Foi uma previsão que se revelou certeira. Em 2019, numa entrevista a um canal de televisão, o então conselheiro do governo ucraniano, Aleksey Arestovich, previa um cenário de “guerra total” com a Rússia entre 2022 e 2024. E o homem, de então 44 anos, detalhava como é que se desencadearia uma invasão à Ucrânia: “Uma ofensiva militar aérea, um ataque do exército russo, um cerco a Kiev, uma tentativa de encurralar as forças ucranianas em Donetsk, um ataque para assegurar água potável à Crimeia, ataques desde a Bielorrússia, a proclamação de repúblicas separatistas, ataques às infraestruturas.”
Este vídeo saiu do arquivo a que estava destinado e tornou-se viral na Ucrânia logo após a invasão. O episódio parecia confirmar as qualidades de Aleksey Arestovich, quer no cargo de conselheiro presidencial quer no seu papel de analista militar, que desempenhava desde 2014, após a anexação da Crimeia. Com uma ofensiva em solo ucraniano, tudo levava a crer que Arestovich estava no lugar certo à hora certa.
Antes de chegar aos corredores da presidência ucraniana — e ao círculo mais próximo de Zelensky, até apresentar a demissão, esta terça-feira, por declarações sobre o ultra-sensível tema da destruição de um prédio residencial em Dnipro, que provocou dezenas de mortos —, Aleksey Arestovich já tinha desempenhado várias funções na vida. Foi ator, psicólogo, deu palestras motivacionais, estudou teologia, astrologia e biologia. De todas estas carreiras, aquela em que ganhou mais protagonismo foi quando começou a comentar assuntos militares e políticos. Criou um blogue, depois um canal de YouTube, depois uma conta de Facebook, depois aumentou a pegada digital no Instagram. O resultado? Tornou-se um influencer com mais de um milhão de seguidores em todas aquelas redes sociais.
O início do conflito acabou por ser uma oportunidade para que Aleksey Arestovich ganhasse ainda mais notoriedade. Muitas vezes, era ele o responsável por comunicar à nação as últimas novidades sobre a guerra. Apesar de algumas polémicas em que se viu envolvido ao longo do seu percurso, a figura do (agora ex) conselheiro presidencial reúne consenso. Por um lado, uma sondagem publicada recentemente dava conta de que 2,4% dos ucranianos o elegiam como político mais influente em 2022; por outro, 65% confiavam em Arestovich. Era o segundo nome na lista com maior taxa de aprovação, abaixo apenas de Volodymyr Zelensky.
Parecia claro para a presidência da Ucrânia que Aleksey Arestovich era um ativo valioso, especialmente junto da opinião pública ucraniana, tornando-se mais do que um assessor ao assumir funções mais visíveis para o público. Mas essa notoriedade estava encerrada dentro das fronteiras do país. Para a comunidade internacional, o rosto mais visível foi sempre o de Mykhailo Podolyak, outro conselheiro de Volodymyr Zelensky, que partilha, sobretudo nas redes sociais, os últimos desenvolvimentos do conflito.
O pecado de Arestovich
Enquanto profissional responsável por boa parte da comunicação de Zelensky, Aleksey esperava-se que Arestovich surgisse com um discurso alinhado com o do Presidente ucraniano. Contudo, isso não aconteceu no domingo. Num vídeo do YouTube, o (ex-)conselheiro admitiu a possibilidade de ter sido a defesa aérea ucraniana, após intercetar um míssil russo Kh-22, a causar a destruição de um edifício residencial em Dnipro no último sábado. Um ataque que causou, segundo a última contabilização, ainda provisória, 45 mortos e 22 desaparecidos.
Embora Aleksey Arestovich tenha ressalvado que, em última instância, a Rússia era o país culpado pelos danos provocados naquele complexo de edifícios civis — uma vez que, se “não tivesse havido ataque russo, a tragédia não teria acontecido” —, o episódio causou indignação na Ucrânia, especialmente após a Força Aérea de Kiev ter aclarado que não possui sistemas de defesa aérea capazes de destruir os mísseis Kh-22.
Mas a indignação ainda subiu mais de tom quando o Kremlin se aproveitou destas declarações para afastar responsabilidades pela destruição causada em Dnipro, com o porta-voz da presidência russa, Dmitri Peskov, a lembrar “as conclusões de alguns representantes do lado ucraniano” para apontar o dedo às autoridades de Kiev.
Ciente do impacto do que tinha dito, Aleksey Arestovich reagiu nas redes sociais e justificou o sucedido com o cansaço que sofreu ao longo dos 320 dias de guerra. “Estou simplesmente cansado. 320 dias a fazer vídeos, além de outros trabalhos. Privação de sono constante, muitas informações, viagens de negócios. Milhões de documentos para analisar, todos com informações muito urgentes e importantes”, escreveu nas suas redes sociais na segunda-feira.
Porém, o conselheiro da presidência ucraniana garante que o seu “erro” não “trouxe consequências” para a Ucrânia. “O nível de ódio dirigido a mim é incomparável com as consequências do erro”, assinalou Aleksey Arestovich, acrescentando que esta onda de comentários negativos tem duas origens. A primeira vem de Moscovo, que “tenta enfraquecer a influência dos serviços de informações ucranianos”; a segunda deriva da “oposição ucraniana”, que almeja ganhar “pontos políticos durante a guerra pensando em futuras eleições”.
Horas depois, o conselheiro apresentou a demissão, divulgando a informação também nas redes sociais. Com uma fotografia da carta de demissão, Aleksey Arestovich destacou que “queria mostrar um exemplo de comportamento civilizado”: “Um erro fundamental deve levar à renúncia.” A publicação no Facebook já chegou às 28 mil reações.
Arestovich: um mentiroso ou comunicador nato?
Esta falha de comunicação pode ter sido a mais grave na carreira de Aleksey Arestovich, mas não foi a única. Como lembra a ONG Open Democracy, o antigo conselheiro tem sido acusado de falta de conhecimento em várias temáticas e, até, de em muitas situações difundir informações falsas, chegando mesmo a admiti-lo nas redes sociais. “Menti muito desde a primavera de 2014”, assumiu, sublinhando que o que fez era apenas “trabalho de propaganda”, consequência “da agressão militar contra a Ucrânia” na Crimeia.
A impressão que fica, aos olhos de alguns analistas, é a de que Aleksey Arestovich sabe efetivamente comunicar, mas faltam-lhe conhecimentos suficientemente sólidos que sustentem as suas opiniões. “É um bom relações públicas, mas não é nenhum analista, nem especialista militar ou político”, sintetiza Ruslan Bortnik, diretor do think tank Instituto Político Ucraniano, que também lembra o episódio em que o ex-conselheiro de Zelensky parecia adivinhar como se desenvolveria uma guerra na Ucrânia.
“Quase todos os cientistas políticos ucranianos sérios previam [a guerra]”, prosseguiu Ruslan Bortnik, realçando que o ex-conselheiro fez algumas “previsões” e “só algumas se tornaram realidade”. “Ele antecipou que a Rússia colapsaria em 2014. Ele disse que a ponte de Kerch [que liga a Rússia à Crimeia] nunca seria construída e que a Ucrânia ganharia controlo de Lugansk e Donetsk em novembro de 2014.” A realidade é que nada disto aconteceu.
Na ótica do cientista político Maxim Yali, o ex-conselheiro de Zelensky, apesar da falta de profundidade nos assuntos sobre os quais recaem as suas análises, tem um papel a desempenhar, principalmente durante o conflito. “Quando as pessoas estão sob stress tremendo, precisam de alguém que as guie. Precisam de um especialista em que possam confiar, cujas declarações as apoiem psicologicamente. Esse é papel que Arestovych desempenha na perfeição”, considerou aquele especialista, em declarações à Open Democracy.
A extrema-direita e o “ódio à esquerda”
Politicamente, o percurso de Aleksey Arestovich já sofreu várias reviravoltas. Em 2005, juntou-se ao partido de extrema-direita ucraniano Bratstvo e participou em várias conferências em Moscovo em que também estava presente Alexander Dugin — o guru e ideólogo de Vladimir Putin. O ex-conselheiro apoiava o neoeurasianismo, ou seja, uma corrente de pensamento geopolítico (mas também com implicações sociais e culturais) que distingue a civilização russa da ocidental e da asiática, advogando um reforço da importância geopolítica da Rússia, à semelhança daquela que a União Soviética tinha, mas no contexto de uma relação estável com o seu Ocidente mais próximo (a Europa).
Mas, num evento na capital russa — juntamente com Dugin —, o ex-conselheiro chegou a assumir posições críticas em relação ao mundo ocidental. As grandes potências oeste de Kiev e Moscovo “não vão dar aos ucranianos a oportunidade de preservar a sua cultura”. Em vez disso, Aleksey Arestovich alegou que os parceiros ocidentais “procederiam à reprivatização de infraestruturas estrategicamente importantes”, que passariam a ser controladas por Washington e Bruxelas.
https://www.youtube.com/watch?v=K4UaCBL1OrU&ab_channel=Tania
Confrontado em 2022 com o seu passado político e com esta ligação ao guru de Putin, Aleksey Arestovich retratou-se desta afirmação e sublinhou que estava no evento enquanto “funcionário dos serviços de informações ucranianos”.
Na opinião de Ruslan Bortnik, o ex-conselheiro não é atualmente um radical pró-russo, nem está próximo ideologicamente da extrema-direita. “Ele apoia um nacionalismo integrado ucraniano, em vez de um nacionalismo étnico”, explica o diretor do think tank Instituto Político Ucraniano. Ao longo dos anos, certo é que Aleksey Arestovich foi-se afastando do Bratstvo, acabando por abandonar o seu partido político em 2010 — e desde então mantém-se como independente na cena política ucraniana.
No entanto, algumas visões de Aleksey Arestovich continuam a chocar as opiniões mais moderadas. Recentemente, o ex-conselheiro confessou, durante uma entrevista, que “odeia a ideologia de esquerda”. “Sabem por que motivo eu não gosto de ativismos? Porque qualquer ativismo é uma coisa de esquerda. Eu não sou de esquerda, odeio esta ideologia”, disse.
O tom das críticas contra os ativistas ucranianos de esquerda ficaria ainda mais claro no decurso da entrevista. “Essas pessoas têm todos problemas. Elas só sabem estar zangadas sem razão. Eles querem estar constantemente na posição de vítimas. A sua retórica baseia-se em cancelar alguém, ou fingirem que são uma vítima”, atirou Aleksey Arestovich, que também demonstrou uma posição anti-LGBT+.
O ex-conselheiro de Zelensky chegou a considerar que a minoria LGBT+ é formada por um grupo de “pessoas com deformações”. “Eu disse muitas vezes e não o vou esconder: eu trato estas pessoas como sendo um desvio à norma. Nesse sentido, sou um conservador”, reconheceu Aleksey Arestovich. Ao mesmo tempo que garantia ser contra a perseguição de quem tem uma orientação sexual que não a heterossexual, Arestovich assumia ter um posicionamento “duro” relativamente à “propaganda LGBT+”.
A vida como ator e psicólogo
Nascido na Geórgia em 1975, os pais de Aleksey Arestovich não eram ucranianos. O pai tinha ascendência bielorrussa e polaca, enquanto a mãe era russa. Mas decidiram ir viver para a Ucrânia aquando da dissolução da União Soviética. Aos 18 anos, inscreve-se Faculdade de Biologia integrada na Universidade Nacional de Taras Shevchenko, em Kiev, ao mesmo tempo que se interessa por teatro amador.
A paixão pela representação, que partilha curiosamente com Volodymyr Zelensky, acabou por ser mais forte e isso levou-o a decidir abandonar a faculdade. Desde aí, apostou numa carreira no cinema, participando em filmes e em anúncios publicitários. Ainda assim, Aleksey Arestovich não teve grande êxito no mundo dos holofotes e decidiu fazer, nos inícios dos anos 2000, formações na área da psicologia e da astrologia. Simultaneamente, estudou teologia no Instituto de Ciências Religiosas de São Tomás de Aquino, em Kiev.
Antes de aderir ao partido de extrema-direita, Aleksey Arestovich fez ainda um curso de formação militar em Odessa, que lhe deu as bases suficientes para se juntar às milícias ucranianas em 2014 na luta em Donbass.
Todo este percurso universitário e formativo, principalmente na área da psicologia e da teologia, foi cimentando em Arestovich a ideia de poder fundar a sua própria escola de pensamento — a Apeiron — que, segundo se lê no site, “usa métodos que resultam da intersecção da filosofia e psicologia”. O objetivo é tornar cada pessoa “melhor a alcançar os seus objetivos”, bem como a “defini-los”. A escola disponibiliza vários cursos e seminários, na área do autoconhecimento, da política e da história.
Sucessor de Zelensky? O futuro de Arestovich
O ex-conselheiro de Volodymr Zelensky já fez quase tudo na vida e poderá agora dedicar-se a tempo inteiro à sua escola de pensamento, ou então escolher uma nova área de formação. “Vou procurar oportunidades para me desenvolver”, indicou Aleksey Arestovich nas redes sociais.
Numa vida que pode ser definida com versátil, poderá haver um cargo que no futuro poderá interessar a Aleksey Arestovich: o de chefe de Estado. O ex-conselheiro não esconde as suas ambições presidenciais e já referiu que pondera avançar com uma candidatura se Volodymyr Zelensky não se recandidatar nas próximas eleições, previstas para 2024.
Puxando dos galões, Aleksey Arestovich explicou que, se assumisse o cargo mais elevado da nação, poderia ajudar muitos cidadãos. “Eu entendo onde estão as falhas e o que pode ser feito”, referiu. Assim, os próximos anos deverão mostrar quais serão as reais ambições deste ex-militar, ex-ator, ex-conselheiro e atual influencer — e se incluem um projeto para alcançar a presidência da Ucrânia.