Começa por um conto, com Coelho na estreia. Matos Sequeira entra logo com mais meio. Manuel dos Santos não demora a acenar com dois. Sequeira eleva a parada para 5 mil escudos. De 100 em 100, os lanços situam a fasquia nos 7 contos de reis. Mais 500 para Sequeira, mais um conto para Coelho, “mais 300 deste, mais 400 daquele, até que Manuel dos Santos arremata por 9 contos”. Está entregue a Cronica de Nuremberg, um admirável incunábulo com 2 mil gravuras atribuídas a Dürer e Wolgemut, “e tão bem conservado que dir-se-hia ter saido ontem do prelo”. Nada temam porque outro grande exemplar se segue no frenesim. “Tratado sobre as coisas da China”, do padre Gaspar da Cruz (Évora, 1569) leva Benoliel a juntar-se à refrega, mas os seus 7 contos não batem os 9 do dr Vital Rego”.
Às portas da Semana Santa, na edição de 1 de abril de 1924, o Diário de Lisboa embarcava nessa “arca de Noé” que acabara de se abrir. “Começou hontem a ser vendida a livraria do Ameal no palácio Azambuja”. A atenção não escapou à demais imprensa da época, que ia recortando com ironia as movimentações no edifício que Eça de Queiroz eternizou em 1880, em O Mandarim, evocando “algumas das mais afamadas festas” de Lisboa.
No “Palacete Amarelo ao Loreto” desenrolar-se-ia até ao dia 16 de abril um invulgar e valioso evento para bibliófilos. . Observador atento do quotidiano da cidade, foi nas páginas de um outro jornal, O Mundo, em jeito de crónica, num folhetim sobre a avidez de licitar, que o olissipógrafo Gustavo Matos Sequeira documentou esses dias fervilhantes do grande leilão disputado a um passo do Chiado, no qual sob o martelo do pregoeiro Esteves se ia dispersando o precioso acervo.
No primeiro andar do número 17 do Largo do Calhariz, é para Joshua Benoliel que “vai o primeiro número do catalogo, por 900 escudos – um raríssimo livro hebraico de grande erudição e pia doutrina…” O pioneiro do fotojornalismo voltaria de novo “à liça por sua dama – um Epitoma da Gramatica hebraica, que vai até 1.050 escudos e ‘tinha corda para mais’”.
O omnipresente homem da máquina é apenas um dos muitos nomes na sala, entre figuras da época, entusiastas do arte do colecionismo ou simples curiosos, para um cenário à pinha. “Quando entrei na sala, a voz do pregoeiro – o indispensável Esteves que tem mil olhos e conhece todos os “trucs” dos licitantes – adjudicava ao Dr Salidonio Leite por 45 escudos , os “Acromanos Panegericos” em louvor de São Tomaz de Vila Nova. A multo custo, atravez da massa compacta de amadores e mirones, consegui um logar no “promenoir”, aventura-se o repórter.
Para o Diário de Lisboa, que nascera três anos antes, J.de O. assina a crónica dessa “enchente colossal”. “Leilôa-se a livraria Ameal , rica de preciosidades bibliográficas e artísticas, que quatro gerações opulentaram , e de manuscritos que pertenceram a Nepomuceno, Castelo melhor, Bicker, Linhares,…”
Os lotes mais importantes da sessão terão sido arrematados por Victor Peres, Conde do Almarjão, Abel de Andrade, Manuel dos Santos, Anacleto Fernandes Agudo, Fernando Emílio da Silva, Jorge de Faria, João Coelho e Forjaz de Sampaio. Um friso da época que de forma mais ou menos contida foi cobiçando a montra.
Ao longo da maratona, um álbum de aguarelas chinesas sobe a 410 escudos, outro de clichés de Carlos Relvas atinge 670. Nem só de raridades medievais vive o ilustre espólio. As crónicas rezam como a certa altura circulam dois livros eróticos com “gravuras muito expressivas e simbólicas”. “Há olhadelas cupidas e anedoctas rubras contadas, baixinho. Cardoso Marta circula chamando a atenção para certos trechos de uma brejeirice muito luzitana. E, ja o pregoeiro pigarreira outro lanço, ainda o irrequieto bibliófilo atrôa a sala”
Um pouco menos profano, o título “A vida e milagres de Santa Izabel”, de Diogo Afonso de Macedo, começa por 300 escudos, vai subindo lentamente, mais dez escudos, mais cinco escudos, até ser arrematado por um conto pelo Sr. Victor Peres. Já “Um tratado de educação de meninos’ “não passa de dez tostões…Garrett mantém a cotação anterior: o Retrato de Venus (n.º75) atinge 121 escudos, é disputado encarniçadamente por Matos Sequeira (que ataca ainda um álbum de litografias, que aos pulos de dois escudos chega a 118). A pena alonga-se ainda sobre Flores sem Fruto, que não vai além de uns modestos 12 escudos. Já o 114 corresponde a uma obra espanhola sobre o Rio de Prata, que começa com um aceno de 550 escudos de João Coelho e chega a 615 “após os ratinhados e refletidos lances do livreiro Sr Molina, que por vezes parece esquecer-se que a peseta não vale dois tostões.” Coelho arremata “muitos e bons livros” para um senhor Pottser , desconhecido entre as hostes mas que tudo indica perceber da poda. Já os senhores Conde de Almarjão e Perry Vidal disputam “amavelmente” as “muitas e curiosas” encadernações de luxo.
Ramajal “entra a matar” com os Solilóquios do Prior do Crato, por 355. “Como o nome tem um resaibo easpanhol ha quem peça a oreja. Lucritch, que se encontra representado, arremata uma “Obrigaçan do frade menor” por 250 escudos, libra e meia. Nota ainda para o Archivo de ex-Libris, de Joaquim de Arroyo, que apesar de incompleto ascende aos 750 escudos, e para o Archivo Portuguez Oriental que atinge um conto. “Forjaz de Sampaio, que não perde tempo, por uma vintena de escudos apanha um lindo Bodoni.”
Refira-se que as obras de celebrados tipógrafos estão entre as prediletas do público. Por um lado, raridades com o selo do italiano Giambastista Bodoni (1740-1813), que sempre tiveram um êxito fora de série devido à qualidade da tipografia, das ilustrações, da impressão e encadernação. De entre as suas edições mais conhecidas, para além do Manuale Tipografico podem-se destacar a popular Ilíada, Epithalamia exoticis linguis reddita (1775), Trabajos de Oracio (1791) Poliziano (1795), Gerusalemme liberata e Oratio dominica (1806). Do lado francês, destaque para Joseph Gérard Barbou, o nome mais sonante neste clã de tipógrafos, que em 1762 daria ao mundo uma bela edição ilustrada de As Fábulas de la Fontaine, e cujas obras também encontravam representação na coleção Ameal.
Depois do conta gotas da crónica social, a narração de Matos Sequeira foi posteriormente reunida em livro. “No Leilão Ameal. Crónicas amenas de uma livraria a menos”, teve uma 1ª edição ainda em 1924, com apenas 500 exemplares, que incluía caricaturas do grande ilustrador da época Alberto de Souza, que eternizou os rostos de quem disputou com afinco os livros do Ameal. Além dos desenhos, a obra contava ainda com prefácio do repórter Luís Derouet (1880-1927), cuja carreira esteve sobretudo ligada a O Mundo, onde publicou as crónicas da viagem em que acompanhou o Presidente António José de Almeida na sua deslocação ao Brasil em 1922. Nomeado diretor geral da Imprensa Nacional pelo Governo Provisório no próprio dia 5 de outubro de 1910, manteve-se no cargo até 31 de outubro de 1927, quando sucumbiu aos três tiros disparados por Manuel de Jesus Pinto, um tipógrafo do jornal A Batalha.
Em pouco mais de 60 páginas, o olisipógrafo descreve as obras mais relevantes em evidência neste processo e regista com humor a roda viva de licitações e as manhas do meio, onde se é capaz de vender e comprar um livro de mortalhas Zig-Zag como se fosse um, voilá, Barbou.
“Com o “Esteves” prègando à mão direita,/e à mão esquerda o Pinheiro,/(apregoando os lotes o primeiro/e o segundo lançando-os em Receita),/muito bem pendurado num charuto,/nesta praça é quem faz de Inteligente,/e mete medo à gente/arregalando o seu olhinho arguto./Êle e os livros tratam-se por tu/e, basta haver quem pague,/é capaz de vender, como um Barbou,/um livro de mortalhas Zig-Zag. […]”
Mais extenso, e não menos relevante, é o catálogo que Gustavo de Matos Sequeira ajudou a lavrar, de seu nome completo “Catálogo da Notável e Preciosa Livraria que foi do Ilustre Bibliófilo Conimbricense Conde do Ameal”. Identificou todos os manuscritos e ainda escreveu o prefácio das quase 770 páginas redigidas pelo livreiro José dos Santos, que resumem em papel a extensa biblioteca Ameal, composta por 2.555 espécies bibliográficas, entre obras de história, literatura clássica e de arte. Tudo proveniente de quatro notáveis coleções que haviam sido reunidas pelo conde. No arranque, Matos Sequeira sublinha o luxo das edições e encadernações sumptuosas de títulos como “Luz Liberal e nobre arte de cavalaria”, de Manoel Carlos de Andrade.
A 3 de abril de 1924, de novo no Diário de Lisboa, uns dias depois do arranque do conjunto de sessões, Norberto de Araújo dedica uma página aos leilões da cidade e às bugigangas que por lá se vendem, aludindo à nova moda que se apoderara dos alfacinhas, que tanto correm para apanhar um calhamaço raro como uma travessa. “Vi esta tarde na mão de um licitante do leilão Ameal um livro que custara ao comprador vinte contos de reis! Vinte contos de reis, um livro! Pobre, ingénuo, sacrosanto Camões! Os teus Lusíadas na famosa e discutível primeira edição custaram à voracidade sensual, de um negreiro inglês ou castelhano, vinte contos de reis. Pobre exemplar. Eu tenho de mim para mim que todos estes quadros, estes volumes, estas joias, estas desgraças, feitas bugigangas caras, são sempre as mesmas”.
Dois dias depois, num sábado 5 de abril, o mesmo diário dá conta da marcha da venda do Ameal. E nem a chuva forte que se abate sobre Lisboa afasta os curiosos. “Os habitués, os caturras, os mirones, vão chegando a pingar. Pessoas graves e bem tratadas, com bronquites crónicas e padecimentos vários, sacrificam tudo por uma edição elzevir, por um Bodoni, por um Barbou, maravilhas da arte tipográfica que começam a ter cotação no mercado (…).” A crónica mostra ainda como à medida que os lanços vão avançado, também os mais tímidos, discretos ou temerosos se começam a intrometer nas jogadas. Fernandes Agudo até então em silêncio, lá oferece alguns magros escudos por uns folhetos. “Na sala regista-se com prazer que não perdera, felizmente, a fala”. “O sr Agudo, cada vez mais calipolense [Fernandes Agudo foi diretor do diretor do Colégio Calipolense] atira-se agora vorazmente aos sermões. Mais um que se atravessa. É pena, porque há tanto calhamaço que pode satisfazer as suas insaciedade alfarrabística. Passam folhetos e folios, admiráveis livros de arte e encadernações, dentre as quais avulta uma soberba que vai para o sr Conde de Almarjão”
O jornal despede-se deste palco anunciando que na segunda feira seguinte irá começar a publicar uns perfis bibliográficos, ilustrados pelo aguarelista Alberto de Sousa.
Os ecos do evento no coração de Lisboa chegaram ao outro lado do Atlântico. A revista América Brasil, lançada no Rio de Janeiro em dezembro de 1921, editada e dirigida pelo alagoano Elísio de Carvalho, dedicou três detalhadas colunas ao leilão Ameal, com enfoque particular nas obras da livraria relacionadas com o Brasil. De entre o elenco destacam-se, por exemplo, Corografia Basilica, de Ayres de Casal (obra rara de 1822), ou Relaçam diaria do sitio, e tomada da forte praça do Recife, recuperação das capitanías de Itamaracà, Paraiba, Rio Grande, Ciará, & Ilha de Fernão de Noronha, para uma incursão no século XVII.
Lisboa, anos 20, agora noutro século
Há pouco mais de cem anos, por aqueles meses, para lá da euforia dos fumegantes anos 20, e do clarão do jazz, as páginas dos jornais não poupam no sinal de alarme. A capital é uma cidade assolada pelos desabamentos de casas. Discute-se a lei do inquilinato e o problema da habitação: “Mil casas construir-se-hiam em Lisboa com 500 contos”. A “carestia de vida” apoquenta os regedores de freguesia. Nota-se o “pao mais caro, pao peor”. E teme-se ainda a “tentação do francesismo” na língua portuguesa. O ano não fecharia sem os exercícios dos bombeiros na Baixa de Lisboa em outubro de 1924, ou ‘o incêndio oficial do 5 de outubro’, como lhe chamaria o traço ágil de José de Almada Negreiros, colaborador do Diário de Lisboa.
De fora, a morte de Lenine abrira 1924, mais por diante chegaria o triunfo do fascismo em Itália, e para fait divers nascia a salada César. O último dos meses veria o nascimento de Mário Soares. E de caminho, o país segue uma pioneira aventura transatlântica e o governo organiza uma cerimónia no Mosteiro da Batalha ao passarem seis anos sobre a mais importante batalha da I Grande Guerra em que participou o Corpo Expedicionário Português, La Lyz. O Diário de Lisboa lança a campanha que lhe trará grande popularidade: trazer a Lisboa, e levar a essa sessão, Aníbal Augusto Milhais, o Soldado Milhões, o mais condecorado herói do conflito.
Bem mais antigo que os modernos, o palácio Valada Azambuja, cenário do grande leilão Ameal, testemunhou este e outros anos. Foi ainda no século XV que Álvaro Pires de Távora edificou um Palácio sobre as casas que aqui existiam. Na posse da família Távora ao longo de três séculos, sofreu várias alterações.
Quando o terramoto de 1755 assolou Lisboa, teve que ser totalmente reconstruído. Por essa altura, torna-se habitação de D. José Menezes, e em 1791 ainda de Sebastião de José Carvalho e Melo, já que o Marquês de Pombal foi casado com uma irmã Menezes. Depois de passar por outras mãos, em janeiro de 1867 o Palácio foi vendido ao Conselheiro Francisco José da Silva Torres que o deu, mais tarde, de herança a uma enteada casada com o Conde de Azambuja.
É já em 1922 que o novo dono, o antiquário Manuel Henriques de Carvalho, aqui decide instalar o diário republicano “A Lucta” (o nome foi título de quatro jornais diários portugueses, em diferentes épocas). Este em particular foi fundado em Lisboa a 1 de janeiro de 1906 por Manuel de Brito Camacho, e viria a converter-se no órgão oficioso do Partido Unionista. O último número publicou-se a 29 de setembro de 1935. Quando decorre o grande leilão Ameal, A Lucta funciona neste edifício. A partir do ano de 1925, o antigo palácio setencentista passou a ser ocupado pela Biblioteca Municipal Camões.
Em 2002 surgia a notícia do plano de Reabilitação Urbana conduzida por um Fundo de Investimento Imobiliário, o Fundo Santa Casa 2004, gerido e administrado pela FundBox – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, SA, que visava converter o espaço num empreendimento residencial, destinado ao arrendamento residencial de curta duração.
Acervos, chalés e mausoléus. O tempo e a arte do Conde do Ameal
Por “absoluta falta de espaço”, a Gazeta de Coimbra vê-se impossibilitada de publicar os nomes de todos quantos se inscreveram a dar pêsames. Pelas 11h da manhã de 13 de julho de 1920, morria repentinamente, de “congestão cerebral”, o destacado político conimbricense João Maria Correia Ayres de Campos (1847-1920), que se tornou num dos mais importantes colecionadores de arte do século XIX/XX.
Nascido em 5 fevereiro de 1847, corria 1885 quando João Correia Aires de Campos, futuro Conde do Ameal, terá herdado do pai, João Correia Ayres de Campos, uma considerável coleção de manuscritos e de livros impressos antigos, de tal forma que acabou por organizar uma das mais impressionantes bibliotecas privadas em Portugal. Na herança vieram ainda antiguidades e objetos artísticos, base da não menos imponente coleção que haveria também ela de ser leiloada em 1921, um ano depois da sua morte e a curta distância do leilão da livraria. “Não era o interesse snob de querer obras d’arte para os outros. Tinha-as para si, muito para si, para o sentimento de artista e para a sua emotividade intelectual, e, só, muitas vezes ia viver com elas, acariciá-las, senti-las, naquele ambiente agradável das salas do seu palácio”, chegou a descrever a Gazeta de Coimbra, citada por Clara Moura Soares que em 2016, em “A Coleção de arte do Conde do Ameal: o leilão de 1921 e as aquisições do Estado Português para os Museus Nacionais”, retratou o “político com temperamento de artista”, que ajudou a dinamizar o mercado de arte, ao adquirir obras de um conjunto considerável de artistas portugueses, muitos deles seus contemporâneos.
À semelhança dos passos paternos, começou por estudar Direito na Universidade de Coimbra. Depois do diploma, juntou-se ao partido Regenerador. No ano de 1876, casou-se com Maria Amélia de Sande Mexia Vieira da Mota, nascida no seio de uma família com tradição nas áreas da magistratura e da academia, e tiveram quatro filhos. Presidente do Distrito de Coimbra, Aires de Campos (ou Ayres de Campos na grafia antiga) foi eleito autarca da cidade de Coimbra em 1893, cargo que exerceu durante dois anos. Durante a década de 1890 também exerceu de forma intermitente funções de deputado no Parlamento da Portugal, onde foi membro das comissões parlamentares de Administração Pública (1893 e 1894) do Comércio e Artes (1894) e da Estatística (1897). Condecorações como a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo coroam uma vida dedicada à atividade política, social e cultural. Quando se retirou, em 1901, o Rei D. Carlos concedeu-lhe o título de 1º Conde de Ameal (em alusão à pequena aldeia nos arredores de Coimbra onde os seus antepassados paternos tinham raízes). O lema escolhido para embelezar o seu brasão é claro: Ars Super Omnia, “Arte Acima de Todas as Coisas”.
No ano de 1892, o Conde do Ameal adquiriu os edifícios do século XVI onde funcionava em Coimbra o antigo convento e colégio de São Tomás, e transformou-os em residência, prevalecendo as referências góticas no interior, apesar das feições clássicas do exterior. Ao longo dos anos, a morada foi sendo povoada com mobiliário, criações dos antigos mestres e cerca de 30.000 livros raros. Com a sua morte, a viúva e os herdeiros decidiram vender a maior parte da coleção, e doar o palácio que a abrigava a uma ordem religiosa. Assim se agilizou, um ano depois, o grande leilão, cabendo à Empresa de Móveis Lda, sediada em Lisboa, gerir todo o processo logístico.
O respetivo catálogo descodifica o recheio desses 14 salões, que acomodavam à volta de 2500 obras de arte, incluindo 600 telas. Por aqui se cruzavam uma representação de São João Baptista então atribuída a Caravaggio, um grande desenho representando a Cabeça de um Homem com o selo de Rembrandt, ou a Glorificação da Virgem segundo o mestre Peter Paul Rubens, a que se juntavam gravuras de Goya, e ainda aguarelas de Turner e Delacroix. De Dürer a Velázquez, as grandes escolas e correntes de fora conviviam com os realistas nacionais que o coleccionador tanto prezava, como José Malhoa, Columbano e António Silva Porto. Chegou a pertencer-lhe “Guardando o Rebanho”, que pode agora ser visto no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto.
Há mais obras que pertenceram ao acervo Ameal que podem hoje ser vistas pelo grande público, depois das muitas voltas e contravoltas que fazem parte do circuito. O óleo “O concerto de amadores” (1882), de Columbano Bordalo Pinheiro, inscreve-se no acervo do MNACC, em Lisboa. O Estado adquiriu-o no leilão de 1921, como já antes Aires de Campo havia adquirido a tela, em 1892, quando se fragmentou a coleção de D. Fernando II (originalmente, o quadro foi uma oferta do artista à Condessa de Edla, após o financiamento dos seus estudos em Paris). Também neste museu se encontram faianças e escultura outrora pertença do conde.
Fora de portas, duas paragens com eventual interesse histórico e arquitectónico, ainda que o seu estado deixe muito a desejar. A Casa Azul, o chalet onde o conde se refugiava, nos arredores de Coimbra, anos votado ao abandono, e o jazigo que mandou erguer no cemitério da Conchada no final de oitocentos. Com um planta poligonal, deve o seu traçado e trabalho de escultura a João Machado, célebre artista de Coimbra que se destacou entre outros pela pedra trabalhada no hotel do Buçaco.
Do Louvre ao Prado, os principais museus da Europa enviaram a Portugal representantes para licitar naquele que seria a maior venda da península e um dos mais sonantes naquela década no continente. A oferta era complementada por centenas de porcelanas, faianças, azulejos, bronzes ou instrumentos musicais. Sem poupanças, Norberto de Araújo classificou-o como “o acontecimento ligado à Arte mais curioso e emocionante do último século”, capaz pelo menos de rivalizar com dois outros acontecimentos mediáticos que o antecederam. Em 1893, vendiam-se os bens do Rei D. Fernando II, alguns dos quais também viriam a engrossar o acervo Ameal. Em 1901, seria a vez de se leiloar a coleção do Conde da Foz. Mais por diante, o panorama do mercado da arte agitou-se em 1936, com a venda da coleção do banqueiro Burnay. E ainda em 1946, com o recheio do palácio Monserrate, recordava a leiloeira Veritas, em julho de 2022, quando uma tela que passou pelas mãos de Ameal voltou ao mercado. “Dos 2019 lotes (…) o quadro que agora trazemos a leilão diz respeito ao lote nº 1096, que era descrito da seguinte maneira “Tableau à l’huille sur bois “Nature mort”. École hollandaise, Van Huyssen.”. Através deste catálogo ficamos a saber que esta pintura se encontrava na sala I.”
Uns anos antes, a coleção, e respetivos caminhos que terá trilhado, ainda produzia assombro. Em 2014, o acaso de uma arrumação ao depósito da Fundação Dionísio Pinheiro, em Águeda, levou à descoberta da maior coleção do mundo de gravuras de Rembrandt. O conselho de administração da Fundação explicava então a procedência. “Terão sido compradas entre 1956 e 1958, na sequência de um leilão da coleção de arte do Conde do Ameal, que as adquiriu de uma coleção da Biblioteca Nacional de Paris. É esse o percurso conhecido das 282 gravuras, em traços gerais, até virem para Águeda”.