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Hospitais privados ameaçam não aderir ao programa de recuperação de cirurgias. Incentivos pagos ao nível de 2017 "não são realistas"

Ministério da Saúde quer dar resposta aos doentes que esperam por cirurgias não oncológicas, mas pretende pagar pela tabela de 2017. Hospitais privados e Misericórdias criticam "valores desajustados".

Os hospitais privados consideram baixos os valores que o Ministério da Saúde se propõe pagar pelas cirurgias realizadas fora do SNS e ameaçam não aderir ao programa de recuperação de cirurgias não oncológicas — que pretende dar resposta a todos os doentes que esperam por uma operação para lá do tempo recomendado. A Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) avisa que “o fator preço pode ser impeditivo” para muitos privados e lamenta que a ministra da Saúde e a Direção Executiva do SNS não tenham levado em conta as preocupações transmitidas nos últimos meses à tutela. No setor social, a União da Misericórdias Portuguesas (UMP) considera também que os valores estão “completamente desajustados”.

Em causa está o facto de, na portaria publicada esta quarta-feira, o Ministério da Saúde ter definido que são aplicados no programa de recuperação de cirurgias as tabelas de preços previstas na Portaria n.º 207/2017, que tem mais de sete anos. “Não faz sentido aplicar as tabelas de 2017. Estes valores estão completamente ultrapassados e desatualizados“, diz ao Observador o presidente da APHP, Óscar Gaspar, salientando que existe “uma diferença muito grande entre o custo real [dos procedimentos cirúrgicos] e o valor de tabela”.

Hospitais privados vão avaliar, mas preço pode ser “impeditivo”

O responsável da associação que representa os grupos de saúde privados considera que “os preços de 2017 não são realistas”, justificando a necessidade de atualizar as tabelas de preços por duas razões: a inflação e o aumento dos custos do trabalho. “Passaram muitos anos, com uma agravante: tivemos um crescimento da inflação significativo. E o custo dos recursos humanos (médicos, enfermeiros) é completamente diferente do de 2017”, realça Óscar Gaspar.

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O presidente da associação dos hospitais privados diz que "nos últimos anos, muitos tipos de cirurgias não foram feitas nos privado" devido aos valores das tabelas, que se vão manter

TIAGO PETINGA/LUSA

Neste sentido, o também ex-secretário de Estado da Saúde (no segundo governo de José Sócrates) avisa que muitos hospitais poderão não aderir ao plano de recuperação de cirurgias não oncológicas. “Cada hospital vai fazer essa avaliação, mas não posso garantir [que venham aderir]. O fator preço pode ser impeditivo em muitas cirurgias”, alerta o presidente da APHP. Óscar Gaspar garante que, desde abril, tem vindo a alertar, de forma insistente, tanto o Ministério da Saúde como a Direção Executiva do SNS para a necessidade de atualização das tabelas de preços dos procedimentos cirúrgicos. Mas sem sucesso.

A questão em torno da desatualização dos preços pagos pelo SNS aos setores privado e social não é nova. Segundo o presidente da APHP, os hospitais privados têm vindo, desde a pandemia de Covid-19, a realizar cada vez menos cirurgias ao abrigo do programa, muito devido ao desinteresse em realizar as cirurgias de acordo com uma tabela de preços desajustada. “Nos últimos anos, muitos tipos de cirurgias não foram feitas nos privados porque eles não conseguiram fazer ao preço estabelecido“, afirma Óscar Gaspar, acrescentando que, desde a pandemia, houve uma diminuição continuada e acelerada do número de doentes enviados para cirurgia pelo SNS.

Hospitais que não fizerem cirurgias em atraso vão pagá-las no privado

Privados fazem cada vez menos cirurgias a utentes encaminhados pelo SNS

“Por exemplo, este ano, e até à data de hoje, os hospitais públicos praticamente não recorreram aos privados para satisfazerem as necessidades que não conseguem suprir. No ano passado, os hospitais privados fizeram 250 mil cirurgias, das quais apenas 12 mil tiveram relação com o SNS. Nos últimos três anos, o SNS tem recorrido cada vez menos aos hospitais privados”, explica o responsável da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada.

Os dados de 2024 só estarão fechados em janeiro, mas, reforça Óscar Gaspar, em 2024 tem havido “muito menos SIGIC [Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia] do que em anos anteriores”.

Assinada pela ministra da Saúde, a portaria aprova o Plano de Curto Prazo de Melhoria do Acesso a Cirurgia Não Oncológica (PCPMACNO), que se destina à resolução da lista de espera nacional elaborada pelo grupo de trabalho do Plano de Emergência e Transformação da Saúde, com recurso aos setores social e privado, quando estiver esgotada a capacidade de resposta nos hospitais do SNS.

Assim, e segundo o diploma, todos os utentes que estão à espera de uma cirurgia para lá do Tempo Máximo de Resposta Garantido deverão ter uma data de agendamento de cirurgia até 31 de dezembro de 2024 e a cirurgia deverá ser realizada até 31 de agosto de 2025. Os utentes das Unidades Locais de Saúde que não forem intervencionados até final de agosto podem ser, caso aceitem, transferidos para os setores privado e social.

Do lado das Misericórdias, que concentram toda a resposta prestada pelo setor social na área cirúrgica, sobram também muitas críticas às tabelas de preços aplicadas no novo programa. “Nem sequer precisamos de ser especialistas em economia. Os preços de 2017 refletiam os custos de contexto desse ano. De 2017 a 2024, basta olhar para o aumento do salário mínimo (e o impacto que isso tem no custo da mão de obra em todos os níveis de rendimento) e para a própria inflação“, diz ao Observador o vice-presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Humberto Carneiro.

Para o responsável, os valores das tabelas de 2017, e que o Ministério da Saúde quer agora aplicar como referência para as cirurgias a realizar em 2025, estão “completamente desajustados”, uma vez que “aumentaram bastante os custos operacionais“. “Já nessa altura havia procedimentos cujos preços da tabela não correspondiam ao valor correto, imagine-se agora”, explica.

Ainda assim, Humberto Carneiro garante que as misericórdias vão continuar a colaborar com o SNS nesta área, apesar das críticas aos valores pagos pelo SNS — um problema para o qual (e à semelhança do que fizeram os hospitais privados) a UMP alertou a tutela. “Manifestámos a nossa preocupação à Unidade Central de Gestão do Acesso, na esfera da Direção Executiva do SNS, que nos disse que estava a ser preparada uma nova tabela”, refere o vice-presidente da UMP, ressalvando, no entanto, que não sabe se, e quando, a nova tabela de preços será publicada. Humberto Carneiro teme, aliás, que, a ser publicada, a nova tabela venha a conter alterações mínimas, sem impacto relevante na retribuição pelas cirurgias.

O cirurgião Jaime Vilaça (C) e a sua equipa operam uma paciente para remoção de um tumor maligno da tiroide, a tiroidectomia endoscópica transaxilar, uma técnica cirúrgica endoscópica, vídeo-assistida, de abordagem remota do pescoço que não deixa cicatriz visível, no Hospital de Santo André, em Leiria, 15 de maio de 2023. Esta técnica é praticada pelo o cirurgião Jaime Vilaça, desde 2014 em Portugal, mas o Hospital de Santo André em Leiria é a primeira entidade pública a fazer a cirurgia transaxilar à tiroide. (ACOMPANHA TEXTO DA LUSA DO DIA 25 DE MAIO DE 2023). PAULO CUNHA/LUSA

Cirurgias ao abrigo do SIGIC feita no privado e nas misericórdias têm caído de forma acentuada nos últimos anos

Paulo Cunha/LUSA

Tal como nos hospitais privados, também nas misericórdias se verificou uma grande quebra das cirurgias SIGIC nos últimos anos. “Antes da pandemia tínhamos muito mais produção do que hoje, estamos a 50% dos valores de 2019. Nesse ano, tínhamos uma capacidade instalada que era muito mais aproveitada”, diz o vice-presidente da UMP, adiantando que, em 2024, se registou “uma queda substancial” das cirurgias de doentes vindos do SNS.

Com uma dezena e meia de hospitais com capacidade cirúrgica (entre os quais hospitais de dimensão relevante como os de Braga, Póvoa de Lanhoso, Vila Verde, Felgueiras, Lousada, Prelada ou Anadia), as misericórdias têm uma “capacidade instalada superior à prevista nos acordos, tanto para consultas como cirurgias”, que permite, diz Humberto Carneiro, “responder de forma efetiva e atempada no combate às listas de espera”.

Misericórdias poderiam garantir cinco vezes mais consultas fora do SNS. Governo tem resistido a reforçar cooperação

Privados já têm “atividade cirúrgica intensa”. Capacidade tem de ser avaliada área a área

Para o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, a portaria que pretende dar resposta aos utentes do SNS na área cirúrgica “é um passo no bom sentido, mobilizando os recursos do sistema em prol da questão do acesso”, um problema que, sublinha, se tem vindo a agravar em Portugal, onde “as listas de espera estão cada vez maiores”.

Óscar Gaspar explica que os hospitais privados disponibilizaram-se para colaborar com o SNS, embora reconheça que a capacidade não é ilimitada. “Os hospitais privados estão com uma atividade cirúrgica intensa. A capacidade depende de região para região, de patologia para patologia“, ressalva o ex-secretário de Estado da Saúde, apontando como especialidades onde os hospitais mais podem apoiar o SNS a Oftalmologia, a Dermatologia e a Ortopedia.

“Os hospitais privados foram contactados pelo grupo de trabalho que estava com o Plano de Emergência para o SNS desde abril e demos conta da nossa disponibilidade e da capacidade que tínhamos quer em relação às cirurgias quer às consultas de especialidade. Fizemos uma elencagem por especialidade e região do país. Mantemos que há, em determinadas zonas disponibilidade para colaborar mais com o SNS”, detalha Óscar Gaspar, referindo-se às regiões de Lisboa e Vale do Tejo, região do Porto e Minho, no eixo Coimbra-Leiria. “Nestas, porque não cobrimos todo o país, há regiões do interior em que temos maiores dificuldades”, justifica o responsável.

Apesar de criticar a portaria da tutela, o responsável assinala, no entanto, uma mudança positiva, que tem a ver com o envio do processo clínico do chamado hospital de origem (do SNS) para o hospital de destino — um procedimento que, muitas vezes, é demorado e paralisa os procedimentos. “Há cidadãos que recebem vale cirúrgico, querem ir a um determinado hospital e depois o registo clínico não transita do hospital do SNS para o privado. Com esta portaria, a transição ou é automática ou o hospital do SNS tem cinco dias para fazer a transmissão. É um passo relevante na simplificação do processo”, realça.

O Observador questionou o Ministério da Saúde sobre a não atualização da tabela de preços, mas não obteve resposta.

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