Este ano, a noite de Natal da família de Fátima Araújo não foi muito diferente das anteriores. O lugar da sexagenária estava vazio e isso mudou também a forma como todos viveram a época festiva.
Por um lado, a pausa para o Natal e Ano Novo impediu os familiares de procurar pela mulher, de 62 anos, que desapareceu a 23 de novembro, na zona do Saldanha, em Lisboa, com a saudade a apertar cada vez mais. Por outro, deu tempo para se prepararem para “voltar em força” para as ruas, determinada a encontrá-la viva.
“Mandámos fazer mais cartazes, além dos que já tínhamos afixado, folhetos e até uma lona com o nome dela”, revela ao Observador o sobrinho Leandro Oliveira. “Queríamos divulgar ao máximo esta situação.”
A família já tinha tudo pronto para regressar às ruas a 10 de janeiro, quando, no dia anterior, recebeu uma chamada. “Fomos notificados pelo Instituto de Medicina Legal (IML) de Cascais, que nos informou de que o corpo da minha tia tinha sido encontrado e que estava na morgue do cemitério da Guia desde 28 de dezembro“, recorda Leandro Oliveira.
A reação de choque da família passou para o outro lado do telefone, quando o funcionário do IML perguntou: “Não sabiam?” Não só não sabiam que o corpo tinha sido encontrado 13 dias antes, como achavam que era uma “brincadeira de mau gosto”.
“Já tínhamos recebido uma chamada, no dia de Natal, a dizer que tinham encontrado a minha tia. No entanto, fizeram a descrição exata do que estava na comunicação social e não avançaram com grandes pormenores”, acrescenta o sobrinho. Leandro Oliveira e os restantes familiares ainda ponderaram seguir as pistas dadas pelos desconhecidos, mas descartaram-nas quando estes lhes deram um número de telefone falso.
“Por isso, quando recebemos a chamada do IML, pensámos que pudesse ser outra brincadeira.” As suspeitas, no entanto, desapareceram quando, no dia seguinte, o pai de Leandro, José Oliveira, foi reconhecer Fátima Araújo. Ou o que julga ser o corpo da irmã.
Uma fuga à rotina, a queda na paragem de autocarro e um marido “abandonado”. O dia em que Fátima desapareceu
O relógio aproximava-se das 5h40 e o sol já dava sinais de aparecer. Num dia normal, Fátima Araújo ainda estaria na cama, ou a preparar as refeições para o marido, Carlos, que sofre de Parkinson, entre outras doenças, e era totalmente dependente da mulher. No entanto, a 23 de novembro, a mulher, residente no Lumiar, estava a sair do autocarro 798 da Carris, na paragem na Praça Duque D’Ávila, no Saldanha.
Não sei a que horas é que ela costumava sair de casa, mas esse não era, seguramente, o horário em que ela ia para o trabalho”, garante o sobrinho.
A família ponderou que Fátima Araújo se estivesse a deslocar para a Loja do Cidadão, visto que já tinha confidenciado à irmã que precisava de lá ir. E essa suspeita também confirmaria o porquê de ter sido encontrada com todos os seus documentos.
O horário não foi o único fator estranho a marcar aquela viagem de autocarro. “Ela foi vista por uma senhora, sua conhecida, que nos informou que, ao sair do autocarro, ela tinha caído e batido com a cabeça.”
“Ainda lhe perguntaram se queria ir ao hospital, mas recusou. Disse que estava bem e seguiu caminho”, lembra Leandro, repetindo aquilo que lhe foi transmitido pela tia e irmã de Fátima, Conceição Oliveira.
Sabendo isto, a família receou que, por Fátima ter epilepsia — apesar de estar controlada há anos com medicação —, a queda tivesse provocado um episódio mais agudo da doença. Mas as hipóteses para o que tinha acontecido só começaram a ser equacionadas alguns dias mais tarde, quando se deu conta de que Fátima tinha desaparecido.
Fátima não era de se ausentar e de não dizer nada a ninguém. Aliás, a mulher era descrita como “extrovertida” e “acarinhada” pelos vizinhos, mesmo os dos bairros próximos do seu. Por isso, quando, durante cerca de cinco dias, não contactou nenhum dos familiares, especialmente a irmã, com quem costumava falar, os vizinhos começaram a estranhar o silêncio.
“No dia 28 de novembro, fomos a casa dela e percebemos que o marido estava lá”, recorda Leandro. “Ele até disse que ela não ia a casa desde quinta-feira“, cinco dias antes. “Mas a minha tia nunca abandonaria o marido.”
Os sobrinhos tinham decidido chamar uma empresa para arrombar a porta e, quando entraram em casa, confirmaram que não havia sinais de Fátima e que a maioria da comida que tinha deixado para Carlos já tinha desaparecido. “Só havia caixas para mais um dia. Além de haver muita comida fora de validade.”
A preocupação cresceu na família, tendo esta decidido dirigir-se a uma esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP), para reportar o desaparecimento.
“O que é que a PSP fez depois? Nada”, garante ao Observador José Oliveira. “Não fez nada. Fez uma difusão [interna] a nível nacional, o registo do desaparecimento e mais nada.” O Observador tentou contactar a PSP para perceber que ações foram realizadas para tentar localizar a mulher, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
José, no entanto, não cruzou os braços. Alguns dias mais tarde, deslocou-se ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa para perceber o que estava a ser feito para encontrar a irmã. “Primeiro, disseram-me que o auto estava numa secção, depois estava noutra. Aquilo foi uma baralhação“, recorda. O Observador também pediu esclarecimentos à Procuradoria-geral da República sobre o caso, ainda sem resposta.
Cansados de forçar as autoridades a agir, os irmãos e sobrinhos de Fátima decidiram ser eles próprios a procurá-la. Além de terem imprimido cartazes, fizeram “buscas em praticamente todos os cantos de Lisboa”.
“Contactámos também entidades de apoio aos sem-abrigo e tivemos a ajuda de uma pessoa que tem um cão pisteiro. Não conseguimos nada”, reforça Leandro. Contudo, a família não estava disposta a desistir e queria respostas.
“O que aconteceu à minha tia? Quem lhe fez isto? Precisamos de respostas”
A 9 de janeiro, José atendeu o telefone com pouca esperança e viu a mesma ser engolida pelo pedido da funcionária para que a família fosse reconhecer o corpo. “Ainda me disseram para aguardar o telefonema, que viria supostamente no dia seguinte. Mas eu não quis esperar e fui logo lá.”
Não só teve de se adiantar, como teve quase de exigir para ver o corpo. “Quando cheguei, quase não me deixavam entrar. Disseram: ‘Oh senhor, o corpo já está em decomposição. Quer ver o quê? Não há nada para ver. Trate já da agência funerária'”, recorda José.
O irmão de Fátima acreditou nas palavras dos funcionários, que disseram ainda que a mulher tinha sido encontrada numa poça de água numa horta em Carnaxide, a pouco mais de dez quilómetros do Saldanha — onde a mulher tinha sido vista pela última vez — e longe de qualquer lugar onde esta fosse com frequência. No entanto, decidiu insistir e acabou por comprovar o que tinha ouvido.
O corpo de Fátima já se encontrava em elevado estado de decomposição. José só conseguiu identificá-la através do maxilar. No entanto, nem todos os familiares conseguiram fazer o mesmo. “A minha irmã acha que não é ela”, explica, sugerindo que a emoção e o choque inicial também possam ter dificultado o reconhecimento.
José e os sobrinhos acabaram por pedir uma segunda autópsia, depois de a primeira ter apresentado um resultado “inconclusivo”. Além de a família não saber exatamente como é que exame foi feito, tem uma suspeita relacionada com as possíveis causas da morte.
“Quando olhei para o corpo e analisei o crânio, vi que faltava uma parte. Sei que costumam cortar para fazer a autópsia, mas aquilo não me parecia cortado. Parecia-me desfeito“, revela José, acrescentando acreditar que a irmã foi vítima de um crime.
“Para nós, o mais importante é obter respostas. O que é que aconteceu à minha tia? Quem lhe fez isto? Por que é que o fizeram? Precisamos de respostas”, apela Leandro.
A procura por respostas levou a família a voltar ao DIAP e também a pedir informações junto da Polícia Judiciária (PJ), que se “comprometeu a verificar todo o processo e a tentar apurar se há ou não um crime”.
“O corpo não vai ser enterrado enquanto não tivermos a certeza de que foi feita uma segunda autópsia. Até termos o relatório e respostas concretas do que aconteceu, não fazemos funeral”, garante o sobrinho.
A família também decidiu que, para já, não vai tentar apurar se houve negligência por parte das autoridades nem tentar imputar responsabilidades. Não vai apresentar qualquer queixa sobre o facto de só ter sido informada de que o corpo estava na morgue 13 dias depois de ele ter ido para lá. Não vai tentar perceber por que razão não foi a PSP a comunicá-lo em primeiro lugar, tendo esta dito inicialmente que não tinha qualquer informação sobre Fátima. Nem vai querer apurar o que levou a PSP a dirigir-se à casa da irmã de Fátima para comunicar que ela tinha sido encontrada, meras horas depois da chamada do IML.
Além da PSP e do DIAP, o Observador questionou também a PJ e o IML, estando não tendo ainda obtido respostas.
“Estamos frustrados com toda a situação. Além de querermos fazer o luto, estamos indignados com a forma como o caso foi conduzido. Enfim…”, termina José, com um suspiro.