A greve dos motoristas começou à meia-noite e ainda não há qualquer sinal de que possa haver um volte-face. As posições entre os patrões e os sindicatos que convocaram a paralisação estão extremadas, o Governo definiu serviços mínimos de um âmbito quase sem precedentes, entre os 50% e os 100%, declarou uma “situação de crise energética” e uma “situação de alerta” (em vigor desde a noite de sexta-feira), mobilizou e deu formação a militares, PSP e GNR para que possam ser usados em caso de requisição civil e incumprimento dos serviços mínimos.
Há semanas que vários intervenientes (postos de combustível, cadeias de supermercados, transportes públicos, forças de segurança, entidades de saúde e proteção civil, entidades estatais e administrações locais) se preparam para o impacto de uma greve que pode afetar tanto o abastecimento de combustível como a de 15 de abril, quando o país parou em menos de três dias.
Desta vez tudo foi feito com maior antecipação. Aqui contamos tudo o que mudou a partir das 00:00 e o que pode correr mal, apesar das medidas adotadas.
23:59 e a greve não foi desmarcada. E agora?
A partir de agora, há limites para o combustível que cada cidadão comum pode meter no carro ou no camião. Quais são? Para o podermos explicar melhor temos de começar pelo primeiro (e mais importante) dispositivo ao serviço do Estado para controlar a situação de abastecimento: a REPA, acrónimo de Rede Estratégica de Postos de Combustível (REPA). Esta rede foi criada em 2002 e funciona na esfera da Entidade Nacional para o Sector Energético (ENSE). Apesar de apenas entrar em funcionamento às 00h00 de segunda-feira, há pelo menos dois dias que os 374 postos que a integram têm vindo a preparar-se. No total há cerca de 3.000 postos de abastecimento em todo o país. Mas estes 374 têm regras especiais.
https://observador.pt/2019/08/11/antonio-costa-vai-avaliar-este-domingo-capacidade-de-resposta-a-greve-dos-motoristas/
Ligeiros limitados a 25 litros por abastecimento e pesados a 100 litros
Vamos primeiros às regras dos postos que não integram a REPA. São simples: os ligeiros estão limitados a 25 litros por abastecimento e os pesados a 100 litros. Não há limite para o gasóleo agrícola (mas esse – que até tem um corante especial, para se poder identificar – já só podia ser vendido a quem tem uma autorização especial).
E na REPA? Depende e é mais complicado de explicar. Nos postos da REPA que são prioritários (ou exclusivos), e são 54, só podem abastecer os seguintes veículos: forças armadas e de segurança (GNR, PSP, Polícia Judiciária, Serviço de Estrangeiro e Fronteiras, Serviço de Informações e Segurança, Autoridade Marítima Nacional e os órgãos do Sistema da Autoridade Aeronáutica), os serviços e agentes de proteção civil e os serviços prisionais, de emergência médica e de transporte de medicamentos e dispositivos médicos. Isto é o indica o despacho assinado pelo Governo.
Com direito a abastecimento nos postos exclusivos REPA incluem-se também “as entidades públicas ou privadas que prestam serviços públicos essenciais na área da energia, telecomunicações, serviços postais, água para consumo humano, águas residuais, recolha de resíduos e limpeza urbana, transporte público de passageiros, atividade de navegação aérea e transporte de reagentes e lamas”.
O que é que fica proibido de fazer com a declaração de crise energética?
Viaturas equiparadas a prioritárias com dísticos especiais feitos pela Casa da Moeda
Até aqui, tudo claro. Mas o governo também definiu quais as viaturas “equiparadas” às das entidades prioritárias. Estes já não podem abastecer nos 54 postos exclusivos, apenas nos 320 postos REPA não exclusivos. Podem fazê-lo sem os limites impostos às populações em geral. E que viaturas são estas? A resolução do Conselho de Ministros inclui nesta categoria “os que se destinam ao transporte de valores, de leite em natureza ou produtos agrícolas em fase crítica de colheita, os veículos das concessionárias de autoestradas para segurança na via, os que prestem serviço de piquete, reboques, pronto-socorro e camiões-guindaste, desde que dotadas de avisadores luminosos especiais”.
A lista inclui ainda “veículos funerários, de entidades públicas ou privadas destinados ao transporte de doentes e de pessoas portadoras de deficiência, usando dístico legalmente exigido para o efeito, veículos que assegurem o transporte de mercadorias e ainda os veículos de instituições particulares de solidariedade social destinados ao apoio domiciliário”.
Estas precisam de dísticos especiais – feitos pela Casa da Moeda, com um holograma especial para impedir a falsificação. O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, adiantou no sábado que já foram emitidos 20 mil destes dísticos e outros 30 mil estão a caminho.
População em geral só poder abastecer 15 litros nos postos não exclusivos da REPA
E a população normal pode abastecer nestes postos também? Sim, mas só pode meter 15 litros de gasolina ou gasóleo em cada abastecimento.
Há sempre quem pense em contornar as regras, mas o Estado pensou nisso. Nos postos da REPA que dispõem de sistemas automáticos “o cumprimento desta regra deve ser feito por limitação ao montante de pré-pagamento ou por encravamento dos sistemas” e nos restantes “por controlo dos agentes que efetuam o abastecimento”. Um repórter do Observador já verificou que num posto REPA não exclusivo, o funcionário pedia, por exemplo, o número de identificação fiscal ao condutor.
Os postos que não integram a REPA têm outra regra especial: reservas mínimas para as entidades prioritárias. Por isso, se o funcionário disser que já não há gasolina ou gasóleo, provavelmente até há, mas está reservado para as forças de segurança, serviços de saúde e as outras todas listadas acima.
Os postos fora da Rede de Emergência de Postos de Abastecimento (REPA) vão ter de reservar até 10 mil litros de gasóleo, quatro mil litros de gasolina e dois mil litros de GPL-auto para entidades e veículos prioritários.
Estes valores estão detalhados na mesma resolução aprovada do Conselho de Ministros que declarou a situação de crise energética para o período entre as 23h59 horas de 9 de agosto e as 23h59 horas de 21 de agosto.
Bombas que não integram rede estratégica têm de manter reserva para os veículos prioritários
De acordo com a resolução, os postos de combustível que não integram a REPA, “ficam obrigados a reservar para uso exclusivo das entidades prioritárias e veículos equiparados, uma quantidade de cada produto”, que é de 10 mil litros de gasóleo ou 20% da capacidade de armazenagem, quando esta é inferior a 50 mil litros.
Na gasolina esta reserva é de quatro mil litros ou 20% da capacidade de armazenagem dos postos se esta for inferior, sendo de dois mil litros no GPL auto, se a capacidade de armazenagem for inferior a 10 mil litros.
Isto é o que está preparado no que diz respeito ao abastecimento de combustível ao país. Às 17:15 deste domingo o site Já Não Dá Para Abastecer listava 240 postos (num total de 2.928) em que já não havia qualquer tipo de combustível, o que corresponde a 8,2%. À mesma hora havia 346 postos sem gasolina e 598 sem gasóleo. Enquanto o abastecimento não foi afetado pela crise (apenas pela enorme afluência de automobilistas que foram precaver-se para a paralisação) estas percentagem flutuaram entre os 9 e os 12% de postos, mas rapidamente eram reabastecidos.
[Veja onde ainda pode abastecer o depósito]
Reabastecimento dos postos? Uma incógnita a partir das 00h00
Esta situação – o reabastecimento dos postos – torna-se uma incógnita às 00h00 de segunda-feira. Por duas razões: a primeira é os serviços mínimos. Por falta de entendimento entre as partes (ANTRAM e motoristas) o Governo definiu serviços mínimos entre os 50% e os 100%. Divididos desta forma:
Para portos, aeroportos, aeródromos, instalações militares, Proteção Civil, bombeiros, forças de segurança, hospitais e emergência médica, os serviços mínimos ficaram definidos em 100%, bem como para a REPA.
[Veja aqui a situação na Rede Estratégica de Postos de Abastecimento, feita pela ENSE]
[Para aceder ao mapa interativo siga este link]
Já para os transportes de passageiros rodoviário, ferroviário, fluvial, as telecomunicações, a água e a energia, os serviços mínimos serão de 75%. Dentro deste grupo está também também o transporte de medicamentos e bens destinados a prisões, instituições de solidariedade, instituições para pessoas idosas e crianças e o transporte de bens alimentares e primeira alimentação para animais.
Com 50% dos serviços mínimos ficam os “trabalhadores em postos de combustível para os clientes finais”, ou seja, os postos de combustíveis regulares, e também o “abastecimento de gasóleo colorido e marcado e o abastecimento de combustíveis destinados a postos privativos ou cooperativos de empresas de transportes rodoviários de mercadorias”.
E tudo depende do cumprimento dos serviços mínimos…
Claro que tudo isto depende do cumprimento destes serviços mínimos. Em abril, quando houve uma greve apenas dos motoristas de matérias perigosas (essencialmente combustíveis) os serviços mínimos eram de 40%. O país parou em menos de três dias. Mas as empresas alegaram que os serviços não estavam a ser cumpridos, e o Governo chegou a fazer uma requisição civil para que as empresas pudessem repôr em número os trabalhadores em falta. Isso também não funcionou a 100%.
Foi por isso que a ANTRAM pediu uma requisição civil preventiva (algo que o Conselho Consultivo da PGR admitiu como uma possibilidade a utilizar pelo Governo) e o Executivo de António Costa ainda chegou a equacionar. Mas finalmente colocou essa possibilidade de lado, afirmando que avançará imediatamente para uma requisição civil caso os trabalhadores não cumpram. Como? Com uma decisão do Conselho de Ministros Eletrónico.
Na prática, o que significa o não cumprimento dos serviços mínimos? Supostamente os sindicatos que convocaram a greve deveriam ter enviado às empresas afetadas uma lista dos trabalhadores designados para os serviços mínimos impostos pelo Governo. E deveriam tê-lo feito até às 23:59 de sábado. Isso não aconteceu e os sindicatos afirmam que não enviaram porque as empresas representadas pela ANTRAM já anteriormente estavam a enviar escalas de trabalho aos seus funcionários. O Observador teve acesso a uma SMS enviada pela Atlantic Cargo, empresa especializada no transporte rodoviário de matérias perigosas, aos trabalhadores, na qual pede aos motoristas para se apresentarem ao serviço na segunda-feira, o primeiro dia da paralisação na sede da empresa, em Porto Alto.
“Bom dia, segunda feira, até indicações em contrário, deve apresentar-se nas instalações da empresa no Porto Alto pelas 08h, sem iniciar qualquer atividade com a viatura. Obrigado.”, refere a mensagem. Num dia normal de trabalho, os motoristas destas empresas costumam começar na Companhia Logística de Combustíveis (CLC) de Aveiras, onde abastecem os camiões com combustível. É para lá que planeiam juntar-se os grevistas, na segunda-feira.
O que pode correr mal a partir da meia-noite?
Apesar de os sindicatos terem garantido que iriam respeitar os serviços mínimos e não fomentar ou admitir quaisquer altercações, as empresas receiam que os motoristas utilizem expedientes como: desligar os telefones para não receberem notificação para substituir colegas em incumprimento ou pedidos de baixa. Os primeiros camiões devem começar a sair dos centros de abastecimento, como o CLC de Aveiras e o Terminal TIR da Perafita, pelas 3 horas da madrugada. Se a essa hora não estiverem a ser cumpridos os serviços mínimos, as empresas alertam a ENSE (Entidade Nacional para o Setor Energético)
A ANTRAM já veio mesmo dizer que quem não cumprir os serviços mínimos pode contar com processos disciplinares, ao contrário do que aconteceu em abril. “A ANTRAM garante que os processos disciplinares a trabalhadores que não cumpram os serviços mínimos serão abertos no minuto seguinte ao incumprimento”, disse ao Observador o porta-voz da associação que representa os patrões, André Matias Almeida.
“As equipas jurídicas estão preparadas para responder ao incumprimento, ao contrário do que aconteceu na greve de abril, em que não houve um único trabalhador que fosse responsabilizado por não cumprir os serviços mínimos”, disse.
Não cumprir os serviços mínimos e a requisição civil pode dar polícia à porta
O Observador apurou, por outro lado, que a notificação aos trabalhadores em incumprimento dos serviços mínimos pode mesmo vir a ser feito por agentes da polícia. Uma medida mais musculada que poderá ser adotada ao abrigo do artigo 10º do despacho n.º 7130-C/2019 que faz Declaração de Situação de Alerta para o período compreendido entre 9 e 21 de agosto de 2019.
“A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, bem como a recusa do cumprimento da obrigação, são, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil, sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo”, indica o despacho, cujo teor foi anunciado na sexta-feira pelo Governo.
É para o caso de as empresas não conseguirem substituir os trabalhadores incumpridores que o Estado acautelou a formação a motoristas de pesados do Exército, da GNR e da PSP. No total estarão disponíveis 521 elementos, e a ideia é ter 30 homens adstritos a cada uma das principais empresas de transportes de combustíveis, entre elas a Transportes Paulo Duarte (que abastece a GALP, por exemplo), a Atlantic Cargo ou a Tiel.
Pontos de reabastecimento de camiões serão “pontos quentes”
Caso os camiões venham a ser conduzidos por forças de segurança, a questão de eventuais confrontos com piquetes de greve (que eventualmente venham a existir) reduz-se grandemente. Ainda assim, os pontos quentes serão os locais em que os camiões-cisterna se abastecem para depois fazer a reposição nos postos — como o CLC de Aveiras de Cima, onde os grevistas se concentraram na greve de abril.
Segundo apurou o Observador, haverá ainda concentrações de piquetes de greve do Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM) na rotunda de acesso à autoestrada no mesmo local, em Leça da Palmeira, Alfena, Maia, Aveiro, Porto Mós, Condeixa, Vilar Formoso, Mangualde. Anacleto Rodrigues, porta-voz do SIMM, avançou ao Observador que já há movimentações por parte das forças de segurança para impedir o acesso e o estacionamento em certas zonas no CLC de Aveiras, nomeadamente com recurso a grades. Estas movimentações da polícia estão enquadradas na situação de alerta decretada pelo Ministério da Administração Interna, na sexta-feira. São ainda prováveis alguns confrontos entre grevistas e os trabalhadores que tentam cumprir os serviços mínimos.
[Veja como, em abril, um trabalhador foi bloqueado por grevistas, que consideravam não se tratar de um serviço mínimo]
Em abril, vários camionistas, que cumpriam os serviços mínimos decretados pelo Governo, temendo represálias por parte dos grevistas colocaram nos vidros dos camiões um papel com a frase: “Serviços Mínimos Obrigatórios”. Ainda assim, eram recebidos com buzinadelas e alguns insultos, como o Observador relatou na altura.
Em abril, a GNR chegou mesmo a escoltar camiões ao longo do percurso entre o parque de combustíveis de em Aveiras de Cima e o aeroporto de Lisboa.
Quase três quartos dos efetivos da PSP mobilizados para fazer frente aos efeitos da greve
Cerca de 70% do efetivo da Polícia de Segurança Pública (PSP) está mobilizado para fazer frente aos efeitos da greve dos motoristas de matérias perigosas, avança o Jornal de Notícias esta sexta-feira. Para as unidades musculadas terão sido dadas ordens para que os elementos da Unidade Especial de Polícia (UEP), do Grupo de Intervenções e Operações Especiais (GIOP) e dos Destacamentos de Intervenção estejam prontos para atuar, se necessário, a partir das 9h da próxima segunda-feira, incluindo os que estão de folga.
Governo declara Situação de Alerta” face a “crise energética”. Leia aqui tudo o que muda
O JN conta ainda que há uma lista de locais prioritários que vão merecer uma maior atenção da parte dos polícias, incluindo as grandes superfícies. Porto, Lisboa e Algarve, devido à grande afluência, serão as áreas com maior vigilância. As equipas de Intervenção Rápida vão também estar situadas em locais estratégicos para responder a qualquer problema que surja.
Entre os maiores riscos para o abastecimento no decorrer desta greve está o cenário de bloqueios de estrada. Ninguém o admite, apesar de o movimento dos Coletes Amarelos terem prometido bloquear a Ponte 25 de Abril. Aconteceram sim na greve dos camionistas de 2008 (na altura por causa do preço crescente dos combustíveis). Os grevistas cortaram rotundas estratégias para o acesso a locais-chave. Postos de combustível ficaram secos e supermercados começaram a ficar sem bens de primeira necessidade. Na altura chegou-se a falar de racionamentos nos supermercados, mas nesta greve todos os responsáveis da distribuição recusam sequer admiti-lo, dizendo-se preparados.
Isto para os três ou 4 primeiros dias. A partir daí depende do cumprimento dos serviços mínimos e da capacidade do Estado e das empresas em repor o normal funcionamento.