenário, Aseel Baidoun fala num trabalho indispensável, mas incontornavelmente perigoso. “Em Gaza, não há nenhum local seguro. É um dos sítios mais perigosos do mundo para trabalhadores humanitários. Todos os dias, a nossa equipa arrisca a própria vida para fornecer ajuda vital a quem precisa, mesmo sabendo que algo pode acontecer a qualquer hora”, desabafa. “Estamos a dar o nosso melhor. E vou ser sincera: todos os dias, quando acordo, ligo para os meus colegas, para ver se ainda estão vivos. É uma questão de tempo até todos morrermos. Já todos perdemos entes queridos”, lamenta ainda.
E não é nada fácil fazer entrar ajuda humanitária no enclave. Ao Observador, a diretora legal e de campanhas da Medical Aid for Palestinians fala numa “logística caótica”: “Há muitas restrições. Leva muito tempo e é um processo muito incerto. Os meus colegas esperam horas na fronteira, até os camiões poderem entrar. E têm de acompanhar todo o processo, para garantir que a entrega é cumprida de forma segura”.
Zawar Ali, médico especialista e coordenador do programa de vacinação da International Medical Corps, confirma a dificuldade das operações. Explica ainda que os alimentos, medicamentos, kits de higiene e roupa são doados ou obtidos a partir de parceiros internacionais.
Por estes dias, Ali está no Cairo, Egito, a tentar arranjar mais mantimentos para enviar para a Faixa de Gaza. E vai voltar ao enclave já esta segunda-feira, para trabalhar no mesmo hospital de campanha. A previsão é para que fique “algumas semanas”. O trabalho vai ser o mesmo: “Vou dar apoio ao hospital para que possamos melhorar os cuidados de saúde prestados. Também temos de melhorar o processamento de dados”, detalha.
A comunidade internacional está a fazer o suficiente?
Questionados sobre previsões para o fim do conflito, Zawar e Aseel alinham-se nas respostas.
O médico deseja paz o mais depressa possível: “É uma pré-condição para recuperar a vida em Gaza”. A trabalhadora humanitária também deseja, naturalmente, o fim do conflito o mais depressa possível, mas vai mais longe e pede consequências para Israel. Ao Observador, Aseel Baidoun critica o que considera ser a falta de respostas da comunidade internacional.
“Todas as violações cometidas por Israel têm de ser investigadas de forma independente e os responsáveis têm de ser punidos. Estamos a ver civis, crianças e trabalhadores humanitários serem mortos. É devastador. E a comunidade internacional está a falhar, ao não pôr fim a este sofrimento. O Tribunal Internacional de Justiça fala mesmo em genocídio. As pessoas estão a morrer à fome e Israel usa a fome como arma de guerra. E segue impune”, lamenta.
“Sinto-me de coração partido, devastada, frustrada, zangada e impotente”, resume Aseel.
Esta semana, e na sequência da morte dos sete membros da World Central Kitchen, Joe Biden avisou Benjamin Netanyahu que o futuro apoio dos Estados Unidos à guerra de Israel em Gaza depende da adoção de novas medidas para proteger civis e trabalhadores humanitários.
Também para assinalar os seis meses da escalada do conflito com o Hamas, o presidente de Israel divulgou nas últimas horas uma mensagem ao povo. Isaac Herzon fala num “ataque terrorista e cruel” e num “massacre horrível”.
“Passou meio ano e é difícil saber que desafios ainda nos esperam. Mas, apesar da longa e difícil jornada, olho para vós, cidadãos de Israel, e sei que nos vamos erguer de novo, vamos curar e construir, vamos plantar, vamos colher com alegria o que semeamos com lágrimas”, promete o presidente israelita.
Entretanto, o Hamas anunciou que uma delegação do grupo vai chegar ao Cairo, no Egito, este domingo para as negociações sobre um cessar-fogo.
Também ao fim de seis meses de conflito, a administração de Benjamin Netanyahu está debaixo de fogo. Milhares de manifestantes reuniram-se na noite deste sábado em Telavive, para exigir novas eleições, a libertação dos reféns e o fim das hostilidades.