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É um dado histórico. Mais um a juntar aos muitos recordes e impactos “nunca vistos” trazidos pelo Covid-19 e pelas medidas de combate à pandemia que passam nesta fase acima de tudo pela paragem de vastos setores da economia. A começar pelos transportes e com um efeito direto no mercado do petróleo e dos combustíveis. A gasolina está quase ao mesmo preço do gasóleo.
O primeiro choque foi sentido na aviação, onde a procura de jetfuel quase desapareceu, mas já todo o setor dos transportes se ressente da queda das viagens. E com as restrições a apertar mais as deslocações particulares e as viagens não essenciais, de lazer, a procura da gasolina caiu mais do que a do gasóleo e isso vê-se no preço.
Desde o valor máximo por litro registado este ano, ainda em janeiro, o preço final do gasóleo simples caiu cerca de 20 cêntimos por litro, estando nos 1,229 euro, enquanto a gasolina simples no mesmo período desvalorizou 27 cêntimos e custava no início da semana passada 1,260 euros por litro. Apenas três cêntimos separam os dois combustíveis, apesar de a gasolina ter uma carga fiscal superior ao gasóleo. A diferença na desvalorização dos dois produtos é ainda mais expressiva se considerarmos a queda do preço antes de impostos. Desde meados de janeiro, a gasolina caiu 41%, enquanto o diesel perdeu 27%.
Como se explica este diferença, numa altura em que a gasolina até estava a recuperar terreno com a queda nas vendas de automóveis a gasóleo?
António Comprido, secretário-geral da APETRO (Associação das Empresas Petrolíferas), assinala que a gasolina é o combustível usado sobretudo por veículos de passageiros e estas viagens foram as mais afetadas pelas medidas de combate ao vírus. Isto está a acontecer na Europa e nos Estados Unidos, para onde as refinarias europeias exportavam uma boa parte do produto. Por isso, a queda dos preços sente-se mais na gasolina do que no gasóleo, que é usado nos transportes de mercadorias e frotas empresariais que ainda circulam.
A descida vertiginosa nos preços, inédita num espaço de curto de tempo, tem também um efeito perverso ao nível da fiscalidade, na medida em que faz disparar o peso dos impostos sobre os combustíveis.
Estado nunca cobrou tanto por litro, mas vai perder muita receita
No gasóleo, os impostos passaram a representar 60% do preço final quando em janeiro correspondiam a 53%. Na gasolina, a fatia que vai para o Estado passou a ser de 72% do que é pago pelos automobilistas quanto antes era de 60%. Esta tendência foi agravada em fevereiro, com o aumento da taxa de carbono em 2,5 cêntimos por litro, mas que acabou por ser completamente abafado no preço final pela baixa dos preços antes de impostos. Ou seja, ninguém deu pela subida da carga fiscal.
Mas se o Estado nunca cobrou tanto em termos relativos por litro de combustível vendido, também é verdade que irá arrecadar muito menos receita fiscal. E por duas razões. Uma foi muito falada em 2016 quando os socialistas, recém-chegados ao Governo carregaram no imposto petrolífero, mais cinco cêntimos por litro, para compensar a perda de receita no IVA em resultado da descida dos preços.
Estado cobrou mais em imposto petrolífero do que perdeu em IVA e ganhou 250 milhões
Agora o grande rombo na receita fiscal virá da queda histórica da procura. O Estado vai receber muito menos, não só porque os preços estão em queda e o IVA encolhe quando isso acontece, mas sobretudo por causa do IVA e do imposto petrolífero, que deixará de cobrar por cada litro que deixa de ser vendido.
Não há ainda dados oficiais sobre o volume da queda de procura, mas já há sinais. Os indicadores divulgados pela Galp para o primeiro trimestre apontam para uma baixa de 13% na venda de produtos petrolíferos, mas os dados mais negativos serão os de abril. Há quem fale em quedas de 50%, mas com o apertar das medidas de restrição à circulação rodoviária, a procura de combustíveis ainda deverá cair mais. António Comprido confirma só quedas enormes da procura em Portugal e na Europa.
Um dado simples parece confirmar esta quebra na procura: as autoestradas estão vazias. Informação avançada pelo Ministério das Infraestrutura apontava para quedas da circulação automóvel na casa dos 85% e a Brisa já comunicou que a pandemia é um caso de força maior, o que evitará penalizações por eventuais incumprimentos contratuais, como no futuro poderá permitir um pedido de compensação financeira ao Estado.
Brisa comunica caso de força maior por causa de pandemia o que pode abrir a porta a compensações
Mas se o Estado e as concessionárias vão perder e muito, as empresas do setor também estão a ficar aflitas, sobretudo as refinadoras como a Galp que já não sabem o que fazer a tanta produção que não escoam.
Sem escoar produto e com armazenamento no limite, refinarias podem parar
O aparelho de refinação está calibrado para produzir a partir de um barril de petróleo uma cerca quantidade de cada produto refinado – betumes, gasóleo, gasolina ou jet – e é difícil alterar esse mix sem custos, mesmo que fosse vantajoso aumentar produção de um refinado em detrimento de outro. Mas a quebra na procura é generalizada.
As empresas estão a sentir dificuldades crescentes para armazenar produtos refinados, até porque estamos a falar de produtos altamente inflamáveis com condições de segurança muito exigentes. Para além de estarem confrontadas com o afundar da procura nos mercados domésticos, não têm nenhuma alternativa para escoar os refinados, porque todas as economias estão em paragem forçada. Até os Estados Unidos, que são um grande consumidor da gasolina europeia e um dos grandes clientes das exportações de Sines, estão a sentir esse efeito.
Galp suspendeu produção de combustíveis em Matosinhos. Sines pode parar se armazenamento esgotar
Ainda não há notícias de refinarias fechadas na Europa, mas isso poderá ter de acontecer quando a capacidade de armazenamento se esgotar. Para já, a Galp fechou a unidade de refinação do complexo petroquímico de Matosinhos. Sines, a grande refinaria portuguesa, continua a operar, mas poderá não o conseguir fazer por muito mais tempo, uma vez que a capacidade de armazenamento está a esgotar-se. António Costa Silva, ex-presidente da Partex e especialista no setor petrolífero, alerta ainda para o esgotamento próximo da capacidade de armazenamento flutuante, que existe nos petroleiros.
António Comprido lembra que as paragens destas instalações são complexas têm várias implicações do ponto de vista de segurança, tem de ser planeadas com tempo, Por outro lado ninguém quer anunciar fechos de refinarias porque isso é informação sensível em termos comerciais. O primeiro a fechar vai beneficiar os que ficam abertos.
Preços. Descida é que foi em flecha e a subida será lenta
O secretário-geral da APETRO afasta o cenário de uma retoma rápida no consumo e nos preços dos combustíveis. Desta vez pode acontecer o contrário daquela máxima do setor petrolífero segundo a qual os preços sobem em flecha e descem como uma pluma (devagar). O que aconteceu foi o inverso, uma descida em flecha que deverá ser seguida por uma subida gradual, mas lenta. Isto porque os indicadores fundamentais do mercado do lado da procura estão profundamente abalados, a começar no petróleo.
A matéria prima tem vindo a afundar também por efeito da guerra de preços conduzida pela Arábia Saudita num braço-de-ferro com a Rússia. Mas mesmo que os grandes produtores cheguem a um acordo para cortar a oferta e conter os preços, a procura mundial deprimida não permitirá uma grande retoma nas cotações, explica António Comprido.
António Costa e Silva, ex-presidente da Partex e especialista em petróleo, assinala que já antes da crise do Covid a procura estava a arrefecer, porque a economia chinesa estava a travar. A China é o maior importador de petróleo compra cerca de seis milhões de barris por dia. A situação foi agravada depois do impasse na reunião do dia 6 de março em que a Arábia Saudita e o seu “príncipe aventureiro” decidiram, perante a falta de acordo com a Rússia, aumentar a produção em vez de a cortar.
“O jogo da roleta russa poderia funcionar (já aconteceu no passado, com uma economia a crescer), mas agora “é irracional” porque a procura está em forte travagem, adianta Costa e Silva. A queda de consumo atingiu já os 25 milhões de barris diários, cerca de 25% do total, e as economias continuam a parar. Os países do golfo conseguem aguentar porque têm custos de produção muito baixos. A Rússia também. O ex-presidente da Partex refere que setor petrolífero russo é muito flexível, em resposta às sanções internacionais de que foi alvo. Quando os preços e as receitas caem, os impostos cobrados sobre a indústria ajustam automaticamente. E o rublo, ao contrário das moedas do golfo, está em freefloat, pode desvalorizar o que torna as exportações russas mais competitivas.
Os Estados Unidos, que tentaram durante anos levar ao colapso da OPEP (Organização dos Países Produtores de Petróleo) e do cartel no petróleo, fizeram tudo para forçar um acordo que trave a queda de preços. Já este domingo foi alcançado um acordo entre a OPEP e outros grandes produtores para cortarem a produção em 9,7 milhões de barris diários.
O corte anunciado representa um décimo do fornecimento global, e é um acordo sem precedentes que pode ajudar a salvar o mercado petrolífero, milhares de produtores e as economias dos países emergentes que dependem das receitas do crude, para além da indústria de shale gas americana.
Preços baixos, cortes no investimento. E quando a procura voltar?
Mesmo com um acordo, a baixa de preços terá efeito a longo prazo na oferta futura, avisa António Comprido. “Pode ser uma faca de dois gumes” à medida que as petrolíferas anunciam cortes no investimento em exploração e produção que poderão levar à redução da oferta quando a retoma estiver em marcha.
António Costa e Silva assinala que estes “são movimentos cíclicos no mercado do petróleo. Com descidas de preços desta dimensão, a indústria vai responder com cortes no investimento que já estão a ser anunciados por petrolíferas em todo o mundo”.
A redução do investimento em exploração vai, a prazo, reduzir a produção. E o que poderá acontecer aos preços quando a retoma na procura acelerar? Uma escalada sustentada das cotações do petróleo foi o resultado no passado, mas as hipóteses de isso se repetir são hoje menores. Os dois especialistas afastam uma réplica do que aconteceu em 2007 e 2008, quando o efeito combinado do aumento da procura mundial e os cortes no investimento em produção feitos anos antes, fez o preço do petróleo subir a níveis nunca vistos, na casa dos 140 dólares por barril.
Por um lado, a procura mundial de petróleo já não estava a crescer, estava a estabilizar ou até mesmo a cair, em resposta ao esforço político e económico para acelerar a transição energética para energia limpa. Mas igualmente relevante foi a mudança de paradigma na indústria petrolífera, destaca António Costa e Silva.
O especialista explica como a produção em larga escala do shale gas nos Estados Unidos “mudou o paradigma desde 2008”. Os Estados Unidos são hoje o maior produtor de petróleo mundial com cerca de 12,5 milhões de barris por dia. Foi uma revolução que começou ainda com Obama na presidência e permitiu ao país tornar-se independente de fontes tradicionais de petróleo. E em grande parte “é isso que explica o desengajamento americano em relação ao Médio Oriente”, sublinha.
“O shale gas foi uma ideia simples que mudou o mundo“, sintetiza Costa e Silva. Esta forma de produção resulta da extração, através da fraturação hidráulica (fracking), do petróleo e do gás natural às rochas onde estão depositados os hidrocarbonetos. Os EUA têm três grandes bacias de shale gas e se a exploração destas reservas perde competitividade com o petróleo barato, quando a procura voltar é rápido retomar também a sua produção, diz António Comprido. A oferta mundial já não está dependente dos grandes projetos de exploração que demoram anos a desenvolver, como as plataformas petrolíferas em águas profundas.
Petróleo barato versus transição para energia verde
António Costa e Silva antecipa que as cotações do petróleo devem permanecer num patamar inferior ao dos últimos anos. “Vamos ver grande volatilidade nas cotações nos próximos tempos e quando for alcançado o equilíbrio, o que pode demorar anos (ou pelo menos um ano), os preços devem estabilizar num patamar dos 25 a 30 dólares”.
O petróleo baixo pode dificultar a penetração de tecnologias alternativas e renováveis, mais caras? É um risco, mas o especialista acredita que é possível, apesar deste quadro, acelerar a transição energética, porque o mundo “não pode continuar a viver com base num modelo de exploração intensiva das matérias primas”.
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Mas para contornar o impacto do petróleo barato, terão de ser os estados/governos através de uma intervenção pública a puxar por essa mudança, defende Costa e Silva. O mercado tal como está “não resolve nada”. Caberá às instituições europeias, no caso de se avançar com um novo plano Marshal para a economia, ter um papel central nesse empurrão. O que passa por direcionar os apoios financeiros para as infraestruturas digitais e energéticas que permitam potenciar as mudanças para um mundo mais sustentável.
Os carros elétricos vão ganhar força nas deslocações diárias, sobretudo dentro das cidades, mas o petróleo não vai desaparecer, afirma ainda Costa e Silva. Vai continuar a ser usado sobretudo no sistema de transportes. Irá perder peso dos atuais mais de 90%, mas continuará a ser fundamental para meios como a navegação e a aviação onde já existem algumas experiências, mas ainda não há uma real alternativa aos combustíveis fósseis.