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AFP/Getty Images

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Fantasma do Apartheid voltou a manchar a África do Sul. E Moçambique ali ao lado

As últimas semanas têm sido marcadas por uma onda xenófoba em África do Sul. Várias pessoas foram assassinadas e milhares desalojados. O medo voltou às ruas de África do Sul — mas também de Moçambique

O barril de pólvora que fervilhava há vários meses nas ruas de várias cidades sul-africanas contra os estrangeiros a viver no país rebentou na semana passada. O epicentro deu-se com grande estrondo em Durban e um pouco por toda a província de Kwanzulo-Natal, e rapidamente espalhou-se até Joanesburgo e outras localidades. No espaço de dias, a onda xenófoba já fez pelo menos seis mortos e milhares de desalojados. Ainda no sábado, foi amplamente divulgado pelo jornal sul africano Sunday Times o assassinato do moçambicano Emmanuel Sithole nas ruas de Alexandra, arredores de Joanesburgo, em plena luz do dia, por um grupo de jovens sul africanos que o perseguiram e o assassinaram com facas.

Este e outros atos de violência têm suscitado uma onda de choque e indignação por todo o mundo. “O governo da Nigéria exorta o governo da África do Sul para assumir as suas responsabilidades e tomar todas as medidas necessárias para impedir a contínua ataques xenófobos e pôr em prática políticas e estruturas para prevenir a recorrência”, disse o ministro nigeriano das Relações Exteriores em comunicado. Patrick Gaspard, o embaixador dos Estados Unidos da América na África do Sul, as Nações Unidas e a União Africana emitiram também declarações a condenar o ambiente que se vive no país.

De Moçambique, um dos país que mais vítimas tem registado, chegam palavras do Presidente Filipe Nyusi: “Assistimos com grande preocupação e angústia o sofrimento dos nossos compatriotas”.

Ainda no sábado, foi amplamente divulgado o assassinato do moçambicano Emmanuel Sithole nas ruas de Alexandra, arredores de Joanesburgo, em plena luz do dia, por um grupo de jovens sul africanos que o perseguiram e o assassinaram com facas.

Violência contra estrangeiros

A tensão xenófoba cresce dia após dia na África do Sul. Frustrados com a falta de oportunidades de emprego no seu país e abraços com uma taxa de desemprego de 24%, milhares de sul-africanos têm-se revoltado contra os estrangeiros, sobretudo os menos qualificados, com atos de violência acusando-os de roubarem-lhes postos de trabalho. Recorde-se que após o fim do Apartheid e com a abolição de políticas contra a imigração em 1994, milhares de africanos de países como Congo, Nigéria, Zimbabwe, Malawi, Moçambique e tantos outros rumaram até à África do Sul na esperança de encontrar melhores condições de vida. Hoje, estima-se que o número de imigrantes no país situe-se entre 2 milhões e 5 milhões numa população de 54 milhões.

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Até hoje encarada como a terra das oportunidades para muitos desses cidadãos, a África do Sul é hoje um inferno. O moçambicano Belmiro Manhiça, que vive na África do Sul há 15 anos, é um desses exemplos. Com mulher e filhos sul-africanos, Manhiça relata ao semanário Savana que foi atacado inocentemente. “O argumento é que somos estrangeiros. Dizem que todos os estrangeiros devem regressar aos seus países de origem.” Essas palavras de ordem foram inicialmente proclamadas a 23 de março por Goodwill Zwelithini, rei dos Zulus, o maior grupo étnico na África do Sul (cerca de 22% da população sul-africana é zulu), e funcionaram como um rastilho de pólvora.

Um cidadão do Zimbabué junto a um dos seus dois carros, depois de um ataque com uma bomba de petróleo.

Zwelithini, cuja autoridade real é reconhecida pela Constituição, acusou o governo sul-africano, liderado desde 2009 por Jacob Zuma, de não proteger os sul-africanos da entrada massiva de imigrantes no país e de estes terem tomado as lojas que eram geridas pelos locais. “Pedimos que todos os estrangeiros façam as malas e regressem aos seus países”, proclamou Zwelithini, referindo ser “inaceitável” que os sul-africanos tenham de competir com pessoas de outros países pelas “poucas oportunidades económicas disponíveis.”

Mas o rei dos Zulus não foi a única personalidade a atirar gasolina para a fogueira. O filho do Presidente Jacob Zuma, Edward, anunciou publicamente o seu apoio ao rei Zwelithini de deportar estrangeiros do país. “Temos de estar cientes de que, como país, estamos sentados sob uma bomba-relógio deles [estrangeiros] que querem assumir o país”, referiu Edward em declarações ao portal noticioso News24. O filho do Presidente declarou ainda que o “governo precisa de limpar todos aqueles que estão ilegais no país. Eles precisam de ir embora.”

O tempo da segregação racial do Apartheid é uma mancha na história da África do Sul e do mundo, que parece pouco dizer a alguns. Os seus nefastos efeitos são hoje relegados para segundo plano e com isso prejudicado milhares de inocentes. É o caso de Manhiça e de tantos outros que diariamente temem pela sua vida. As memórias de um passado recente, como a onda xenófoba que eclodiu na África do Sul em 2008 e que levaram à morte cerca de 67 pessoas. Para se proteger a si e à sua família, Manhiça refere que levou a sua esposa e os seus filhos para casa de um familiar enquanto ele refugiou-se no campo de refugiados de Chatsworth, no sul de Durban. Este é um os três campos montados no país para abrigar os estrangeiros da onda xenófoba.

Imagens de um campo de refugiados na zona de Durban

Retaliação de África

Jacob Zuma, que este fim de semana visitou o campo de Chatsworth após cancelar uma viagem até à Indonésia, já procurou apaziguar os ânimos. Depois de na quinta-feira, em declarações à Assembleia Nacional, ter referido que “nada nem nenhuma razão desculpa os atos de violência”, o Presidente declarou que “estamos certos que os atos de violência vão parar”. Todavia, os episódios de perseguições e de violência na África do Sul assim como os atos de retaliação a sul-africanos em países africanos têm prosseguido. Na Zâmbia, a maior cadeia de rádio Q FM anunciou na sua página de Facebook que irá “apagar por tempo indefinido a reprodução de música de artistas sul-africanos em protesto contra os ataques xenófobos sobre estrangeiros no país.” No Zimbabwe e no Malawi têm havido ondas de protesto de grupos de cidadãos para boicotar o consumo de produtos sul-africanos.

O filho do Presidente Jacob Zuma, Edward, anunciou publicamente o seu apoio ao rei Zwelithini de deportar estrangeiros do país. “Temos de estar cientes de que, como país, estamos sentados sob uma bomba-relógio deles [estrangeiros] que querem assumir o país”

De Moçambique, que no ano passado fez depender mais de um terço das suas importações do país de Mandela, ouvem-se vozes para se manter a calma mas também a promover o boicote a produtos sul-africanos. Steward Sukuma é uma dessas vozes. Através da sua página do Facebook, o artista moçambicano apelou a todos os seus concidadãos para não retaliarem com violência. “Vamos mostrar que a nossa civilidade ultrapassa todo o ódio que eles têm porque somos melhores”. O cantor salienta que o caminho de protesto pode passar por um boicote a produtos sul-africanos. “Se deixarmos de consumir produtos sul-africanos já é uma pressão forte sobre o governo da África do Sul no sentido de reagir de uma forma que proteja as vítimas.”

O mesmo apelo à não violência foi feito pelo primeiro-ministro moçambicano Carlos Agostinho do Rosário. O governante apelou a todos os moçambicanos a não responderem com atos de violência. “Apelamos para que o povo moçambicano se aparte de qualquer ato que atente contra segurança de qualquer cidadão nacional ou estrangeiro que resida, trabalhe ou esteja por outros motivos em território moçambicano.” No entanto, as suas palavras não foram suficientes para evitar um conjunto de atos de retaliação mais violentos nos últimos dias.

Dois autocarros da transportadora sul-africana Translux foram atacados na sexta-feira por desconhecidos no distrito de Moamba, no sul de Moçambique, numa ação aparentemente relacionada com a xenofobia na África do Sul, disse à Lusa um membro da tripulação. “O grupo tinha catanas, paus e facas. Eles gritavam moçambicanos voltem e atingiram o carro que estava à nossa frente, destruindo o vidro da frente. Eles queriam agredir-nos, sorte nossa foi que o motorista foi flexível e fugiu rapidamente”, disse Marta Ferreira.

Na estrada nacional N4, troço que liga Moçambique à África do Sul, próximo da fronteira de Ressano Garcia, foram colocadas barricadas que provocaram bloqueios à circulação de viaturas com matrícula sul-africana. Também na zona de Ressano Garcia, trabalhadores moçambicanos na central térmica instalada nessa localidade, paralisaram as actividades exigindo a expulsão dos colegas sul-africanos. Na quinta-feira, a empresa sul-africana Kents, que presta serviços à mineradora brasileira Vale, fechou as portas e os mais de 120 sul-africanos regressaram ao seu país. Em Inhassoro, na província de Inhambane, um grupo de operários moçambicanos da Sasol juntou-se à porta das instalações da empresa no complexo e exploração de gás natural de Pande-Temane para gritar palavras de ordem no sentido de expulsar os sul-africanos que ai trabalham.

O resultado desse episódio veio mais tarde com a Sasol a anunciar a suspensão do contrato com Moçambique por medo da ocorrência de atos de violência sobre os seus trabalhadores. Cerca de 200 trabalhadores sul-africanos abandonaram as instalações da empresa. No distrito de Moma, região onde opera a irlandesa Kenmare na extração de areias pesadas, a comunidade local juntou-se perto das instalações da empresa para exigir a saída de todos os sul-africanos do país.

Esperança no futuro

Para já, alguns países têm promovido ações com o intuito de ajudarem os seus cidadãos que estão a ser vítimas de atos xenófobos na África do Sul. O Malawi e a Somália desenharam planos de repatriação, a Zâmbia, Uganda, Quénia e Botswana referiram que estão a acompanhar de perto toda a situação e que caso seja preciso irão retirar os seus cidadãos do país. Em Moçambique, o primeiro-ministro classificou como “muito triste e chocante a situação” de xenofobia que se tem vivido na África do Sul e garantiu que o governo está a “tomar medidas para apoiar os nossos irmãos que estão na África do Sul”.

O governo montou em Boane, a 40 quilómetros de Maputo, um “posto de acomodação transitório”, que recebeu este sábado os primeiros 107 moçambicanos que fugiram da onda xenófoba

Foi com esse propósito que o governo montou em Boane, a 40 quilómetros de Maputo, um “posto de acomodação transitório”, que recebeu este sábado os primeiros 107 moçambicanos que fugiram da onda xenófoba, e ainda a disponibilização de transporte “desde África do Sul até à porta da casa dos nossos irmãos, particularmente aqueles que se deslocam para as províncias e seguidamente para os distritos”, referiu o governante.

“Faremos todo o possível para garantir que não tenhamos a necessidade de, no futuro, fazer este humilde pedido de desculpas inspirado no nosso genuíno remorso.” Foi assim que em 2008 o então presidente sul-africano Thabo Mbeki se dirigiu ao país e à comunidade internacional depois dos atos de violência xenófoba que levaram à morte centenas de pessoas. Parece que a memória tem rédea curta. Mas talvez haja esperança. Depois de uma manifestação em Durban que juntou mais de 10 mil pessoas para dizer “não à xenofobia” na quarta-feira ou, numa dimensão mais pequena, a que ocorreu este sábado em Maputo, e de muitas outras manifestações de repúdio a toda esta situação por vários pontos do globo, os primeiros passos no bom sentido começam a ser dados.

Zwelithini pressionado pela comunidade internacional e por alguns grupos sul-africanos, acabou por agendar um Imbizo (fórum de discussão) com todos os líderes tradicionais da província de Kwazulu-Natal na passada segunda-feira para discutir a crise de violência xenófoba que se tem vivido no país. No final do encontro, apesar de não pedir desculpas pelas palavras proferidas em Março, o rei acabou por rejeitar o incitamento à xenofobia no país. “Esta violência direta contra os nossos irmãos e irmãs é vergonhosa”, disse Zwelithini. Apesar de positivo, o passo de sensatez do rei não chega. É preciso mais. Acima de tudo, é fundamental que sejam tomadas “medidas que funcionam a longo prazo”, medidas urgentes de educação cívica, como evoca Mia Couto na sua carta aberta ao Presidente sul-africano, para que atos bárbaros como o que se vivem atualmente não voltem a acontecer.

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