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Infanticídio ou homicídio? Justiça não consegue resolver caso de bebé posto num saco de plástico há oito anos

Professora acusada de homicídio do seu recém nascido há oito anos foi julgada duas vezes e em ambas o Supremo mandou repetir para perceber se houve infanticídio. Terceiro julgamento está por marcar.

Dois anos depois e perante o coletivo de juízes do Tribunal de Aveiro, Marion ainda se emocionou quando recordou aquele dia de maio de 2011. Tinha a cunhada internada no hospital, por suspeitas de um aborto espontâneo a meio da gravidez, e precisava da cadeirinha de criança que ela costumava trazer no carro. Deslocou-se, por isso, à vivenda de três pisos onde a cunhada, Paula, vivia e tocou à campainha. A empregada abriu-lhe a porta, ainda trocou duas ou três palavras com ela e só depois se dirigiu ao Audi cinzento. Sentiu logo um cheiro nauseabundo, que percebeu vir da bagageira. Pensando na possibilidade de haver compras esquecidas, vasculhou os sacos que ali se encontravam. E encontrou o que dificilmente lhe sairá da memória: um saco de plástico com um bebé lá dentro, ainda ensanguentado e já sem vida.

Marion voltou a pôr tudo onde estava, dentro de uma mala de mão de senhora. Fechou a porta, passou como um relâmpago pela empregada e foi embora sem cadeirinha. Nervosa com a descoberta, telefonou ao cunhado, marido de Paula, que estava no Porto em trabalho, e que lhe terá respondido: “Vou já para aí”. A primeira coisa que João fez, porém, foi ligar para um amigo advogado, para saber o que fazer. José Pedro Azevedo, esse amigo, incentivou-o a contactar a polícia. Antes, o empresário ainda passou no hospital Infante D Pedro, onde a mulher, Paula, estava internada por causa de hemorragias na sequência de um alegado aborto. Queria confrontá-la com a descoberta de Marion. Mas ela, visivelmente perturbada, só soube responder que “queria ficar com o bebé”.

João, um empresário à data com 37 anos, tinha já dois filhos com Paula. Ela, professora, três anos mais velha, estaria à espera do terceiro, numa gravidez que, segundo descreveram às autoridades, não foi planeada, mas que acabou por ser desejada. Dois dias antes da chamada de Marion, a 11 de maio de 2011, tinham sido as colegas de Paula a ligar a João, dando conta de que ela perdera o bebé, num momento em que sentiu mal — após uma prova de aferição na escola onde dava aulas. Foram as colegas que, ao se aperceberem da hemorragia, chamaram uma ambulância do INEM, que a levou para o hospital. Todos pensavam que tinha perdido o bebé.

Paula, à data com 40 anos, tinha dois filhos de Paula. Estavam à espera do terceiro numa gravidez que, segundo descreveram às autoridades, não foi planeada, mas que acabou por ser desejada.

Hospital alertou a Polícia Judiciária

Nesse mesmo dia, a inspetora Cristina Coelho estava de piquete na PJ de Aveiro quando recebeu um telefonema de um subdiretor da PJ de Coimbra, dando-lhe conta de que algo se passava no hospital de Aveiro. Não tinha muitos pormenores, falava num nado-morto e/ou na possibilidade de um crime de infanticídio. Um crime que, aliás, só voltaria a ser denominado assim já no Supremo Tribunal de Justiça — e que, depois, acabou por tornar-se a peça central do processo, consultado pelo Observador.

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O alerta dado ainda naquele dia à Polícia terá partido da própria unidade hospitalar, após Paula chegar às urgências, e dois dias antes da descoberta de Marion. Aos médicos e enfermeiros, Paula disse o mesmo que contou às colegas de trabalho e aos bombeiros que a levaram: estaria grávida de 16 semanas e tinha sofrido uma grave hemorragia.

A médica Rosa Neto descreveu o “episódio” à polícia, por telefone, como “insólito”. É que o quadro clínico daquela paciente, à data com 40 anos, que entrou no serviço de urgências pelas 13h20, não era compatível com o de uma mulher que tinha sofrido um aborto às 16 semanas de gestação, mas antes com um parto recente de um bebé de termo — pois o útero estava muito dilatado e existia uma laceração perineal. Não havia sequer placenta, nem bebé. E Paula, que era já mãe de dois filhos de quatro e nove anos, informara-a, inclusive, que aquela gravidez ainda nem sequer tinha sido acompanhada por um profissional de saúde.

A mulher manteve sempre esta versão da história, mas algo mais inquietou a médica Rosa Neto. No seu registo clínico havia uma situação muito semelhante àquela. Em 2008, Paula também tinha entrado no hospital com hemorragias. A equipa médica que a atendeu perguntou-lhe se estava grávida. Ela garantiu que não, que tomava um método anticoncecional, tinha tido menstruação no mês anterior e teria, até, feito um teste de gravidez que deu negativo. No entanto, revelara ter expelido um grande coágulo de sangue. Mais uma vez, os exames médicos revelaram um cenário diferente: o útero de Paula estava aumentado e havia laceração perineal, o que ocorre, normalmente, na sequência do trabalho de parto, lê-se no relatório médico que consta no processo.

Ela negou. E manteve que só soube que tinha estado grávida pelos médicos. Uma reação que surpreendeu a médica Rosa Neto. À inspetora da PJ que acabou por deslocar-se ao hospital para a ouvir, a médica relatou mesmo que, apesar da insistência dos médicos, “a serenidade com que a paciente encarou esta situação”, mesmo após a ter confrontado com a hipótese de ter parido, causou-lhe estranheza.

A médica Rosa Neto descreveu por telefone à polícia o "episódio" como "insólito". É que o quadro clínico daquela paciente que entrou no serviço de urgências não era compatível com o de uma mulher que tinha sofrido um aborto às 16 semanas, mas antes com um parto recente de um bebé de termo

Paula diz que deu à luz na casa de banho da escola. E que o bebé não reagia

Naquela manhã, Paula saiu de casa para mais um dia de trabalho na escola de ensino básico onde era professora, nos arredores de Aveiro. Era dia de prova de aferição de Matemática e havia regras escrupulosamente definidas pelo Ministério da Educação para cumprir. Ainda a prova não tinha acabado, a professora começou a sentir-se mal, com pontadas na barriga, como acabaria por descrever mais tarde à PJ. Ainda foi duas vezes à casa de banho, mas acabou sempre por desvalorizar os sintomas e regressar à sala.

Só pelas 11h30, segunda conta, as cólicas tornaram-se insuportáveis e não aguentou mais. Já de volta à casa de banho destinada aos professores e às funcionárias, acabaria por expulsar o bebé que tinha na barriga.

Maria, apesar de colega e amiga de longa data, só soubera duas semanas antes, numa visita de estudo, que Paula estava grávida. Meses antes, até tinha estranhado o inchaço que ela apresentava na barriga e ousou perguntar-lhe se estaria à espera de um bebé. Ela, descrita como uma mulher muito reservada, disse logo que não. Sofria, sim, de um mioma, que lhe provocava aquele aspeto físico. Só mais tarde a professora acabou por admitir que estava, de facto, grávida.

Maria percebeu pela cara de Paula que ela não estava a sentir-se bem. E, na terceira ida à casa de banho, a mais demorada, acabou por pedir a uma colega que fosse ver se estava bem. De seguida, foi lá ela, pedir-lhe que deixasse a porta aberta, não fosse acontecer-lhe alguma coisa. Paula, no entanto, manteve-se trancada no cubículo, composto por uma zona de chuveiro.

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A auxiliar que ali trabalhava contou às autoridades que os únicos sons que ouviu durante aquele tempo foram o do autoclismo a ser puxado insistentemente, o dispensador de papel e o barulho de sacos de plásticos a serem remexidos, que associou aos do papel higiénico que ali costumavam estar. A certa altura, Paula abriu a porta e pediu-lhe que fosse buscar a mala dela. E foi aí que a funcionária percebeu que havia sangue no chão e que a professora não lhe parecia bem.

O que se passou naquela casa de banho acabou revelado à PJ, quatro dias depois, já o corpo do bebé tinha sido encontrado e Paula constituída arguida. Ela argumenta que, quando pegou no bebé, ele não teve qualquer reação. “Aterrorizada e frustrada”, por já ter no seu histórico clínico dois episódios de aborto, limpou-se e, como sentira “uma vontade incontrolável de estar com o bebé”, cortou-lhe o cordão umbilical e enfiou-o num saco de plástico que ali havia.

A auxiliar que ali trabalhava contou às autoridades que os únicos sons que ouvia enquanto Paula ali permanecia eram o do autoclismo a ser puxado insistentemente, o dispensador de papel e o barulho de sacos de plásticos a serem remexidos.

A mulher, que acabaria por ser acusada por homicídio qualificado e profanação de cadáver, lembra-se de as colegas terem chamado uma ambulância do INEM e de ainda ter conseguido ir ao carro deixar a mala onde escondera o bebé. Ainda hoje não consegue explicar por que razão não disse o que acabara de lhe acontecer, nem sequer se lembra das palavras ou frases que proferiu já no hospital.

As professoras e as funcionárias que a ajudaram ainda voltaram a falar com a polícia sobre este caso, mas para denunciar que começaram a receber mensagens ameaçadoras no telemóvel, todas anónimas, insinuando que eram cúmplices de um crime. E que também elas seriam arguidas no processo. A PJ, segundo o que consta nos autos, não chegou a investigar a autoria destas ameaças.

Autópsia não conseguiu revelar causa da morte

Paula só prestou declarações dois dias depois de ter sido constituída arguida, a 13 de maio. Nesse dia pediu à PJ tempo para se restabelecer emocionalmente. Só no dia 16 detalhou que esta era a sua quinta gravidez e que, apesar de ser acompanhada por um médico, já tinha sofrido dois abortos.

A primeira gravidez, contou, foi de uma menina, a sua filha mais velha. Na segunda foi detetada uma mal formação no feto e ela teve de abortar. Depois nasceu o segundo filho e, cerca de um ano mais tarde, voltou a engravidar. Foi quando, garante, sofreu uma hemorragia em casa e só no hospital percebeu que estava grávida. Todo este percurso, recordou, fez com que vivesse esta quinta gravidez numa grande ansiedade e temendo que algo corresse mal.

À data, descreveu, estava grávida de 36 semanas e não de 16, como disse aos bombeiros que a transportaram ao hospital. Estava tudo bem, mas a última ecografia que fizera, em abril, trouxe-lhe mais receios ainda, uma vez que o bebé não se mexia muito.

O gabinete médico-legal de Aveiro, que recebeu o bebé, concluiu logo, pelas suas características, que era um bebé nascido de termo. A autópsia só seria terminada mais de um ano depois, em novembro de 2012, revelando que o bebé nasceu com vida, ou seja, respirou imediatamente a seguir ao parto, e que tinha lesões típicas de um parto, não conseguindo o exame determinar a causa da morte. A autópsia não excluiu, no entanto, a intervenção de terceiros.

MP ouviu a médica que acompanhou a gravidez e concluiu que Paula falhou consultas

Com este resultado, a PJ deu como terminada a investigação, mas a procuradora do Ministério Público ainda quis chamar a médica que teria acompanhado aquela gravidez, numa clínica de Aveiro. Elvira Rito viria a contrariar algumas das palavras da arguida. A médica contou às autoridades que, na única consulta que teve com aquela paciente, Paula estava acompanhada por uma mulher mais velha e pareceu-lhe “pouco à vontade”. Alegou que paciente lhe trouxe uma ecografia que indicava que estaria grávida de 29 semanas, mas o tamanho da sua barriga parecia não corresponder a esse tempo de gestação. Então, a especialista sugeriu que repetisse a eco e  remarcasse uma consulta para 2 de maio, para a mostrar. Paula faltou e a consulta foi remarcada para 16 de maio, três dias após o parto na casa de banho, pelo que, naturalmente, faltou.

A médica diz, no entanto, que não lhe pareceu que Paula estivesse perturbada psicologicamente ou mesmo desequilibrada, nem que rejeitasse a gravidez. O mesmo foi assim entendido pela médica que a assistiu no hospital no dia do parto.

Ao longo do processo, Paula recusou sempre que não tivesse tido acompanhamento, alegando que tinha os exames consigo. Chegou também a dizer que só soube que estava grávida às 16 semanas, por continuar a ter perdas de sangue mensais. Mas, cansado de esperar, o tribunal acabou por pedir toda a documentação à clínica e o hospital.

A suspeita de outro infanticídio

Em janeiro de 2012, as autoridades voltaram a chamar Paula. Queriam ouvi-la sobre a hemorragia que sofrera em 2008 e após a qual fora assistida no hospital.

Dias antes, tinha chegado ao processo o relatório médico redigido na altura. Paula entrara no serviço de urgência porque tinha perdido uma grande quantidade de sangue, mas negava que estivesse grávida. Mais uma vez, porém, o que os médicos encontraram não corroborava a sua versão: a professora apresentava uma laceração perineal, que ocorre normalmente na sequência do trabalho de parto, e a lesão era de segundo grau — o que, normalmente, corresponde a um feto volumoso, decorrendo em partos a termo (superiores a 37 semanas). No documento escrito pela equipa médica existem vários pontos de interrogação escritos à mão a seguir à palavra “pós-parto”.

Paula, por seu turno, manteve que só tomou conhecimento dessa gravidez naquele momento, até porque tomava contracetivos e tinha tido menstruação no mês anterior. O marido foi ouvido logo depois e disse à PJ que desconhecia qualquer gravidez, muito menos que Paula fizera um teste para saber se estava grávida.

Quem assistiu Paula não achou que estivesse perturbada psicologicamente. A sua gravidez não foi acompanhada por um médico logo no início. Ela alega que desconhecia estar grávida.

Perante as suspeitas de que Paula poderia já ter feito o mesmo antes, a Polícia Judiciária lembrou-se de um caso que permanecia no dossier de crimes por resolver: o do cadáver de um bebé encontrado numa zona de mato após um incêndio, que nunca tinha sido identificado. Dada a coincidência, o MP autorizou que fossem comparados os testes de ADN do bebé e de Paula. Um mês depois, as autoridades perceberam que não havia correspondência. Esse crime continua por resolver.

O caso será julgado pela terceira vez no Tribunal de Aveiro

Marcos Borga/LUSA

O primeiro julgamento. E os recursos até ao Supremo, que manda repetir

Paula acabou por ser formalmente acusada de homicídio qualificado e profanação de cadáver do seu recém-nascido com o julgamento a arrancar em novembro de 2013. A presidir ao coletivo de juízes estava o juiz Pacheco Duarte, a representar o Ministério Público estava o procurador Simões de Almeida.

A atenção mediática do caso ainda levou o advogado de Paula a tentar que as sessões decorressem à porta fechada, para não expor a professora a um “julgamento público”, mas o seu pedido foi declinado por falta de fundamento legal. Na sala de audiências, a arguida contou — muitas vezes, a engolir em seco, como viria a reparar o tribunal — que, depois de expulsar o bebé, ainda esteve prostrada no chão, que o bebé não reagia e que as colegas insistiam para sair da casa de banho. Então, pousou-o no lavatório e tentou limpar-se o melhor que podia. Decidiu, depois, levar a criança na mala para poder estar mais tempo com ele. Achou que, se dissesse o que tinha acontecido, iam tirar-lhe o filho imediatamente.

“Os sentimentos estão cá dentro, mas parece que não querem sair cá para fora”, chegou a dizer Paula, que, desde o dia do parto, toma antidepressivos para se sentir menos transtornada.

O psiquiatra que a seguiu depois do alegado crime contou ao tribunal que a sua paciente não apresentava sintomatologia psiquiátrica, estava apenas deprimida. Algumas testemunhas descreveram-na como uma mulher terna, meiga e carinhosa.

Antes de marcar a leitura da sentença, o coletivo de juízes ainda decidiu acrescentar alguns factos à acusação, entre eles um que mereceu especial reação da defesa: o tribunal concluiu que Paula faltou à consulta no inicio do mês de maio porque já tinha intenção de roubar a vida aquele bebé.

O advogado de defesa de Paula alegou que essa mudança na acusação era, na verdade, uma verdadeira correção da acusação e que não podiam os juízes concluir que ela premeditara o crime por ter adiado a consulta de 2 de maio para 16 de maio — a que já não foi porque o bebé nasceu. Pediu então para serem ouvidas mais testemunhas e o tribunal aceitou. A sentença foi então marcada para o dia 4 de fevereiro de 2014, mas, nesse dia, uma carta escrita à mão e assinada por Paula chegava ao processo. A arguida estava internada e não tinha condições de comparecer no tribunal de Aveiro para ouvir o que o coletivo teria a dizer.

Os juízes adiaram, então, a leitura para o dia 10, por considerarem a presença da arguida imprescindível. E pediram reforço policial para as instalações do tribunal. “A arguida apresentou um depoimento frio, seco, sem transparecer qualquer sentimento ou emoção, desviando olhar ou fixando-o no chão quando negava ter morto o filho ou quando se fechava sem explicar por que motivo escondeu o efetivo período de gestação do bebé ou quando procurou justificar não ter pedido ajuda nem ter dito nada além das cólicas”, leu o juiz.

E condenou-a a uma pena única de treze anos e seis meses de cadeia por homicídio qualificado e profanação de cadáver. O Ministério Público pediu que ela ficasse logo em prisão preventiva, mas os juízes não viram razão para o fazer.

Paula recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra. A decisão seria assinada a 17 setembro de 2014 e confirmava exatamente a mesma pena aplicada pelo tribunal de primeira instância. A defesa de Paula, no entanto, não baixou os braços e mandou o caso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando nulidades no processo.

Quase um ano depois, a 26 de maio de 2015, os juízes conselheiros José Vaz dos Santos Carvalho, Isabel Martins e José Souto Moura, numa decisão que precisou de desempate, mandavam repetir o julgamento: pediam uma perícia psiquiátrica para esclarecer a motivação do crime e o seu estado emocional e psicótico na altura. Não para atestar a inimputabilidade, advertiam, mas para perceber se agiu sob influência perturbadora do parto e se devia, nesse caso, responder pelo crime de infanticídio — e não pelo de homicídio. Consideraram que era necessário perceber o que a levou a matar o bebé. E esse acabaria por tornar-se um ponto central no processo, por ser o que distingue um tipo de crime do outro.

Numa declaração de voto assinada pelo magistrado José Souto Moura, lê-se que a fundamentação da matéria de facto não mereceu reparos. Porém, “é impressivo” que, tanto no julgamento de primeira instância, como na Relação, nem o tribunal nem o Ministério Público se tenham preocupado em fazer perícias psicológicas ou psiquiátricas da arguida. Mesmo a defesa, notava, nunca se mostrou preocupada com esse assunto. Foi vencido, explicou, apenas porque considera que uma reconstituição do estado psiquiátrico da arguida quatro anos depois não faria sentido.

A segunda decisão do Supremo Tribunal que mandou repetir novamente o julgamento foi clara: era necessário fazer perícias à arguida, não para atestar a inimputabilidade, mas para perceber se agiu sob influência perturbadora do parto e se devia, sim, responder pelo crime de infanticídio.

O segundo julgamento e os recursos que voltam a mandar repeti-lo

Por essa altura, há no processo uma mudança de advogado da arguida, que passa a ser representada por Susana Costa e Servulo Ponciano. O pedido de uma perícia psiquiátrica com a máxima urgência aparece com a data de 17 de fevereiro de 2016, com uma marcação do julgamento logo para 13 de abril desse ano. Acabaria adiado para novembro.

A perícia, porém, não é clara sobre se Paula estava ou não, num estado que pudesse sustentar o crime de infanticídio — ou seja, sob influência da pertubação psicológica e emocional do parto. Os perito viriam a constatar apenas que, ao contrário do que acontece com a depressão, a psicose puerperal pode ser correntemente observada em mulheres que matam os seus filhos recém-nascidos — as quais precisam de tratamento e não de punição, pois só a intervenção terapêutica previne que voltem a matar. “Um parto em condições extremas pode provocar uma perturbação mental idêntica à perturbação aguda de stress. Esta perturbação pode durar dois dias e não persiste além de quatro meses após o evento traumático”, lê-se. Nestes casos, o paciente parece anestesiado, distante e sem resposta emocional.

A perturbação é transitória e de avaliação difícil, mas, no caso de Paula, “pode ter-se tratado de uma personalidade transitoriamente em desarmonia, reagindo a emoções primárias com deficiência de crítica e portanto não completamente responsável pelo seu delito”. Os peritos revelaram que Paula, àquela data e já depois do julgamento, revelava estar num estado depressivo, com incapacidade permanente total e ideias suicidas — sem conseguir sequer voltar ao trabalho.

Sem certezas da perícia quanto ao que aconteceu, de facto, com a arguida, a segunda sentença do julgamento seria conhecida a 1 de março 2017, mantendo exatamente a mesma pena: os 13 anos e seis meses. O juiz presidente Raul José Cordeiro, porém, não faz qualquer referência ao eventual infanticídio ou sequer à ponderação entre os dois tipos de crimes, exigida pelo Supremo Tribunal de Justiça. Para o tribunal, é certo que se tratou de um homicídio seguido de profanação do cadáver: “A imagem global do ilícito é, no caso, marcada fortemente pelo homicídio praticado sobre o bebé, surgindo a ocultação do cadáver, por parte da arguida, como um procedimento destinado a ocultar aquele seu outro crime”, considerou.

Paula não estava lá nesse dia para ouvir a sentença que a condenava novamente. E foi multada por isso.

Mais uma vez, os advogados de Paula recorreram a ao Tribunal da Relação. Desta vez, os juízes desembargadores Pedro Vaz Pato e Eduarda Lobo reduziram a pena para nove anos e seis meses. Razão: consideraram estar perante um homicídio simples e não qualificado, logo com uma moldura penal menor. Mais uma vez, o tema do infanticídio volta a não ser referido.

Seria apenas depois, quando o caso voltou ao Supremo Tribunal de Justiça, em mais um recurso. A 18 de outubro de 2018, mais de sete anos volvidos sobre o alegado crime, os conselheiros Carlos Rodrigues de Almeida e António Clemente Lima fizeram parte do processo voltar à estaca zero. Determinaram o reenvio parcial do processo para o novo julgamento e esclareceram porquê: é necessário perceber se houve ou não infanticídio. Não se trata de, ao contrário do que fez a Relação do Porto, perceber se estão perante um homicídio simples, “mas determinar com rigor a amplitude da questão” tal como o próprio Supremo já tinha decidido. “Pretende-se evitar que o crime permaneça na sombra da incompreensibilidade. Devia ter sido reapreciado o enquadramento jurídico penal da conduta, independentemente do dolo. Importava saber se a morte tinha ocorrido sob influência perturbadora do parto”, lê-se na decisão. Não tendo sido feito isso, apesar da primeira decisão superior o determinar, o Supremo não viu outra hipótese senão a de um novo julgamento.

Oito anos depois, à espera de um terceiro julgamento

Em janeiro deste ano, 2019, o processo foi entregue a um juiz do tribunal de Aveiro, que considerou que em causa estava a decisão da Relação, que tinha optado por uma condenação pelo homicídio simples, logo não podia ser ele a julgar o caso. Mas deste tribunal veio logo uma apreciação diferente: o processo teria que voltar à primeira instância, caso contrário estavam a restringir os direitos de defesa da arguida.

O novo julgamento devia cingir-se apenas a esta questão. Em abril, o tribunal pediu novas perícias ao Instituto Nacional de Medicina Legal. Os últimos documentos que constam no processo são uma informação do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do hospital, em inícios de novembro, dando conta que a arguida não compareceu nos exames, e a justificação, dias depois, da sua advogada: Paula esteve no hospital, mas, por problemas que lhe são alheios, não pôde fazer os exames.

Entretanto, os exames foram remarcados e só depois de serem concluídos poderá ser marcado novo julgamento para apurar se no dia do crime agiu sob a influência perturbadora do parto, fundamento do infanticídio. Passaram, entretanto, mais de oito anos daquele momento que o Ministério Público considerou um homicídio. E é depois de todo esse tempo que a justiça vai tentar avaliar o estado psicológico de Paula naquele dia.

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