Deputados, ministros, eurodeputados. Os socialistas que chegavam ao Centro de Congressos de Lisboa para o jantar de natal da bancada parlamentar do PS, esta terça-feira, davam com um quadro insólito: António Costa e Carlos César atrás de um balcão, à entrada, a aguardar o novo líder. Foram cerca de 20 minutos de espera dos dois camaradas desde os 16 anos, entretidos com a atualidade política, como se não estivessem no centro dela. César até deixou escapar (como se não fosse propositado) que Passos Coelho “é o Pepe da política portuguesa. Ai, estavam aí?”, disse para as quatro câmaras televisivas apontadas a menos de um metro. Depois chegou Pedro Nuno Santos e seguiram para a sala a tentar a união pós-diretas e acertar a estratégia eleitoral, que continua a mesma: direita será com Chega e isso já se nota no “linguajar“.
Demorou a chegar o aperto de mão esperado entre o novo líder e o candidato que derrotou nas eleições internas de sexta e sábado. Na intervenção que fez, Pedro Nuno Santos nunca referiu José Luís Carneiro e ficou sentado mesmo na mesa ao lado daquela onde estava o ministro da Administração Interna, entre Fernando Medina e Carlos Zorrinho, mas de costas para ele. Só no final do jantar é que um Pedro Nuno já em mangas de camisa e sem gravata foi à mesa de Carneiro para um cumprimento — que quase ninguém na sala percebeu. Nos discursos ninguém falou do socialista que teve 36% nas diretas, nem o líder de saída, nem o de entrada, nem mesmo os seus dois apoiantes que intervieram nesta noite: Eurico Brilhante Dias e Augusto Santos Silva.
Na intervenção que fez, Pedro Nuno começou precisamente por explicar onde se rendeu ao costismo, a soar a ajustes de contas vindo da campanha interna. Fez questão de lembrar a Costa — referindo mesmo que não sabia se ele se lembrava — que foi ele mesmo o primeiro presidente de federação a declarar-lhe apoio em 2014. A picardia que reinou nesta campanha das diretas, sobre qual-o-mais-legítimo-herdeiro-do legado-Costa ainda entrou no jantar de Natal da família socialista, com Pedro Nuno a tentar fazer o claim final sobre esse tema. Depois assumiu que os tempos da “geringonça” o “marcaram” e “definiram” como “político e homem”.
“Foi só o início de um percurso fabuloso”, resumiu, lembrando quando as negociações com PCP e Bloco de Esquerda corriam mal, ou bloqueavam com os comunistas e dizia isso mesmo a Costa tendo como resposta: “Ah, então correu muito bem” — explicando-lhe que tinha de saber ler os comunistas, que António Costa já dominava. Guarda “as melhores memórias” da equipa que constituiu no início da era Costa com o primeiro-ministro e Mariana Vieira da Silva. E onde não incluiu mais ninguém, colocando-se quase isolado no berço do costismo.
Afinal, o legado de Costa é para preservar. E Pedro Nuno vai garantindo isso mesmo, depois de ter ouvido o próprio primeiro-ministro em gestão a dizer que o PS “assim vai continuar, para ter bons resultados”. O seu sucessor parece ter compreendido a mensagem, já que acabou a intervenção a dirigir-se diretamente a António Costa para afirmar que começa “um novo ciclo” mas também: “Agora é a nossa vez de agarrar a bandeira e continuar o seu trabalho”.
“Não vamos começar do zero, não precisamos de começar do zero. Temos de continuar o trabalho que foi concretizado”, disse do púlpito com Costa sentado numa mesa à sua frente. “Não vamos iniciar um novo ciclo a partir do zero”, acrescentou colocando esse como trunfo face ao PSD que teria de começar desse mesmo zero. “Não temos de contrariar nada do que fizemos”, afirmou mesmo, garantindo ter uma “dívida infinita e eterna” com António Costa.
Fantasma do Chega continua a ser trunfo
Mas onde convergiram de forma mais clara foi mesmo no ataque ao PSD, que se fez por duas vias, a do passado de Passos Coelho e a do presente de Luís Montenegro. À chegada, Costa tinha dito logo que o “azedume” não lhe merecia comentário, referindo-se às palavras do dia do antigo primeiro-ministro. Depois ainda acrescentou uma ponta de cinismo: “Deve ser muito cansativo estar oito anos, dia após dia, à espera que o diabo chegue e nunca mais chega. Depois sai isto.”
Passos Coelho diz que António Costa se demitiu “por indecente e má figura”
No púlpito, antes do jantar, Costa ainda havia de falar, sem referências diretas, no “clube dos profetas da desgraça” e nos resultados que o PS conseguiu e que “eles [o PSD] gostariam de ter tido” e que foram alcançados “não com as políticas deles, mas com as do PS”. Disse ainda que “a maior derrota que lhes dá toda a amargura do mundo” é que o PS tenha conseguido reduzir a dívida com outras políticas.
Pedro Nuno Santos aproveitou o embalo do ex-líder para lembrar que o PSD queria um “corte adicional nas pensões”, que “não teria investido no SNS” e “deixaria o problema da habitação para o mercado”. “Em vez de um país para todos, teríamos um país de vencidos e vencedores”, resumiu mesmo antes de atirar a Passos: “Nunca percebeu que, há oito anos, a maioria do povo português rejeitou a sua governação.”
Depois passou para o assunto que esteve em todas as intervenções da noite, a deixar claro que é carta em que o PS continua a apostar nesta campanha, depois de ter dado frutos nas legislativas de 2022: demonizar o PSD pela proximidade, seja ela mais ou menos assumida, com o Chega.
No curtíssimo discurso que fez, Augusto Santos Silva tinha falado nesse risco. E antes dele, o líder parlamentar Eurico Brilhante Dias tinha mostrado a sua caderneta de bom aluno ao travar no Parlamento qualquer proposta da bancada de André Ventura nos últimos dois anos. Depois veio Costa que aproveitou o elogiou a Santos Silva para dizer que a direita “não passa a ser racista e xenófoba” pela proximidade com o Chega. “Mas são contaminados no estilo, no vocabulário, na forma de estar na política e degradam a política”, afirmou atirando a essa aproximação que o PS jura já se notar.
Pedro Nuno Santos apontou o mesmo “competir no linguajar” entre o PSD e a extrema-direita. E não é só nas palavras do novo líder, mas também nas do antigo líder, Pedro Passos Coelho. Pedro Nuno Santos disse mesmo que o antecessor de Montenegro aparece apostado num acordo entre o PSD e o Chega.
Já para Montenegro deixa ainda mais uma crítica, à sua “incapacidade de decisão”. E a propósito pegou em dois assuntos seus — e um deles até usado contra si pela oposição: a localização do novo aeroporto de Lisboa e a linha de Alta Velocidade. “Ainda não está a governar e já mostra a sua incapacidade de decisão”, disse Pedro Nuno Santos, falando mesmo numa “profunda incapacidade de decisão” do seu adversário nas eleições que se seguem.
Mas nesta noite, o maior defensor do seu próprio legado foi mesmo António Costa que resumiu os últimos oito anos a um adjetivo: “Foram perturbadores porque começam com a ameaça do diabo e acabam com o prémio Nobel a falar em milagre económico”, disse, referindo-se a Paul Krugman. No entanto, garantiu que a “explicação para o sucesso do PS” está “nas boas políticas”. Para esta campanha das legislativas, Costa não vai em milagres. Pelo sim pelo não, no fim do jantar, levaram todos para casa uma caneca com a frase de Mário Soares impressa: “Só é vencido quem desiste de lutar.”