Reportagem no mosteiro de Mar Matta, Iraque
Apesar de se erguer, imponente, ao longo da colina sul do não menos imponente monte Alfaf, no norte do Iraque, o mosteiro de Mar Matta (siríaco para São Mateus) pode passar despercebido a um olhar menos atento. O enorme edifício, construído no século IV, confunde-se com a rocha da montanha na qual repousa discreto e desaparece na paisagem cor de areia que caracteriza toda aquela região deserta. Chegar lá não é fácil. A carrinha onde seguimos trepa com dificuldade o percurso sinuoso por entre a rocha. À frente, a servir de guia e de livre-trânsito no check-point que separa a região iraquiana controlada por Bagdade do Curdistão, onde está o mosteiro, segue a alta velocidade no seu jipe branco o padre Jakob Tersley, pároco ortodoxo de Bartella, uma pequena vila a 15 quilómetros dali, às portas de Mossul.
A última secção do percurso faz-se já a pé, por uma longa escadaria de pedra que conduz à entrada principal do mosteiro. Na verdade, era possível seguir de carro, por um caminho alternativo, até ao edifício, mas a viatura já não tem capacidade para mais, explica o condutor iraquiano, receoso de que os 45ºC que se fazem sentir se juntassem ao excesso de esforço para acabar de vez com o motor da carrinha. Melhor. A subida a pé permite olhar a vista, que se estende por centenas de quilómetros em volta da montanha. Do topo do monte é possível ver grande parte da planície de Nínive. Avista-se ao fundo a cidade de Mossul e em seu redor diversas povoações, grande parte delas cristãs.
Recebe-nos o padre Yosseph Ibrahim, amigo de longa data do padre Jakob e monge responsável pela gestão diária do mosteiro solitário, onde vivem apenas quatro monges e dois seminaristas, mas que há séculos já foi a casa para milhares de religiosos — aliás, o nome do monte, Alfaf, é precisamente uma referência à palavra árabe para “milhares”. O monte dos milhares.
Vestido com a batina negra dos sacerdotes ortodoxos e com o barrete reservado aos monges, Ibrahim conduz-nos por escadarias e corredores a um salão nobre, decorado em tons de vermelho escuro, onde nos espera para o almoço o arcebispo Timothaeus Moussa Al Shamany, arcebispo da Igreja Ortodoxa Síria de Antioquia e abade daquele mosteiro. “Durante três anos, este mosteiro foi o local habitado mais próximo do Estado Islâmico”, declara em primeiro lugar. “E ficámos sempre aqui. Nunca fugimos.” “Durante três anos, ficámos cá dentro a ver a batalha à nossa volta”, acrescenta o padre Yosseph Ibrahim.
Rapidamente se pode perceber que aquele mosteiro, aninhado numa montanha do norte do Iraque, longe de tudo, alberga pelo menos duas histórias muito simbólicas da resistência do Cristianismo na região onde, historicamente, estão as suas raízes. Uma escrita ao longo de 1600 anos e outra nos últimos quatro.
Conhecido sobretudo por ser um dos mosteiros cristãos mais antigos do mundo, o templo fundado pelo santo oriental São Mateus tornou-se conhecido por preservar uma das mais completas bibliotecas de manuscritos originais da tradição siríaca. Esses manuscritos, aliás, foram a principal preocupação dos monges quando, em agosto de 2014, o Estado Islâmico invadiu a planície de Nínive e ameaçou destruir o mosteiro.
“Tivemos medo que disparassem morteiros contra o mosteiro”
A noite de 6 de agosto de 2014 não sai da memória de Yosseph Ibrahim e dos seus companheiros. Um mês antes, o Estado Islâmico tinha tomado o controlo de Mossul, a terceira maior cidade do Iraque, proclamando a implementação de um califado e ali estabelecendo a sua capital. Depois, a organização terrorista começou a expandir-se a partir dali, alargando o seu território a toda a planície de Nínive, invadindo dezenas de vilas e cidades — incluindo grande parte das povoações cristãs, uma minoria no Iraque, concentradas naquela região — e obrigando milhares de pessoas a fugir para o norte do país, procurando refúgio no Curdistão iraquiano.
Trinta quilómetros a nordeste de Mossul, rodeado de povoações cristãs, o mosteiro de Mar Matta estava na rota dos extremistas. Por isso, naquela noite de 6 de agosto, tal como grande parte dos cristãos da região, temendo uma invasão iminente, os monges prepararam-se para a fuga. Recolheram os manuscritos preciosos da biblioteca centenária do mosteiro — incluindo alguns exemplares únicos e fundamentais para o Cristianismo ortodoxo — e desceram a montanha, pelo lado norte, para colocarem o espólio a salvo numa vila longe dali.
“Saímos do mosteiro apenas por dois dias, na noite de 6 de agosto de 2014. Levámos os manuscritos connosco para os proteger, incluindo um manuscrito com mais de mil anos”, conta o padre Yosseph Ibrahim, recordando com saudade “a biblioteca famosa que havia aqui”. Apenas dois dias. A 8 de agosto, regressaram ao mosteiro. Conscientes de que a sua vocação era a de viver naquele mosteiro e a de ajudar quem sofria a perseguição do Estado Islâmico, aceitaram o possível martírio e durante três anos ficaram no interior do mosteiro a ver a batalha no sopé da montanha.
O Estado Islâmico tinha avançado sobre as vilas e cidades e estava já próximo do monte Alfaf quando os peshmerga, as forças armadas do Curdistão, conseguiram travar o progresso dos terroristas mesmo às portas do caminho que se inicia ao fundo da montanha e que dá acesso ao mosteiro. Dali os militantes do Estado Islâmico já não passariam, mas não por falta de tentativas. Durante três anos, a montanha foi um dos principais focos de tensão daquela região, com combate permanente entre os terroristas e os peshmerga, apoiados pela coligação internacional liderada pelos Estados Unidos que, em outubro de 2016, lançou uma grande ofensiva para recuperar o controlo da região de Mossul.
“Estávamos a quatro quilómetros da batalha”, recorda o monge. A partir de outubro de 2016, o combate intensificou-se, com os bombardeamentos aéreos da coligação internacional sobre as posições do Estado Islâmico a tornarem-se diários e a fazerem tremer o mosteiro no topo do monte. Confiantes na oração e na capacidade dos peshmerga para manter os terroristas longe, os monges só tiveram medo quando o Estado Islâmico se começou a preparar para se defender contra os ataques aéreos. “Tivemos medo que disparassem morteiros contra o mosteiro”, lembra o padre Yosseph Ibrahim.
À volta do mosteiro todas as vilas e aldeias ficaram desertas — mesmo as que acabaram por não ser invadidas pelos terroristas. Com medo de que o Estado Islâmico lhes fizesse o mesmo que fez à minoria étnica e religiosa dos yazidis, milhares de cristãos deixaram naqueles dias a região para rumar a norte, à segurança de cidades curdas como Erbil ou Duhok. Mas a persistência daqueles seis monges, sozinhos na montanha a escassos quilómetros da batalha e preparados para enfrentar o martírio, foi sinal de esperança para muitas comunidades cristãs, que lentamente começaram a regressar a casa ainda durante o período do domínio do Estado Islâmico sobre a região.
“Gradualmente, as pessoas começaram a voltar. Sabiam que nós estávamos aqui e pensavam que se nós cá estávamos então estariam seguras, poderiam voltar”, conta o monge. Durante séculos, aquele mosteiro foi local de peregrinação e refúgio para milhares de cristãos do Médio Oriente. Por isso, os monges não estranharam quando, na sequência da invasão da planície de Nínive pelo Estado Islâmico, várias famílias cristãs buscassem refúgio ali. Cerca de 70 famílias cristãs, quase todas naturais de Mossul, encontraram nos naquele mosteiro a resposta imediata para o seu desespero, tendo ficado durante vários meses a depender dos monges para a satisfação das necessidades básicas.
Depois da libertação de Mossul, em julho de 2017, muitas outras famílias buscaram os monges em busca de ajuda — mais de 65, pelas contas do padre Yosseph Ibrahim. Todas as famílias já conseguiram ir embora, ou para as suas casas de origem ou para outras cidades iraquianas ou no estrangeiro, exceto uma, que continua a viver com os monges por não ter para onde ir. Os monges, esses, não saem dali nem o planeiam fazer, independentemente das ameaças que possam surgir. “É a nossa vocação”, resume Ibrahim.
“Desde o século IV, muitos grupos atacaram o mosteiro”
A verdade é que a ameaça do Estado Islâmico não foi a primeira que assombrou aquele mosteiro, um dos mais importantes pedaços de património histórico do Iraque e um dos mais antigos templos de vida monástica do Cristianismo. Durante mais de 1600 anos, o mosteiro foi atacado múltiplas vezes, tanto que “ninguém sabe qual é o seu desenho original devido às conquistas e outras catástrofes que ocorreram na sua história e que levaram a que muitas das suas esculturas e decorações fossem destruídas”, como explica um pequeno folheto sobre a história do edifício orgulhosamente entregue pelo padre Yosseph Ibrahim.
O mosteiro foi fundado no século IV por São Mateus — não o evangelista venerado pela Igreja Católica, mas o monge eremita venerado pela Igreja Ortodoxa, que nasceu na cidade de Amed, na Turquia, no início daquele século.
A própria história da fundação do mosteiro é uma história de perseguição: no ano 361, Mateus mudou-se para Nínive, então parte do Império Persa, para fugir à perseguição do Império Romano aos cristãos. Religioso desde que perdeu o pai na juventude, o monge estabeleceu-se no monte Alfaf onde juntou alguns outros monges para ali começar uma vida contemplativa em comunidade. Ali ficou até ao final da sua vida.
“Desde o século IV, muitos grupos atacaram o mosteiro”, diz o arcebispo Timothaeus Moussa Al Shamany quando nos recebe. A primeira tormenta pela qual os monges passaram foi no ano 480, um século depois da fundação, quando um enorme incêndio consumiu quase na totalidade o mosteiro e quase acabando com aquela comunidade. Foi preciso que vários monges de outras partes do país e de outros países viessem de longe para recuperar o mosteiro e recomeçar a vida monástica naquele lugar.
O mosteiro viria a ser conquistado por grupos rebeldes — sobretudo após o aparecimento do Islão — em 1171, altura em que ficou abandonado durante 16 anos. Em 1260, foi conquistado novamente, mas desta vez pelos tártaros e mongóis durante uma das muitas campanhas de expansão do Império Mongol fundado por Gengis Khan, ficando totalmente destruído e vazio durante mais de 150 anos.
Já no século XIX viria a ser novamente atacado, ficando abandonado entre 1833 e 1846 na sequência dos esforços do Império Otomano para recuperar o controlo sobre o país. Desde então, o mosteiro, que atravessou quase dois milénios de história, tem sido ininterruptamente habitado por monges ortodoxos — os únicos sacerdotes ortodoxos obrigados ao celibato.
Ainda no século V, o mosteiro, que desde cedo ganhou uma importante fama científica por ser o depósito dos principais documentos do Cristianismo oriental, passou a ser a sé primaz daquela região, que hoje é liderada pelo arcebispo Timothaeus Moussa Al Shamany. A biblioteca de documentos antigos tornou-se no maior tesouro daquele mosteiro, que hoje acolhe peregrinos e turistas de todo o mundo sem descurar a sua principal missão: transcrever e preservar as escrituras da Igreja, muitas delas ainda por descobrir, decifrar e interpretar. Claro que hoje o fazem com meios que os primeiros monges copistas não tinham, garante, divertido, o padre Yosseph Ibrahim: “Hoje fazemos tudo ao computador”.
O Observador viajou para o Iraque juntamente com outros meios de comunicação europeus a convite da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS/ACN)