A construção de casas travou a fundo na última década, contribuindo para uma alegada falta de oferta frequentemente usada como argumento – desde logo, pelas empresas do setor imobiliário – para explicar os preços elevados que estão a gerar uma crise de habitação no país. Porém, 12% das casas (habitáveis) em Portugal estão vagas – segundo o INE, são mais de 723 mil casas (mais de 150 mil só na zona de Lisboa). Quase metade destas casas vazias está no mercado, disponível para venda ou arrendamento, mas a outra metade está vaga por “outros motivos”, incluindo partilhas familiares complexas.
Esta contagem oficial de casas definidas como “vagas” foi apresentada recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) nos resultados dos Censos 2021. Entre os quase 6 milhões de alojamentos clássicos edificados em Portugal, 4,1 milhões estão a ser usados como residência habitual, 1,1 milhões como residência secundária e mais de 700 mil foram dados pelos recenseadores como “vagos”: em rigor, 723.215 casas.
Os dados mais detalhados dos Censos 2021 mostram que o número de casas vagas baixou, ligeiramente, em relação a 2011: eram mais de 735 mil quando foi feita a anterior edição dos Censos. Agora, os dados mostram que entre os cerca de 723 mil imóveis sem utilização havia 348.097 que em 2021 estavam disponíveis para venda ou arrendamento, ao passo que 375.118 estavam vagos por “outros motivos” (um número que, ainda assim, baixou face aos 460 mil de 2011).
E que “outros motivos” são estes? Os recenseadores ao serviço do INE tentaram inventariar as razões que levaram à classificação das casas como vagas por “outros motivos”, sem qualquer sinal de que sejam usadas (mesmo que de forma pouco frequente) nem que estejam disponíveis para venda ou arrendamento. Não há uma desagregação concreta destes dados mas as razões mais frequentemente apuradas foram casos em que os habitantes morreram e as casas estão em partilhas familiares – por vezes, há décadas – ou não se faz ideia do paradeiro dos legítimos herdeiros.
O INE cedeu ao Observador um mapa onde se faz um cálculo de onde foram detetadas mais casas vazias, por município – em percentagem face ao total de fogos existentes. Para o INE, sublinhe-se, uma ruína sem janelas ou telhado, por exemplo, não entra no conceito de uma casa “vaga”: o que está contabilizado são casas habitáveis ou que passariam a estar habitáveis com alguma reabilitação simples.
Também há dados do INE, mais detalhados, sobre quantas unidades de casas vagas existem em cada município (e região) de Portugal.
“Num país onde há 725 mil casas vazias é preciso falar tanto em construção nova?”
Para Tiago Mota Saraiva, arquiteto e urbanista, “se após o 25 de Abril de 1974 o problema da habitação era a falta de 500 a 700 mil casas, hoje o problema da habitação não é a falta de casas“. Partindo dos dados do INE sobre o número de alojamentos considerados vagos, o especialista em urbanismo diz ao Observador que ,”muito provavelmente, o problema das 100 mil famílias a viver em condições indignas ou das 700 mil a viver em severa pobreza energética resolver-se-ia se as casas devolutas fossem bem reabilitadas e ocupadas”.
Também Luís Mendes, geógrafo e investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG/UL), sublinha que até mesmo na capital e arredores, uma zona de forte procura e carência habitacional, há dezenas de milhares de casas “desprovidas de função social e económica“, conceito que prefere usar. “Há imensas casas em Lisboa que estão fechadas e, muitas vezes, nem é uma questão de especulação – muitas serviram foi como critério para atribuição de vistos gold”, exemplifica.
O investigador salienta que “no discurso do imobiliário surge sempre a ideia de que há falta de casas. E de facto há falta de oferta, no mercado, mas as casas existem, estamos a falar de 725 mil casas vazias”. “E num país onde há 725 mil casas vazias ainda é preciso falar tanto em construção nova?“, pergunta Luís Mendes, salientando que “estamos perante uma crise emergencial” que não se coaduna com os prazos da construção nova num contexto de falta de mão de obra e aumento dos preços da construção.
A julgar pelos dados do INE, que dizem respeito a 2021, cerca de metade das chamadas “casas vazias” estão disponíveis para venda e/ou arrendamento. O investigador defende incentivos públicos para que essas casas possam ser mais atrativas no mercado mas o principal foco da entrevista ao Observador é a outra metade: aquelas que estão vazias “por outros motivos” e onde os recenseadores não encontraram sinais de que estejam disponíveis para ser vendidas ou arrendadas.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre as casas vazias em Portugal.
A “caçadora de herdeiros”: “Encontrarmos a pessoa é só o primeiro passo…”
Só na Área Metropolitana de Lisboa, de acordo com os dados do INE, havia em 2021 cerca de 70 mil casas vagas disponíveis para venda e/ou arrendamento mas um número maior – 89.728 – estavam vagas “por outros motivos“. E, em Lisboa, tal como em todas as grandes cidades da Europa e do mundo, uma parte significativa das casas desaproveitadas (e indisponíveis) são-no por causa de heranças indivisas não solucionadas, cadastros inexistentes ou donos desconhecidos. Há até casos de total desinteresse por parte dos proprietários – mas também há herdeiros que nem sabem que o são.
É nesses casos que entra um setor que, embora não exista em Portugal, está bem enraizado em países como os EUA, França e Reino Unido. No Reino Unido até há uma série televisiva – os Heir Hunters, “caçadores de herdeiros” – que mostram casos reais de como operam as empresas cuja atividade é localizar herdeiros (nos quatro cantos do mundo) e resolver processos difíceis de heranças. Ângela Campos, que falou com o Observador, está a trazer para Portugal esta atividade que pode ajudar a reduzir esta “percentagem imensa de imóveis não-utilizados que temos no país“.
Ângela Campos, uma historiadora que no passado trabalhou numa empresa britânica neste setor, coordena hoje a Living History Solutions, uma rede de profissionais que a partir de 13 países (onde se falam nove línguas) tentam resolver casos bicudos de heranças através de técnicas de investigação sucessória e genealogia forense. São inúmeros os casos, em locais, desde a América Latina até à vizinha Espanha, em que os poderes locais estão a usar estes métodos para garantir o melhor aproveitamento do edificado em zonas históricas ou de grande procura – isso porque é frequente os municípios conseguem chegar aos donos.
“Uma das formas que o Estado tem de perceber que uma casa está devoluta é a ausência de tributação, ou seja, o IMI não está a ser pago. Isso cria um alerta. Mas o Estado, depois, não tem os meios para ir resolver a situação”, diz Ângela Campos. O poder público “até pode saber que a casa não tem ali ninguém mas o que é que vai fazer? Tem a morada fiscal das pessoas, mas se a pessoa não está ali ou não está presente, enviar uma carta, de forma automática, não vai fazer nada“.
A fundadora da Living History Solutions afirma que, no fundo, “o Estado não tem ferramentas para encontrar pessoas, de facto” e “muitos destes casos de casas abandonadas serão por esta razão”. O que esta atividade traz de novo é que tem “ferramentas e experiências específicas que permitem encontrar pessoas em qualquer lado do mundo”, tirando partido da tal rede de profissionais que conhecem as características de cada sistema burocrático e de que forma é que a legislação de cada país permite chegar às pessoas”.
Na área privada, esta atividade também existe mas em Portugal estes casos são muitas vezes entregues a advogados ou solicitadores, que podem conhecer a legislação do país onde está o imóvel mas não têm vocação nem experiência para lidar com outras jurisdições e chegar realmente às pessoas. Ou até podem ter um sistema de incentivos que não propicia que rapidamente se encontrem os herdeiros – herdeiros esses que muitas vezes estão espalhados pelo mundo e nem têm qualquer ligação com o país onde está o imóvel, nem mesmo falar a língua.
“Encontrar as pessoas é apenas o primeiro passo, depois também somos mediadores do contacto e da gestão burocrática que por vezes é muito difícil, sobretudo em algumas jurisdições”, explica Ângela Campos. Os métodos seguidos são sempre no “estrito cumprimento da legalidade de cada país”, o que nem sempre é o caso quando se recorre a outros serviços como alguns que operam na área da investigação privada.
Ângela Campos diz que “em Espanha o Estado e as entidades municipais estão a recorrer a estas empresas”. A historiadora, que vive com um pé em Portugal e outro no Reino Unido – e trabalha sobretudo em casos ligados a estes dois países –, diz ter colegas no país-vizinho que “estão a assinar contratos com municípios e autarquias precisamente na área da reabilitação urbana em zonas históricas com 20, 30, 40 imóveis que ninguém sabia de quem eram“.
“Estado deve intervir” em casas licenciadas para habitação que não estão a servir para isso
Esta pode ser uma solução para as situações em que não é fácil chegar aos donos de uma casa ou de um prédio, mas na maior parte das situações os proprietários estão bem identificados. E é nesses casos que Luís Mendes defende que, sobretudo nas condições atuais, “é legítimo algum tipo de intervenção pelo Estado no sentido de ajustar melhor esta oferta, porque é a entidade responsável pelo ordenamento do território” e porque, recorda, estamos muitas vezes a falar de edificados cuja construção foi autorizada no pressuposto de servirem de habitação – e, se estão vazios, não estão a cumprir a missão para a qual foram licenciados.
“Cada vez que se faz um sorteio de arrendamento acessível pela Câmara Municipal de Lisboa são disponibilizadas 60 a 70 casas, por edição. E candidatam-se sempre 10 a 12 mil pessoas. A procura insolvente é dessa ordem”, refere Luís Mendes, defendendo que, “perante uma ausência clara de oferta de casas a preços acessíveis, é preciso uma intervenção de domínio público” – respeitando o “direito à propriedade, já que a expropriação deve ser, sem dúvida, o último reduto“.
Que outras medidas existem, antes desse “último reduto”? “A medida mais básica e fundamental é através da fiscalidade“, diz Luís Mendes. Isto é, “o Estado através da política fiscal toma medidas para beneficiar os proprietários que colocam as suas casas vazias em mercado de arrendamento acessível, ou até mesmo em mercado geral (privado)”.
Quem colocasse as casas no mercado, através do registo numa plataforma que seria criada para controlar o arrendamento (algo que não existe atualmente), teria incentivos fiscais, defende o investigador, acrescentando que deveria ser uma “política fiscal gradativa em função de renda por metro quadrado” e não do valor da renda – “porque arrendar 100 metros quadrados em Benfica pode valer o mesmo que arrendar 40 ou 50 metros quadrados em Alfama mas isso deveria ser tratado de forma diferente em termos fiscais, o que não acontece hoje (só conta o valor da renda e nada mais)”.
Se um incentivo pelo lado do benefício não for suficiente, Luís Mendes defende que se deve ir pela outra via, ou seja, “penalizar os vagos, em sede de IMI ou outro tipo de impostos”, sempre tendo em atenção que “agravar o pagamento de IMI a um fundo de investimento imobiliário é apenas um beliscão. Mas se agravar o IMI seis vezes, nove vezes, aí sim vamos começar a sentir-se…”.
Obrigar senhorios a arrendar, como pediu Mortágua? “Obrigar é uma palavra pesada”
Em cima da mesa deveria estar, também, a opção da chamada “tomada de posse administrativa“. Luís Mendes diz que “temos no nosso quadro jurídico ferramentas que permitem estimular” a colocação de casas no mercado. “Obrigar”, como referiu Mariana Mortágua, “é uma palavra pesada” – “mas se a questão da fiscalidade não funcionar penso temos de usar um ordenamento jurídico um pouco mais robusto e musculado”.
Nesta tomada de posse administrativa, “o Estado toma posse, reabilita, mas a propriedade é sempre do proprietário”. Lembrando que a lei de bases da habitação já permite isso em locais de elevada procura, Luís Mendes sublinha que “o Estado tem primazia em trazer os edificados para a oferta de habitação, por diversos instrumentos”. “Passado uns anos, o fogo pode ser devolvido nas mesmas condições, ou melhores, ao proprietário” e assim a função de proporcionar habitação foi cumprida durante aquele período, explica.
Aprovada proposta do PCP que dá direito de preferência a autarquias na venda de casas penhoradas
Luís Mendes acrescenta que “as câmaras já estão a fazer mais uso do direito de preferência“, que saiu reforçado no atual Orçamento do Estado, “até em casas que estão na banca e que as câmaras estão a comprar a um valor patrimonial mais baixo nos leilões” e, depois, colocam em habitação acessível (reabilitando nos casos em que é necessário). Isso “fica mais barato e fácil do que construir, porque há dinheiro do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) para construir, mas falta quem construa“, afirma o investigador.
Também Tiago Mota Saraiva diz não ter “qualquer dúvida que um dos instrumentos deverá ser a mobilização dos fogos privados devolutos”. “Essa mobilização, com caráter de urgência, deverá ser feita a partir da lógica da coercividade, ou seja, o proprietário de uma habitação devoluta deverá ser notificado para que ocupe o fogo com um contrato de habitação permanente e, caso não o faça, o Estado poder-se-á substituir temporariamente garantindo essa ocupação”.
“Este processo deverá começar por quem tem um maior número de propriedades e deverá ser feito por posse administrativa nos mesmo moldes em que são realizadas as obras coercivas”, acrescenta o especialista em urbanismo.
Para Luís Mendes, porém, apesar de todas estas poderem ser boas soluções, o que o País precisa é de um “pacto de regime”. “A habitação é um problema muito complexo, multidimensional, com muitos stakeholders, privados, públicos, cooperativos” e “é uma situação em que o Estado enquanto agente de ordenamento do território tem de ter uma posição mediadora e julgo ser necessário um pacto de regime, um entendimento à escala nacional despido de ideologias, muito munido pela questão técnica e científica, e que permita ao Estado tomar decisões para um problema que é ’emergencial'”.