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The Kherson International Airport became a "graveyard of military vehicles" after Russian retreat
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Um mural de homenagem ao general Valeri Zaluzhni surgiu recentemente no aeroporto de Kherson, cidade recém-libertada pelos ucranianos

Anadolu Agency via Getty Images

Um mural de homenagem ao general Valeri Zaluzhni surgiu recentemente no aeroporto de Kherson, cidade recém-libertada pelos ucranianos

Anadolu Agency via Getty Images

Quem são os generais ucranianos que se tornaram heróis: formados na era soviética, mas adeptos do modelo da NATO

Valeri Zaluzhni e Oleksandr Syrsky são dois nomes sonantes entre os ucranianos de hoje: cresceram na União Soviética, mas voltaram-se para Ocidente e hoje são generais heróicos na Ucrânia.

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Independentemente do lugar do mundo que se visite, é difícil chegar a uma cidade e não encontrar um ou mais monumentos militares. Podem estar relacionados com conflitos regionais (como o monumento aos veteranos do Ultramar, em Lisboa, ou as centenas de monumentos sobre a Guerra Civil americana, por todo o território dos EUA) ou mundiais (como os múltiplos monumentos e memoriais relacionados com a Segunda Guerra Mundial que se encontram por toda a Europa). Podem homenagear as vítimas, como o memorial do Holocausto em Berlim; os soldados mortos em combate, como os vários monumentos ao soldado desconhecido; ou grandes líderes militares que se transformaram em heróis nacionais ou locais, como a estátua de D. Afonso Henriques empunhando a espada, em Guimarães, ou a menos célebre estátua do General Silveira, em Chaves, homenageando aquele oficial português que se destacou nas guerras napoleónicas.

Num artigo publicado na semana passada, o enviado do jornal espanhol El País à guerra na Ucrânia, Cristian Segura, resumia uma evidência numa única frase: “As guerras são um cenário prolífico em heróis.” É nos momentos de conflito e tensão, sobretudo durante os combates pela independência e pela liberdade, que nascem muitos dos grandes heróis de uma nação: figuras com maior peso mítico, como Viriato, ou mais concretas, como os capitães de Abril. Para a Ucrânia, cuja independência da União Soviética remonta à década de 1990 e que tem passado as últimas décadas em conflito mais ou menos aberto com a Rússia, esse momento fundador vive-se precisamente agora. E é, por isso, agora que a Ucrânia está a ver nascer alguns dos heróis que vai guardar nos seus manuais de história.

Um deles é óbvio: Volodymyr Zelensky, o comediante que virou Presidente e que, depois da invasão russa, se manteve firme em Kiev e personificou o espírito de resistência do povo ucraniano. Louvado por todo o mundo como um líder carismático improvável que foi capaz de manter o país unido perante a agressão estrangeira, não restam dúvidas de que Zelensky terá o seu nome inscrito na história da Ucrânia.

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Mas um herói nunca vem só. Os últimos meses fizeram subir à ribalta um punhado de generais-estrela que têm comandado diferentes partes da defesa ucraniana e que já estão a adquirir informalmente um estatuto de heróis nacionais — e que, com toda a probabilidade, também verão os seus nomes inscritos nos manuais de história da Ucrânia. De acordo com a imprensa internacional com presença no país europeu, já começa a ser possível traçar um perfil destes novos heróis ucranianos: são homens, na casa dos 50, que apesar de terem nascido e crescido na União Soviética fizeram a sua formação militar já numa Ucrânia independente sob a influência das práticas militares da NATO. Foram colocados em posições de topo da hierarquia militar ucraniana — e, hoje, essas escolhas começaram a compensar.

Entre os generais ucranianos que subiram ao estatuto de heróis nacionais nos últimos meses, há dois nomes que saltam claramente à vista: Valeri Zaluzhni, comandante supremo das Forças Armadas da Ucrânia, que antecipou a invasão russa e preparou os militares ucranianos para um cenário dramático; e Oleksandr Syrsky, comandante do Exército ucraniano, que liderou no terreno a defesa de Kiev e a contraofensiva de Kharkiv. Mas, afinal, o que se sabe sobre estes novos heróis ucranianos?

O “general de ferro” que admira a ciência militar soviética, mas está a vencê-la com as táticas ocidentais

De todos os heróis militares ucranianos desta guerra, o general Valeri Zaluzhni é seguramente o mais celebrado e aclamado de todos. Comandante supremo das Forças Armadas Ucranianas desde julho de 2021, Zaluzhni é o braço direito de Volodymyr Zelensky para os assuntos militares. Símbolo de uma nova geração de militares que nasceram na União Soviética (e que, por isso, conhecem bem as práticas bélicas de Moscovo), mas que já se formaram com os olhos virados para o Ocidente, Zaluzhni estudou as práticas militares americanas e da NATO.

Durante os últimos anos anos, comandou as tropas ucranianas em Donbass, na guerra com os separatistas pró-russos. Ao contrário dos mais céticos, Zaluzhni sabia que uma invasão do território ucraniano pela Rússia era uma inevitabilidade e preparou secretamente as forças de Kiev para esse momento — uma antecipação que viria a revelar-se vital para a defesa ucraniana. Foi ele quem coordenou as operações defensivas que permitiram evitar a tomada de Kiev e que continua a assegurar a unidade da contraofensiva militar ucraniana. A seu favor tem um conhecimento profundo das práticas militares russas, que lhe permite antecipar os movimentos das tropas de Moscovo, aliado a um conjunto de práticas militares ocidentais, incluindo uma maior autonomia concedida às chefias intermédias no terreno, que dá mais flexibilidade às tropas para se adaptarem a diferentes situações sem a rigidez da hierarquia clássica do modelo soviético.

Remembrance event for Debaltseve defenders in Kyiv

Valeri Zaluzhni, comandante supremo das Forças Armadas da Ucrânia, antecipou a invasão russa e preparou os militares ucranianos para um cenário dramático

Future Publishing via Getty Imag

Mas Zaluzhni nem sempre quis ser militar — e durante a carreira não achou que estivesse talhado para altos voos. Segundo a revista Time, que o entrevistou em junho deste ano, até a nomeação para comandante supremo das Forças Armadas Ucranianas lhe pareceu uma brincadeira.

“Quando não está de uniforme, o general prefere t-shirts e calções, que condizem com o seu sentido de humor ligeiro”, descreveu a publicação, contando o episódio da nomeação de Zaluzhni. Era o verão de 2021 e o militar estava a beber uma cerveja na festa de aniversário da sua mulher quando recebeu um telefonema de Zelensky com o convite para ocupar o cargo mais elevado das Forças Armadas Ucranianas. “Como assim?”, terá respondido Zaluzhni. “Várias vezes, olhei para trás e perguntei-me a mim mesmo como é que me meti nisto”, contou o general à revista americana.

A biografia de Zaluzhni cruza-se intimamente com o processo de declínio da União Soviética e independência da Ucrânia. Ainda segundo a Time, Zaluzhni nasceu em 1973 numa guarnição militar soviética no norte da Ucrânia e, na juventude, quis ser comediante. Contudo, acabaria por seguir o exemplo da família e ingressar na carreira militar. A sua entrada na academia militar coincidiu com o colapso da União Soviética e com a crise de independência ucraniana que se seguiu, no início da década de 1990. E foi nessa fase que Zaluzhni se afirmou como um símbolo de uma fase de transição entre os modelos militares soviéticos (em que tinha sido inicialmente treinado) e os novos ventos que sopravam do Ocidente.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre um erro na noticia do míssil que caiu na Polónia e que podia ter provocado uma resposta da NATO. 

A verdade e a guerra são compatíveis?

Depois de fazer uma tese de mestrado sobre a hierarquia militar dos Estados Unidos, Zaluzhni percebeu que a tropa ucraniana ainda dependia excessivamente dos modelos soviéticos, com uma hierarquia rígida em que as decisões vinham de cima — frequentemente do poder político — e em que a margem de autonomia das chefias intermédias no terreno era pouca ou nenhuma. Essa constatação levou-o a procurar implementar as práticas ocidentais, inspiradas diretamente na lógica militar da NATO, nos vários cargos de comando pelos quais foi passando ao longo da sua carreira.

Zaluzhni chegou a um ponto alto no seu percurso militar quando assumiu o comando das forças ucranianas na região leste do país, na guerra contra os separatistas pró-russos, apoiados por Moscovo, que se arrastava desde 2014 — ano em que Moscovo anexou unilateralmente a península da Crimeia na sequência da destituição do antigo Presidente ucraniano Viktor Yanukovych, o líder pró-russo que recuara na assinatura de um acordo comercial com a União Europeia, espoletando violentos protestos pró-Europa em Kiev que culminaram na revolução de Maidan e na saída de Yanukovych.

Como escrevia este verão a revista Time, nessas funções Zaluzhni pôde aplicar com grande liberdade técnicas militares mais ocidentais, dando mais autonomia aos comandantes dos batalhões no teatro de operações e encorajando os líderes intermédios a participarem ativamente no processo de tomada de decisão. “Ao contrário do que acontecia no exército russo, os sargentos não seriam ‘bodes expiatórios’, mas assistentes reais, destinados a criar um fluxo de talento militar”, resumiu a revista americana.

"Tinha medo que perdêssemos o elemento surpresa. Precisávamos que o adversário acreditasse que estávamos todos nas nossas bases habituais, a fumar erva, a ver televisão e a publicar no Facebook."
Valeri Zaluzhni, comandante supremo das Forças Armadas da Ucrânia

Nesses anos, que lhe deram uma grande experiência de terreno, Zaluzhni não esqueceu as táticas militares russas, que sempre admirou desde a sua formação soviética. Na entrevista, o general explicou mesmo que foi “criado na doutrina militar russa” e garantiu que já leu todos os livros escritos pelo general russo Valery Gerasimov, o respeitado chefe das forças armadas russas: “É o homem mais inteligente.”

Sem nunca menosprezar a capacidade militar russa, Zaluzhni, que durante sete anos coordenou a tropa ucraniana no leste do país, foi o escolhido por Volodymyr Zelensky em julho de 2021 para assumir a liderança das forças armadas ucranianas. Nessa altura, o general era um dos homens mais conhecedores dos complexos contornos do histórico confronto militar entre a Rússia e a Ucrânia — e, ao contrário dos mais otimistas (Zelensky incluído), Zaluzhni acreditava que a invasão russa do território ucraniano era uma inevitabilidade.

“Não há como confundir o cheiro da guerra, e ele já estava no ar”, disse Zaluzhni, na grande entrevista que deu à Time, em que recordou também o dia em que berrou, furioso, com os comandantes das forças armadas por não levarem a sério a urgência dos treinos e simulacros. Era o início de fevereiro de 2022: “Expliquei-lhes que se não conseguissem fazer isto, as consequências não seriam apenas a perda das nossas vidas, mas também a perda do nosso país.” De seguida, Zaluzhni ordenou que, por todo o país, as unidades militares ucranianas fossem deslocadas para pontos estratégicos, mas não revelou os detalhes dos seus planos: “Tinha medo que perdêssemos o elemento surpresa. Precisávamos que o adversário acreditasse que estávamos todos nas nossas bases habituais, a fumar erva, a ver televisão e a publicar no Facebook.”

A antecipação de Zaluzhni revelou-se vital para a defesa da Ucrânia: as forças russas não conseguiram levar a cabo o seu objetivo inicial de tomar o país em poucos dias, não só porque a população ucraniana não os recebeu de braços abertos, mas sobretudo porque enfrentaram uma resistência inesperada das defesas ucranianas. Ao contrário do que seria intuitivo, as forças armadas ucranianas permitiram às colunas militares russas avançarem bastante no interior do território e depois atacaram não só a dianteira, mas também a retaguarda, eliminando linhas de reabastecimento. Em poucos dias, a Rússia ainda não tinha conseguido capturar os pontos estratégicos do país e a capital, Kiev, permanecia de pé. Rapidamente, a invasão russa foi caracterizada como um fracasso — e o preço a pagar foi o arrastar do conflito no tempo.

O jornal americano Politico descreve Zaluzhni como o “general de ferro” da Ucrânia. “Se só puder ser dado crédito a uma pessoa pelos surpreendentes sucessos militares da Ucrânia até agora — proteger a capital, Kiev, e manter a maioria das outras grandes cidades durante o ataque — é Zaluzhni”, escreveu recentemente o jornal, salientando, porém, que, ao contrário de alguns generais-celebridades americanos, Zaluzhni optou por não assumir o papel de estrela, deixando a ribalta para Volodymyr Zelensky.

Zaluzhni é "um representante da nova geração das forças armadas ucranianas", em que “as táticas e o treino da NATO foram ajustados à realidade ucraniana".
Oleksiy Melnyk, investigador na área da segurança internacional num think-tank de Kiev

Ao Politico, o antigo militar ucraniano Oleksiy Melnyk, hoje investigador na área da segurança internacional num think-tank de Kiev, descreve Zaluzhni como “um representante da nova geração das forças armadas ucranianas”. O especialista acrescentou ainda que “as táticas e o treino da NATO foram ajustados à realidade ucraniana”, o que levou a um “resultado impressionante”. Para Melnyk, a diferença de mentalidade fica bem visível em casos como o da enorme coluna militar que a Rússia dirigiu em março para Kiev com o objetivo de tomar o controlo da capital ucraniana, mas sem sucesso: “Vimos os russos a movimentarem aquelas colunas gigantes. Parecem táticas da Segunda Guerra Mundial.”

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No mesmo sentido, Mark Savchuk, analista político e membro do departamento de luta contra a corrupção da Ucrânia, explicou ao jornal espanhol El País que “esta geração [de militares] já conta com oito anos de aprendizagem na frente de combate, a grande escala, e isso é algo que nenhum outro exército do mundo pode dizer”. Para Savchuk, Zaluzhni é de facto representativo de uma nova mentalidade militar: “Ao contrário dos generais russos, [os ucranianos] demonstraram que são militares e que mandam nas Forças Armadas.”

Estas novas táticas militares, a que Zaluzhni deu corpo, foram particularmente visíveis nas últimas semanas, desde o início de setembro, na grande contraofensiva ucraniana que permitiu a Kiev recuperar largas porções do território ocupado pelos russos. Nessa altura, numa fase da guerra em que as altas figuras do regime ucraniano deixavam sonoros avisos de que em breve levariam a cabo uma grande contraofensiva para recuperar o território ocupado em Kherson, na região sul do país — o que levou a Rússia a movimentar uma grande parte das suas unidades militares mais importantes para sul —, as forças ucranianas lançaram uma contraofensiva surpresa no nordeste do país, na região de Kharkiv, apanhando os russos desprevenidos e obrigando-os a fugir. Em poucos dias, a Ucrânia recuperou milhares de quilómetros quadrados de território. Como escreveu na altura o Observador, Kiev teve mais êxitos militares em cinco dias do que Moscovo em cinco meses — tudo graças às táticas militares modernas implementadas por uma nova geração de comandantes ucranianos.

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Além disso, como explicaria à revista Time o ministro da Defesa ucraniano, Oleksiy Reznikov, a diferença de mentalidade militar entre a Rússia e a Ucrânia permitiu aos militares ucranianos aproveitarem-se do caos gerado nessa fase do combate: enquanto “o exército ucraniano tem a liberdade para tomar decisões a qualquer nível”, como sucede com os exércitos da NATO, os russos têm de obedecer a uma cadeia hierárquica rígida que, naquele momento de aflição, não foi eficaz. Mas, além de Zaluzhni, quem se destacou nesta operação ofensiva surpresa no leste da Ucrânia foi o coronel general Oleksandr Syrsky, o comandante do Exército — outro dos heróis contemporâneos do povo ucraniano.

O estudioso discreto que defendeu Kiev e enganou os russos em Kharkiv

Em setembro, num curto artigo de análise às últimas reuniões do conselho de guerra de Volodymyr Zelensky, o correspondente do jornal italiano La Repubblica na Ucrânia, Daniele Raineri, resumia a razão óbvia pela qual Oleksandr Syrsky, um discreto general de 57 anos, era presença constante naqueles encontros de alto nível: “Syrsky é o ideólogo do plano que levou os russos a acreditarem que a próxima batalha seria seguramente no sul da Ucrânia e os convenceu de que seria boa ideia mover para lá 25 mil homens, deixando o leste desprotegido.”

Como escreveu em setembro o jornal ucraniano em língua inglesa Kyiv Post, citando o Estado Maior das Forças Armadas da Ucrânia, “pode ser afirmado com confiança que o coronel general Oleksandr Syrsky comandou a contraofensiva bem sucedida na frente de Kharkiv”. A operação de contraofensiva que em setembro deste ano, 200 dias depois do início da guerra, enganou os russos e permitiu às forças ucranianas reconquistar dezenas de cidades e milhares de quilómetros quadrados de território na região de Kharkiv terá, efetivamente, nascido da cabeça de Syrsky — o homem que, no início da guerra, já tinha feito sucesso ao coordenar no terreno as linhas defensivas de Kiev, impedindo a capitulação da cidade.

Com 57 anos, este general começou a sua formação militar ainda no tempo da Ucrânia soviética — mas, à semelhança de Valeri Zaluzhni, também fez grande parte da sua carreira bélica já com os olhos voltados para o Ocidente e para as práticas militares da NATO. Como explica o Kyiv Post, Syrsky já pertencia à cúpula militar ucraniana desde 2007, ano em que foi nomeado vice-comandante do comando operacional conjunto das Forças Armadas da Ucrânia. A partir daí, Syrsky seria um dos homens-chave dos contactos de Kiev com a NATO.

General Oleksandr Syrskyi

Oleksandr Syrsky, comandante do Exército ucraniano, liderou no terreno a defesa de Kiev e a contraofensiva de Kharkiv

The Washington Post via Getty Im

Foi por exemplo ele que, em novembro de 2013 — no ano antes de irromper a guerra em Donbass —, representou a Ucrânia em reuniões de alto nível na sede da NATO destinadas a implementar nas forças armadas ucranianas os padrões militares da Aliança Atlântica. A partir de 2014, ocupou vários cargos de comando na região leste da Ucrânia, onde teve um papel relevante no combate contra os separatistas pró-russos em Donbass, nomeadamente como comandante da brigada anti-terrorismo das forças armadas ucranianas. Em 2019, Syrsky foi escolhido para comandante do Exército ucraniano.

Era esse o cargo que Syrsky ocupava em fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu o território ucraniano e deu início à guerra que se arrasta até hoje. No início da guerra, Syrsky foi o responsável operacional pela defesa de Kiev — a capital ucraniana, que Zelensky nunca abandonou e que era necessário defender a todo o custo. Quando se tornou claro que a invasão da Ucrânia estava iminente, a perspetiva do Kremlin, da Casa Branca e da maioria dos observadores internacionais era a de que dificilmente a Ucrânia aguentaria mais de dois ou três dias: o poderio militar russo esmagaria os ucranianos em pouco tempo.

Ainda assim, dentro da esfera militar ucraniana, subsistiam muitas dúvidas sobre se os russos escolheriam a cidade de Kiev como alvo primordial: a guerrilha urbana, numa cidade como Kiev, não seria favorável a Moscovo. Mas, como explicaria o general Syrsky ao The Washington Post, na sua primeira grande entrevista, a propósito dos seis meses da guerra, os ucranianos tinham de se preparar para tudo. Conhecedor profundo do modo de guerra dos russos, Syrsky foi escolhido para liderar a defesa de Kiev poucos dias antes do início da invasão.

“Parecia-me que se as hostilidades ativas fossem mesmo começar, começariam provavelmente pelo leste, perto ou dentro das fronteiras das regiões de Donetsk e Lugansk”, disse Syrsky ao jornal americano. “Mas nós éramos militares. Por isso, independentemente daquilo em que eu acreditasse ou não, fiz na mesma as preparações.”

Descrito pelo The Washington Post como “estudioso”, “pensativo” e “o tipo de oficial experiente que se prepara para todas as contingências”, o general Syrsky começou a preparar as forças ucranianas para um cenário que ele próprio considerava pouco provável: um ataque direto a Kiev. Mas os russos estavam a jogar justamente com isso: se os ucranianos achassem que o mais provável era um ataque a leste, a capital ficaria mais desprotegida e seria um alvo mais fácil, sobretudo tendo em conta que em Moscovo se acreditava que a maioria dos ucranianos defenderiam os russos contra o regime de Zelensky, que fugiria de Kiev no momento da invasão.

Para facilitar o processo de defesa de Kiev, Syrsky implementou a lógica militar da NATO: dividiu a cidade em setores e nomeou um general para cada setor, a quem deu autonomia para tomar decisões táticas no terreno. Com esta medida, Syrsky aumentou a flexibilidade operacional da tropa ucraniana.

Mas não foi isso que aconteceu. Não só os russos enfrentaram uma resistência ucraniana inesperada como a cidade de Kiev estava muito mais bem defendida do que o Kremlin antecipara. Segundo explicou Syrsky ao The Washington Post, a ideia principal da defesa de Kiev começou pela identificação das três principais autoestradas que os russos usariam para alcançar a capital ucraniana a partir do norte, das fronteiras com a Rússia e a Bielorrússia.

Com esse conhecimento, Syrsky organizou a defesa de Kiev criando dois anéis de proteção em torno de Kiev: um interior, protegendo o centro da cidade; e um exterior, em torno dos arredores. Nesses anéis, com especial atenção aos pontos de entrada mais provável dos russos, Syrsky posicionou uma parte significativa dos militares e dos equipamentos bélicos ucranianos. O objetivo era travar a invasão russa logo na primeira barreira, longe do centro da cidade, protegendo a zona mais sensível da capital ucraniana dos rockets russos.

Para facilitar o processo de defesa de Kiev, Syrsky implementou a lógica militar da NATO: dividiu a cidade em setores e nomeou um general para cada setor, a quem deu autonomia para tomar decisões táticas no terreno. Com esta medida, Syrsky aumentou a flexibilidade operacional da tropa ucraniana, o que deu uma vantagem significativa aos militares de Kiev em relação aos russos. Além disso, o general mobilizou operacionais e equipamentos das academias militares da região de Kiev, dispondo no terreno material militar até então usado apenas para treinos e aumentando consideravelmente a capacidade militar ucraniana em relação ao que os russos antecipavam.

A defesa bem-sucedida de Kiev valeu a Syrsky uma comenda com a Ordem de Bohdan Khmelnytsky, uma das ordens militares mais elevadas da Ucrânia — e elevou-o ao estatuto de herói nacional.

Meses mais tarde, o mesmo Syrsky voltaria a assumir esse estatuto ao conceber o plano de contraofensiva na região nordeste da Ucrânia. Segundo os meios de comunicação ucranianos, foi dele a ideia de lançar um golpe de contra-informação visando os russos. Se até agosto a estratégia ucraniana estava essencialmente focada na contenção dos avanços da Rússia na região de Donbass, a partir do final de agosto Kiev começou a fazer circular a informação de que pretendia lançar uma grande contraofensiva em Kherson, na região sul do país. Kherson tinha sido uma das primeiras cidades a ser tomada pelos russos e era um símbolo do território ucraniano capturado por Moscovo — e a operação, discretamente anunciada como secreta, envolveu algumas ações de recaptura de territórios em torno da cidade de Kherson.

Ucrânia obteve mais êxitos militares em cinco dias do que a Rússia em cinco meses. Será este o ponto de viragem da guerra?

Inicialmente, a operação teve algum sucesso, com um conjunto de vitórias na região, mas a Ucrânia continuava a vincar publicamente que a grande contraofensiva em Kherson estava iminente, o que levou os russos a deslocar para o sul uma grande quantidade de militares e equipamentos. Contudo, as informações supostamente secretas sobre a grande operação em Kherson que continuavam a escapar faziam parte de um plano maior: desviar as atenções de Moscovo para o sul enquanto a Ucrânia se preparava para lançar uma contraofensiva na região de Kharkiv, no nordeste.

A ofensiva lançada na região de Kharkiv foi um verdadeiro sucesso: em poucos dias, a Ucrânia recuperou múltiplas cidades, explorou as fraquezas do exército russo e voltou a hastear a bandeira azul e amarela em vários lugares. Mais recentemente, a contraofensiva estender-se-ia também à região sul, com a saída dos russos de Kherson e a recuperação daquele território estratégico.

“Temos comandantes treinados e poderosos em todas as frentes”

Apesar de Valeri Zaluzhni e Oleksandr Syrsky serem os dois nomes mais sonantes entre os generais ucranianos, há vários outros líderes militares a receberem louvores públicos pelo seu papel na guerra contra a Rússia.

Entre eles, contam-se, por exemplo, figuras como o general Serhiy Shaptala, chefe do Estado Maior das Forças Armadas da Ucrânia, que já tinha recebido o título de “Herói da Ucrânia” — a maior condecoração atribuída pelo país — devido ao seu papel nos combates em Donbass e que agora tem sido um dos principais líderes militares ucranianos a comandar as tropas na resistência contra os russos.

Também o major-general Andri Kovalchuk, comandante militar da região sul da Ucrânia, é apontado como um dos principais cérebros da defesa ucraniana. Não só esteve ao lado de Zaluzhni e Syrsky na defesa de Kiev e na contraofensiva de Kharkiv como foi ele quem comandou a contraofensiva no sul. Por isso, na semana passada, quando os russos abandonaram Kherson e o povo ucraniano regressou efusivamente àquela cidade, Kovalchuk foi recebido como herói.

Hanna Malyar, a vice-ministra da Defesa da Ucrânia e ela própria uma das principais figuras da defesa ucraniana, publicou recentemente um elogio aos cinco líderes que comandaram a libertação do sul do país. Além do major-general Andri Kovalchuk, a governante incluiu também na lista de heróis os brigadeiros-generais Oleksandr Tarnavsky (vice-comandante das forças ucranianas na região leste), Andri Hrytskov, Mykhailo Drapaty e Andri Hnatov.

“A vantagem das nossas Forças Armadas sobre o inimigo está na motivação e inteligência do nosso comando. Temos comandantes treinados e poderosos em todas as frentes. Eles dirigem, planeiam e lideram”, escreveu a Hanna Malyar. “Olhem para os rostos incríveis deles. São as profundezas da força interior, experiência militar, caráter indomável e vontade de vencer.”

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