O verniz da antiga geringonça estalou de vez no último Orçamento do Estado, em que o Bloco de Esquerda votou contra a proposta do Governo e deixou António Costa apoiado numa geometria parlamentar nova nestas lides: nas abstenções de PCP, PEV, PAN e das duas deputadas não-inscritas. O ambiente entre António Costa e Catarina Martins esfriou desde então, mas a líder do BE vai voltar a ser chamada para a negociação orçamental e vai alinhar — pelo menos, numa primeira conversa. Será, no entanto, um reencontro com muitas tensões e desconfianças pelo meio.
“O ano passado foi o ano passado, este ano é este ano“. No Governo, a guerra com o BE no Orçamento para 2021 está lá atrás e não impede que volte a chamar o antigo parceiro com quem fonte do Governo ter estado, no ano passado, “horas infindáveis a discutir”. “Se quiserem vir, vêm. Se não quiserem vir, não vêm”, acrescenta ao Observador fonte do Executivo garantindo que o partido vai voltar a ser chamado, como foi desde o primeiro Orçamento negociado por António Costa — para quem os parceiros são fundamentais para conseguir aprovar este instrumento.
É a tentativa de tentar colocar o ónus no lado do BE que também, a quatro meses do tempo para esta negociação, não se coloca de fora. Nas hostes do partido, o princípio é que não se recusa negociar e até existe a garantia de que, quando o Governo chamar o partido para as conversações orçamentais, o BE não faltará à chamada, sem colocar pré-condições para isso. Falta perceber se, uma vez sentados à mesma mesa, haverá sintonia — e se desaparecerão as acusações de parte a parte de má fé negocial que marcaram todo o processo em 2020.
E isto porque a relação entre estas duas partes vem maculada desse período. Há insatisfação dentro do Governo como a forma como o BE geriu o OE/2021, convencido que estava de novo voto contra do PCP, depois de os comunistas o terem feito no Orçamento Suplementar. A partir daí, Catarina Martins apresentou-se mais cara à mesa das negociações com Costa, o que caiu mal e ainda se mantém atravessado na garganta do Executivo. Aliás, foi nesta altura que Costa colou ao BE o rótulo de “desertor”, acusando-o de saltar fora quando a crise se adensou.
António Costa sobre Bloco: “Os portugueses não perdoam o oportunismo”
Curiosamente, nessa negociação, esta atitude bloquista acabou por desbloquear o lado comunista. E a lógica está já apontada entre as regras negociais de António Costa, para futuro: quando o BE pensa que o PCP está fora, torna as negociações mais complicadas; quando o PCP percebe que o BE está fora, torna as negociações muito mais fáceis. E assim foi.
A partir daí, as reuniões privadas foram poucas e não tiveram a ver com Orçamento, até porque o partido não viabilizou o anterior e por isso não é chamado a acompanhar a sua execução; e os dirigentes notam a “hostilidade” com que o Governo trata o partido, nomeadamente no Parlamento, de forma pública. Por isso, entre os bloquistas, a conclusão é que António Costa decidiu desenhar uma linha entre partidos da oposição (nos quais inclui, desde o OE2020, o BE) e partidos parceiros (PCP e PAN), com os quais mantém uma relação diferente. E é sobre essa relação, no entender do Bloco, que o Governo tem de dar sinais de boa vontade para que a negociação possa desta vez chegar a bom porto.
A negociação será sempre tensa, sobretudo quando no histórico recente há um caso como o do reforço dos apoios sociais da pandemia, nos quais o BE teve uma responsabilidade central, que aliou todas as forças parlamentares contra o Governo. No Governo a convicção é que “o BE e o PSD têm uma aliança tácita para desgastar o PS”, é “uma coisa tática”, afirma fonte do Executivo ao Observador.
A fé na “separação de águas” no PCP
Já com o PCP, o contacto do Governo tem sido permanente ao longo deste ano. Ainda assim, o Governo não mostra grande pressa em afunilar contactos nessa negociação específica quando há autárquicas no caminho, mesmo que esteja convencido — como está — que “o PCP distingue muito bem” os dois planos e que “não altera a posição deles, vão sempre separar as águas e vão negociar”, independentemente do resultado autárquico, segundo detalha um governante em conversa com o Observador.
Mas, visto de fora, a correlação entre os resultados autárquicos e a disponibilidade do PCP para negociar Orçamentos com o PS pode parecer fácil de estabelecer. No entanto, o partido tem deixado sinais claros de que não é bem assim. Ao Observador, a 8 de abril, o gabinete de imprensa comunista explicava: mesmo que seja verdade que há fatores nacionais que “não se podem iludir”, o eleitorado saberá distinguir os momentos eleitorais, até por causa da especificidade das autárquicas. “A verdade é que as eleições locais são sobretudo determinadas pela avaliação concreta do trabalho e intervenção realizados pelas e nas autarquias”, garantia então o partido.
A teoria já foi, aliás, posta em prática: nas últimas autárquicas, as primeiras depois da assinatura dos acordos que fizeram nascer a “geringonça”, o PCP perdeu dez câmaras — mais: nove foram para o PS — e houve quem apostasse que, depois desse sinal, o partido não voltaria a negociar com António Costa. Em vão. Logo depois dessas eleições, o Comité Central deixava o recado: “O PCP não se deixará condicionar em função de resultados eleitorais” e “nenhuma circunstância” reduziria a “independência” do PCP e o seu “poder de decisão política”.
Podia até parecer palavreado vago, sobretudo quando, em 2020, os comunistas votaram contra o Orçamento Suplementar do Governo. Mas enquanto comentadores e boa parte do partido vizinho, o BE, apostavam que os comunistas teriam rompido definitivamente com o PS, Jerónimo de Sousa avisava, do palco da Festa do “Avante!”: “Não vale a pena apressarem-se a sentenciar que o PCP não conta”. Meses depois, o PCP viabilizaria o OE2021.
No congresso do último ano, a disponibilidade para negociar e possivelmente viabilizar Orçamentos ou outras iniciativas que trouxessem avanços ficava clara. O dirigente Jorge Pires avisava então que se justificaria uma “convergência” de democratas sempre que os seus “interesses coincidissem” em “objetivos concretos”, separando as questões políticas das “questões emotivas”. No Orçamento, coincidiram. Agora, e para avaliar se a disponibilidade se pode manter tendo em vista as negociações do próximo OE, o PCP acompanha a execução do anterior. Este mês, João Oliveira deixou, aliás, um aviso direto para o Governo, em declarações à Lusa: quanto maior for a execução do atual OE, “menos difícil” será a base para as negociações do próximo.
Do lado do Governo, a convicção é a mesma. António Costa sabe que a negociação será tanto mais fácil quanto melhor for a execução deste Orçamento do Estado, já que é essa a linha vermelha que tem sido traçada pelos comunistas para voltar a negociar um Orçamento com o seu Governo. É por isso que se mantém este contacto permanente, com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, incumbido de fazer essa ligação com o líder parlamentar comunista João Oliveira, para dar conta da execução orçamental e, se for caso disso, fazer essa prestação de contas numa área setorial, chamando o responsável governativo pela área concreta.
Costa só sai com moção de censura. E sem OE, fica?
Esta quinta-feira, em entrevista à Rádio Renascença, o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, apontou a necessidade de o PS “mais proativo” a negociar com os partidos de esquerda. E também pediu uma estabilização do quadro o quanto antes, mas esse caminho ainda é longo para António Costa que, com as autárquicas em setembro/outubro, um compromisso mais claro pode ficar só fechado depois disso. Aliás, no Governo é repetido como mantra o calendário: as autárquicas são antes do Orçamento. A data é marcada pelo Governo que tem uma baliza definida na lei eleitoral para marcar estas eleições: entre 14 de setembro e 14 de outubro. Poderá fazê-lo para o início desse intervalo, para distanciar das semanas mais quentes de negociação orçamental, mais perto do dia da entrega que acontece a 10 de outubro.
E se desta vez as negociações encalharem em toda a linha? António Costa já disse que só uma moção de censura o tirará do Governo — não coloca nesse cenário de caos a inviabilização de um Orçamento do Estado. Sobrariam uma governação com um orçamento em duodécimos, mais limitador com uma crise económica instalada no país.