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[“A Corte de Luanda” é uma investigação do Observador sobre a rede de poder que se formou à volta de José Eduardo dos Santos e da sua família. Durante vários meses, uma equipa de jornalistas percorreu milhares de quilómetros e contactou dezenas de fontes — em Portugal e, principalmente, em Angola. O resultado é publicado um ano depois do escândalo Luanda Leaks e está dividido em quatro partes, seguindo as personagens da Corte: José Eduardo dos Santos, Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e os delfins João Lourenço e Manuel Vicente. Esta investigação deu também origem a uma série inédita do Observador em podcast: pode ouvir a Parte I, “O Viajante”, a Parte II, “O Chefe”, a Parte III, “A Cara do Pai”; e a Parte IV, “O Mimoso”.]
Na véspera de Natal do ano passado, a 24 de dezembro de 2019, Isabel dos Santos passeava pelo mercado La Boqueria, em Barcelona, para comprar as mangas, as papaias, as ostras e os frutos secos para a ceia de Natal em família com o pai, José Eduardo dos Santos. O ex-Presidente de Angola estava, desde abril desse ano, na sua casa no bairro catalão de Pedralbes para receber tratamentos à próstata no Centro Médico Teknon.
Não há, no entanto, certezas de que o vídeo foi exatamente filmado no dia 24 de dezembro de 2019, a única certeza é que foi nessa data que foi publicado:
https://www.instagram.com/p/B6dVt9hp5BA/?igshid=1oorjqohufgu2
Seis dias depois, há um ano, a 30 de dezembro, o Tribunal Provincial de Luanda determinava o arresto preventivo de contas bancárias e das participações sociais em nove empresas que Isabel dos Santos, o seu marido Sindika Dokolo (entretanto falecido) e o seu braço direito Mário Leite da Silva detêm em Angola, por alegados negócios privados que terão lesado o Estado angolano em mais de mil milhões de euros. Entre esses negócios estavam a participação da Sodiam na De Grisogono — joalharia de luxo de Sindika Dokolo — e da Sonangol na portuguesa Galp Energia. A Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola referiu que foi o Serviço Nacional de Recuperação de Ativos que intentou esta providência cautelar de arresto.
Foi só o princípio. A 19 de janeiro de 2020, o império de Isabel dos Santos implodiu frente aos seus olhos, em sites e televisões de todo o mundo, com a sua reputação a ser atingida pela investigação do chamado Luanda Leaks pelo Consórcio Internacional de Jornalistas, de que fazem parte a SIC e o Expresso. “Mais de 700 mil documentos foram ilegalmente pirateados dos meus escritórios há sete meses e transferidos para uma organização pouco conhecida sediada em Paris, de onde foram enviados para o ICIJ”, defendeu-se a empresária em comunicado.
Para Isabel dos Santos, o arresto foi uma surpresa nas suas viagens entre o Dubai, Londres e Barcelona nos preparativos da festa de fim do ano. Para o atual chefe de Estado angolano, João Lourenço, foi uma forma de conseguir a “paralisação dos negócios de Isabel dos Santos, que assim ficou sem meios financeiros para um eventual apoio a opositores do Presidente”. A frase é de um analista e conhecedor dos meandros do poder de Angola que ainda nesse mês de dezembro do ano passado foi recebido por João Lourenço para conversarem sobre questões geoestratégicas.
Esta fonte bem informada recorda que, a 30 de novembro de 2018, na abertura do encontro do Comité Central do MPLA, João Lourenço considerou “surpreendente” o facto de cidadãos angolanos “evocarem, quem sabe desejarem, e até financiarem, uma provável instabilidade política” em Angola — tema que estaria a ser tratado com “seriedade”, pois mexeria com a segurança nacional. A teia começou a tecer-se então pelos novos poderes em Angola.
O Luanda Leaks era antecipado pelos próximos de Isabel dos Santos, porque sabiam da violação dos sistemas informáticos do escritório de advogados PLMJ e de várias empresas de Isabel dos Santos, como afirmou à RFI Afrique na altura Sindika Dokolo. Mas nem eles podiam prever a velocidade com que o império desabou. Isabel dos Santos tornou-se o símbolo do saque gigantesco de que Angola foi vítima, mas a ela acresce outra realidade da elite angolana, sobretudo a galáxia do MPLA.
O relatório económico de Angola em 2017 do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola referia dois números significativos. Entre 2002 e 2017 saíram, em termos acumulados, a título de investimento direto estrangeiro de angolanos no exterior, 213,28 mil milhões de dólares — enquanto no mesmo período entraram 188,4 mil milhões.
Na apresentação do documento, Francisco Paulo, investigador daquela universidade, sublinhava que “seria importante” questionar o seguinte junto dos investidores angolanos: “Se os investimentos realizados no estrangeiro rendem tão pouco (2%!?) porquê insistir em aplicar fundos no estrangeiro? Se os estrangeiros estão a obter taxas fabulosas (50%) em Angola, porque é que os investidores angolanos não fazem o mesmo e rentabilizam melhor o seu capital, aumentando assim a riqueza?”.
A “Princesa” — expressão que em Angola tem um acento mais jocoso do que elogioso —, que quase foi rainha na Sonangol, tornou-se uma mulher cercada, vigiada, perseguida, que tem de se deslocar usando as suas várias nacionalidades — a angolana, a russa, o cartão de residente no Reino Unido — e viu os seus cartões bancários serem inutilizados, como se de uma pária se tratasse.
A sua vida tem sido marcada por uma grande fidelidade ao pai, José Eduardo dos Santos, e pelo gosto pelos negócios. Mas foi a tentação da política e a altivez no caráter que ditaram o seu fim. Nestas três vidas (de empresária discreta, depois quase rainha mediática e agora como pária) Isabel dos Santos será sempre relacionada com o pai. Em entrevista ao Financial Times, a própria o reconheceu: “Imagino que seja difícil distinguir o pai da filha. Talvez a dificuldade esteja no facto de eu fazer as minhas coisas e de o meu pai ser uma figura política incontornável em África há muitos anos. Faça o que fizer, parece que tenho uma nuvem sobre a cabeça”.
Numa outra entrevista, à TPA-2 — canal então gerido pela empresa dos irmãos Tchizé e Coréon Dú —, no dia do 70.º aniversário do pai, a 28 de agosto de 2012, também enalteceu as qualidades de José Eduardo dos Santos com uma voz doce: “É uma pessoa extremamente carinhosa, tem muito afeto pelos netos. É um homem muito simples e muito inteligente. É muito paciente, muito calmo, tem uma grande qualidade de ouvir, de escutar”. Acrescentou ainda detalhes mais íntimos: que a sua cor preferida era o azul, sendo adepto do FC do Porto; que “gosta de comida tradicional, funge”; toca guitarra; lê livros de história, economia e política; gosta de desporto e joga futebol. “É uma mente aberta e flexível. Ele foi o homem que conquistou a paz e para a família foi muito importante. Todos temos muito orgulho nisso”.
De Luanda a Londres
Em 1963, José Eduardo dos Santos foi estudar para Baku, onde conheceu a mãe de Isabel dos Santos, Tatiana Sergeevna Kukanova, uma russa campeã de xadrez que estudava geologia. O Azerbaijão, então posto avançado russo, acolhia jovens quadros promissores de movimentos de libertação alinhados com o regime comunista, como o MPLA, onde militava José Eduardo dos Santos. “Foram precisos sete anos para obterem todas as autorizações e casar. Não penso que se tenham conhecido através do KGB, caso contrário teriam obtido os papéis mais depressa”, diz a mesma fonte.
José Eduardo dos Santos licenciou-se em junho de 1968, fez um curso de telecomunicações militares e casou-se em 1969. Isabel José dos Santos nasceu em Baku a 20 de abril de 1973, onde Tatiana Kukanova ficou a viver, enquanto José Eduardo dos Santos estava ao serviço do MPLA em Cabinda — desde 1970 que integrava os Serviços de Telecomunicações da 2.ª Região Político-Militar, mas com a permissão de se deslocar a Baku.
O pai deu-lhe o nome de Isabel para homenagear a irmã que o acompanhara na infância. Foi a própria Isabel dos Santos quem contou o episódio: “O meu pai nasceu no bairro de São Paulo, onde vivia a minha avó Jacinta com o meu avô Eduardo. A sua primeira filha chamava-se Isabel. A minha avó saía muito cedo para ir trabalhar e quem tomava conta do meu pai era a minha tia Isabel. Por este respeito, carinho e orgulho que teve na sua irmã mais velha deu-me o mesmo nome dela”.
Quando se instalaram em Luanda depois da independência, a 11 de Novembro de 1975, José Eduardo dos Santos foi nomeado ministro das Relações com o Exterior. Deste período, Isabel dos Santos recorda sobretudo o facto de o pai a ter ensinado “a ler e a escrever” e faz parte das suas memórias mais importantes o primeiro dia de escola: “Lembro-me desse dia. O meu pai era ministro das Relações com o Exterior, que na época se chamava Negócios Estrangeiros. Ele levou-me à escola, deixou-me lá e tive de ficar à espera até me ir buscar”.
A 20 de setembro de 1979, quando foi escolhido para Presidente da República, depois da morte de Agostinho Neto em Moscovo, José Eduardo dos Santos era já ministro do Planeamento e Desenvolvimento Económico.
A mãe de Isabel, Tatiana Kukanova, era geóloga cooperante na Sonangol e chegara a Luanda pouco antes da independência, tendo vivido uns meses antes com Isabel dos Santos numa aldeia do Congo Brazzaville. Em Luanda viviam no bairro de Alvalade. Eram tempos de muitas dificuldades e alguma penúria. E foi destes tempos que surgiu a história, já depois tantas vezes contadas, de Isabel dos Santos e a sua propensão para a venda de ovos para comprar algodão doce, feita ao Financial Times. Seriam pequenas trocas e vendas feitas entre funcionários, a que Isabel dos Santos assistia e em que participava depois de vir da escola. “Nunca fomos dados à grandiosidade. Eu ia a pé para a escola”, disse então.
Num site angolano, Club-k.net, a 5 abril 2013, procura dar-se uma explicação plausível para a história contada por ela. Nessa época, vivia-se em Luanda com escassez de bens alimentares e de consumo, pois o regime nacionalizara todas as atividades económicas — e a mãe de Isabel, que trabalhava no departamento de geologia da Sonangol, fazia algum comércio informal, como quase todos os luandenses, vendendo os cartões dados à população para a compra de bens essenciais, como ovos: “Alguns funcionários da petrolífera estatal acabariam por se tornar seus clientes. Isabel dos Santos tinha seis anos e, sempre que saía da escola, levavam-na diretamente para o trabalho da mãe, acabando por ter convivência com o negócio [de cartões de ovos], razão pela qual se terá sentido parte desse negócio”.
Ao longo do tempo, Isabel dos Santos foi ganhando irmãos, embora não tenha, segundo o Financial Times, “uma relação muito próxima com os irmãos nascidos” de outros casamentos e uniões do pai.
Das relações conhecidas de José Eduardo dos Santos, há a que teve com Filomena de Sousa,“Necas”, filha de mãe angolana e de pai originário de Cabo Verde, da qual nasceu José Filomeno de Sousa dos Santos, a 9 de janeiro de 1978. Conhecido como Zenú, teve uma educação similar a Isabel dos Santos. Fez o ensino de base na escola Ngola Kanine, em Luanda, e frequentou a sétima classe (ano letivo 89/90) na escola Juventude em Luta (sala 1, turma AR). Era visto como “um estudante muito calmo que estudava no meio dos outros sem distinção”, mesmo sendo levado de Mercedes e com dois militares como guarda-costas.
Com Maria Luísa Perdigão Abrantes (nascida a 23 de julho de 1951), José Eduardo dos Santos teve dois filhos — Welwitschia José dos Santos e José Eduardo Paulino dos Santos. E com Maria Bernarda Gourgel teve um filho — José Avelino Gourgel dos Santos, nascido a 28 de dezembro de 1988.
José Eduardo dos Santos casou-se pela segunda vez a 17 de maio de 1991 com Ana Paula Cristóvão Lemos, nascida em Luanda a 17 de outubro de 1963 — e com ela teve mais três filhos, Eduane Danilo Lemos dos Santos (nascido a 29 de setembro de 1991), Eduardo Breno Lemos dos Santos (nascido a 2 de outubro de 1998) e Houston Lulendo Lemos dos Santos (15 de novembro de 2001); e uma filha, Joseana Lemos dos Santos (nascida a 5 de abril de 1995). Mais tarde, com Eduarda, conhecida por Dadinha, foi pai de Josias dos Santos.
Valentin Varennikov, um general soviético que foi consultor de guerra das forças armadas angolanas, abordou nas suas memórias as relações familiares do Presidente angolano. “A sua vida pessoal desenvolveu-se de forma bastante mais dramática. Sob a pressão das tradições nacionais, ele teve de deixar a esposa branca e a filha para constituir uma nova família, porque a esposa do Presidente devia ser negra. Dos Santos sujeitou-se aos costumes do seu povo.” Porém, Valentin Varennikov acrescenta: “Comportou-se de forma bastante nobre em relação à sua família anterior: deu-lhe uma villa, concedeu à antiga esposa uma pensão e um subsídio à filha”.
Em meados dos anos 1980, Tatiana e a filha Isabel dos Santos foram viver para Londres, onde a primogénita de José Eduardo dos Santos passou a estudar na St. Paul’s Girls’ School, uma escola privada e tradicional. O seu objetivo era o curso de engenharia, tal como o pai, como revelou numa entrevista: “Sou hoje engenheira porque gosto de matemática, sempre adorei ciências, e segui um pouco as passadas dele, se bem que hoje a minha vida é diferente da dele, mas é sem dúvida um grande homem”.
Depois, entrou no King’s College, e aí partilhou um quarto numa residência em Edgware Road. Uma vez mais, não perdeu a oportunidade de lembrar que teve uma vida difícil: “Além das vinte e três horas de aulas teóricas por semana, também tínhamos aulas práticas e relatórios para apresentar. Não havia tempo para brincadeiras”. A isto, acrescentou que os pais “eram muito exigentes” com a sua educação. Nessa altura, quando vinha a Lisboa ficava num apartamento de uma familiar de Percy Freudenthal, junto ao Castelo de São Jorge. Este empresário branco, cuja família detinha a Lusolanda em Angola, era um amigo pessoal de Agostinho Neto desde os tempos da Casa dos Estudantes do Império e esteve na base da fundação da Sonangol.
Depois de se licenciar em engenharia eletrotécnica, Isabel dos Santos trabalhou entre 1995 e 1997 como juniorconsultant na auditora e consultora Coopers & Lybrand, que viria a fundir-se na PwC. Não foi, como recorda um antigo sócio da Coopers & Lybrand, de uma grande dedicação às funções, com muitas ausências — mas também admite que tinha muitas solicitações relacionadas com Angola.
Os primeiros negócios
Em 1995, Isabel dos Santos regressou a Luanda, e, como explicou na Conferência sobre África na London Business School em abril de 2017, terá começado por vender o carro e, com 30 mil dólares no bolso, comprou dois camiões em segunda mão. Ao mesmo tempo, o seu sócio, um amigo que estudou nos Estados Unidos, alugou um armazém para fundarem uma empresa de distribuição de bebidas. A seguir importaram um sistema da Motorola baseado em walkie-talkies para controlar as encomendas, que viria a estar na base do seu novo negócio.
Em entrevista ao Observador, Isabel dos Santos explicou o que se seguiu: “Depois, tu és um provedor do sistema, montas uma rede onde tens um mecanismo de controlo e podes vender os serviços a terceiros. Então começámos a vender serviços a, por exemplo, empresas de construção civil — alugavam-nos 15 aparelhos. Ou a empresas de segurança — alugavam-nos 50 aparelhos. No fundo, eles faziam uma espécie de leasing dos equipamentos e nós geríamos a rede, geríamos as frequências, obtivemos frequências junto do Ministério das Telecomunicações. E foi aí que comecei a ter os meus primeiros contactos com as frequências e o Ministério das Telecomunicações e comecei a ouvir que havia uma vontade do governo em liberalizar o setor das telecomunicações, porque a empresa estatal móvel, que era a Movicel, já existia desde 1991, e estamos a falar agora de 1997 e 1998. E, quando ouvi isto fiquei muito curiosa e houve o lançamento de um concurso”.
Em 1997, foram dados os primeiros passos para o fim do monopólio da Angola Telecom na exploração das comunicações através do despacho n.º 65/97, mas não houve manifestações de interesse nesta liberalização. A Unitel foi constituída a 30 de dezembro de 1998 pelo círculo que detinha o poder de facto em Angola: Manuel Vicente, então presidente da estatal Sonangol; Leopoldino Fragoso do Nascimento, o general ‘Dino’, presidente do Grupo Cochan; o general Manuel Vieira Dias, ‘Kopelipa’; e Isabel dos Santos, através da Vidatel, uma empresa offshore. Aliás, nos seus primeiros tempos, a empresa Unitel foi alcunhada de ‘Isatel’.
A 19 de maio de 2000, a comissão permanente do Conselho de Ministros angolano concedeu à Unitel, através da resolução n.º 12/00, o direito de explorar, em todo o território nacional, o serviço complementar móvel de telefonia celular na norma GSM. A revista Forbes contou como tudo se passou: “O governo podia conceder tal licença sem um concurso público desde que o adjudicatário fosse um empreendimento conjunto com o Estado. Onze meses depois, o Presidente, apoiado pelo seu Conselho de Ministros, concedeu à Unitel o direito de ser a primeira operadora de telemóveis privada do país — na condição de ele ter o poder total de aprovar o projeto e decidir acerca da estrutura acionista da firma, uma vez que envolvia fundos estatais”.
Como revelou Isabel dos Santos, ela terá tentado atrair para a Unitel operadores de telecomunicações da África do Sul, da Suécia, e até a Vodafone Portugal. A 22 de dezembro de 2000, a Portugal Telecom adquiriu 25% da Unitel por 16,2 milhões de dólares, numa parceria para a instalação e operação de uma rede de telefonia móvel do sistema GSM. O comunicado ao mercado da Portugal Telecom era omisso em relação à participação de Isabel dos Santos e referia apenas: “O consórcio da Unitel é participado em 25% pela Portugal Telecom, em 25% pela Mercury, subsidiária da Sonangol, sendo os restantes 50% detidos por outros parceiros”. No site do grupo empresarial Cochan, do general ‘Dino’, fazia-se referência à participação na Unitel, feita através da GENI, holding que em Angola era conhecida como a sigla de ‘Generais Não Identificados’.
Segundo o documento da PT, a operação cobriria “numa primeira fase toda a cidade de Luanda e a província do Bengo” e depois seriam cobertas outras áreas do território, como Cabinda e Benguela. A rede teria uma capacidade inicial para 50 mil clientes, e seria posteriormente alargada para 150 mil, num investimento previsto de cerca de 150 milhões de dólares nos primeiros quatro anos de atividade. Em abril de 2001, a Unitel iniciou o serviço como operador de telecomunicações móveis. A revista Sábado de 19 de Julho de 2007 descreveu os contactos com a Portugal Telecom: “Isabel negociou a entrada da PT. Quem acompanhou o negócio recorda-se dela como uma hábil negociadora, uma verdadeira pantera. Atenta e prudente no discurso, nunca deixou de defender os seus argumentos com garra e soube usar os trunfos com astúcia. Quem a conhece confirma: é ‘incansável, trabalhadora e entra em tudo para ganhar’”.
Isabel dos Santos refere na mesma entrevista ao Observador que, no início do GSM, havia uma grande concorrência entre os diferentes vendors, como a Ericsson ou a Nokia. “E muitos desses vendors também ofereciam vendor financing, ou seja, eles vendem os equipamentos, nós pagamos um depósito e depois, em função do trabalho, da rede, pagaríamos o resto”. Garantiu ainda que tinha capitais, porque teria vendido ao sócio e amigo a sua participação na empresa de logística dos dois, que seria a segunda maior distribuidora da cerveja angolana Cuca.
Outras versões referem que, no regresso a Angola, Isabel dos Santos, que vivia no palácio presidencial com o pai, tornou-se também engenheira da Urbana 2000, uma empresa do grupo Jembas, a quem era adjudicada a recolha do lixo na zona de Luanda. Neste processo, esteve também envolvido o grupo alemão Nehlsen, através da Rodiek & Co., que desde 1988 vendia equipamentos e fazia consultoria nesta área. Foi nesta empresa que Isabel dos Santos participou no desenvolvimento de um sistema de walkie-talkies em que se baseavam as comunicações na Urbana 2000 e teve os seus primeiros contactos com a multinacional de telecomunicações Ericsson.
O seu primeiro negócio foi tornar-se sócia do Miami Beach Club, na ilha de Luanda. Segundo a revista Forbes, “em 1997 o proprietário, Rui Barata, tinha problemas com inspetores de saúde e das finanças”. A sua solução foi simples: “Envolver Isabel dos Santos, então com 24 anos, como sua sócia, pressupondo, dizem contemporâneos, que o seu nome afastaria controladores governamentais incómodos. O seu investimento inicial foi insignificante, de acordo com uma fonte conhecedora do negócio, e o restaurante singrou: dezasseis anos depois ainda é um hot-spot de fim de semana”. Diz-se ainda que Isabel chegou, nos seus primórdios empresariais, a ser “dona de um salão de cabeleireiro” na Maianga.
Que a filha de José Eduardo dos Santos tem um sentido empresarial e de negócio há vários testemunhos que o atestam. Ainda não tinha qualquer empresa e, por exemplo, antes do Natal, comprava meia dúzia de relógios, pulseiras e brincos de marcas como Louis Vuitton para vender em Luanda aos mais próximos.
Os diamantes também tocam Isabel dos Santos e a mãe
A dada altura, surgiram os diamantes na vida de Isabel dos Santos. Em 2000 foi criada a empresa Ascorp (Angolan Selling Corporation), que terá sido uma ideia de Arcadi Gaydamak que já tinha contactado Lev Leviev em 1998 para este fim. Os passos seguintes foram contados por Gaydamak quando foi ouvido em tribunal em Israel a 7 de março de 2012: “Virar-se para os seus amigos, que tinham contactos e experiência na comercialização de diamantes na região de Angola e Zaire, como Elisabeth (Isabel) dos Santos, filha do Presidente de Angola. Através dela, Gaydamak encontrou-se com Ehud Laniado e o seu sócio, Silvian Goldberg, comerciantes de diamantes conhecidos em África, que negociavam através da companhia belga que possuíam, a Omega Diamonds”.
Estes dois empresários tinham um relacionamento estreito com o Governo de Angola. Arcadi Aleksandrovich Gaydamak nasceu em Moscovo, em 1952, e, aos 20 anos abandonou a URSS, mudando-se para um kibutz em Israel. Mais tarde foi viver para França, onde fundou uma empresa de tradução. A partir de então a sua vida é uma aventura que parece um guião retirado dos livros de espionagem de John Le Carré. Tem cidadania israelita, russa, francesa, canadiana e angolana e ostenta dois passaportes diplomáticos, um deles angolano. Recentemente esteve preso na Suíça por dívidas a um treinador de futebol que treinou o seu clube, o Beitar de Jerusalém, que mudou de nome recentemente para Beitar Trump de Jerusalém.
Durante a segunda guerra civil angolana, de 1993 até 1998, era proibido pelo protocolo de Lusaka a venda de armas aos beligerantes em Angola. No entanto, Arcadi Gaydamak e Pierre Falcone venderam, através de França, mais de 790 milhões de dólares para o exército governamental angolano. Em 2000 tiveram início as investigações e foram emitidos mandados de prisão contra Pierre Falcone e Arcadi Gaydamak. Perseguidos pela justiça francesa, conseguiram escapar para Israel. Em 2011, o tribunal de Paris retirou as acusações de tráfico de armas e de influências mas condenou-os por fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Numa carta que escreveu, pouco depois, a Nicolas Sarkozy, então Presidente francês, Gaydamak compara-se ao capitão Dreyfus e exige a restituição da Legião de Honra que recebera por ter conseguido, graças às suas ligações com os serviços secretos russos, a libertação de reféns franceses na Bósnia e na Tchetchénia. Recentemente foi afastado do processo de construção da nova refinaria da zona de Cabinda – apesar de ter ganho o respetivo concurso internacional através do consórcio United Shine Limited, que incluía investidores angolanos como o general José Tavares Ferreira, o segundo maior acionista, e o seu nome, na variante Arie Leb. Veio a perceber-se que este era o nome hebraico de Arcadi Gaydamak, como aliás o próprio explicou ao jornal angolano Expansão, embora o nome registado em Israel seja Aryeh Bar-Lev.
Por sua vez, Lev Leviev nasceu no Uzbequistão, mas é judeu e a sua família mudou-se para Israel em 1971. Foi próximo de José Eduardo dos Santos, com quem falava em russo, e de Isabel dos Santos, nomeadamente nos negócios dos diamantes, a partir de 1998, quando Gaydamak o introduziu no círculo presidencial. Lev Leviev afrontou a De Beers, conseguindo negociar diretamente em Angola e na Rússia. Tem a marca Leviev de joalharias de diamantes em Nova Iorque, Londres, Dubai e Singapura. “Lev Leviev, um dos maiores produtores de pedras polidas de Israel, estava a introduzir-se no mercado da Rússia, onde era politicamente bem relacionado. Em 1989, dois anos após Leviev se tornar um titular da De Beers, a atividade mineira da Rússia, regulamentada pelo Estado, e o grupo empresarial agora conhecido como Alrosa, iniciaram um empreendimento conjunto com Leviev para criar a primeira fábrica de corte do país, cujas pedras seriam fornecidas diretamente de minas russas, e não através da De Beers”.
Gaydamak diz que apresentou Leviev, um negociador de diamantes conhecido internacionalmente, para o representar, uma vez que ele, Gaydamak, estava a passar por problemas de reputação em França e noutros locais, desde dezembro de 2000, quando foi emitido um mandado internacional de captura em seu nome. Gaydamak afirma que Leviev concordou em manter metade do seu investimento na Ascorp para ele, e que ele e Leviev concordaram em dividir os seus interesses em todos os seus negócios angolanos em 50/50, em lucros e responsabilidades. Mas não foi assim. Lev Leviev usou também as suas ligações angolanas para fazer a ponte com os negócios com a China, nomeadamente com negócios da China Sonangol e da 88 Queensway Group.
Adquiriu a sua holding de investimentos, Africa-Israel Investments (AFIL), em 1997, que estava cotada em Bolsa. Através desta empresa construiu um império imobiliário nos Estados Unidos, Rússia e Europa Oriental, incluindo o antigo prédio do The New York Times e uma das casas mais caras da Grã-Bretanha. Como escreveu o Haaretz, “até comprou a Gottex, cujos trajes de banho minúsculos pareceriam estar em desacordo com sua ultraortodoxia”. Chegou a ter uma fortuna avaliada em mil milhões de dólares, mas, com a crise financeira, teve de fazer um acordo com os credores em 2010. Seis anos depois, a empresa e o próprio Lev Leviev entraram em incumprimento e tiveram de fazer acordos com os credores. Hoje vive em Moscovo e em janeiro de 2020, 47 anos depois da sua entrada, a AFIL foi retirada da Bolsa de Tel Aviv.
A Ascorp tinha como acionistas a estatal Sodiam (Sociedade de Comercialização de Diamantes de Angola), com 51%; a Welox, com 24,5%; e a Trans-African Investment Services – TAIS, com 24,5%. O memorando de acordo entre todos foi assinado a 11 de outubro de 1999 e, nele, a TAIS e a Welox asseguravam a compra de um mínimo de 150 milhões de dólares em diamantes. Lev Leviev tinha 50% da Welox, pertencendo a outra metade a Silvain Goldberg e a Ehud Laniado, sócios na Omega Diamonds, segundo dados revelados durante o processo em Londres que Arcadi Gaydamak colocou contra Lev Leviev. A associação entre estes dois empresários e o corte de relações foram confirmados com a revelação de documentação da filial suíça do HSBC.
Isabel dos Santos deteria 75% da Trans-African Investment Services (TAIS, Lda.), enquanto a mãe, Tatiana, que entretanto se tornou cidadã britânica, ficava com 25% da empresa criada em 1997 em Gibraltar. Segundo Gaydamak, TAIS é um acrónimo das iniciais de Tatiana e Isabel. De acordo com a revista Forbes, em 2013 “a Ascorp era uma galinha de ovos de ouro, rendendo milhões de dólares em dividendos por mês, segundo documentos judiciais britânicos”. Algum tempo depois, continua a Forbes, tornou-se imperioso fazer uma mudança: “Quando o negócio dos ‘diamantes de sangue’ atraiu a curiosidade internacional, em meados dos anos 2000, Isabel transferiu para a mãe o controlo total da TAIS, agora renomeada Iaxonh Limited, segundo o Registo Comercial de Gibraltar, consultado pela Forbes. É uma situação ideal: a empresa fica segura sob o controlo de uma cidadã britânica, enquanto Isabel dos Santos permanece comodamente em Angola como única herdeira da mãe”.
Tatiana Cergueevna Regan (“Tatiana Regan”) aparece na pesquisa da firma de Gibraltar como única acionista desta empresa. No entanto, Mordechai (Moti) Kramash, que foi diretor financeiro da Ascorp até julho de 2011, “negou saber na altura que a TAIS fosse propriedade de Tatiana Regan, ou que ela fosse a primeira mulher do Presidente Dos Santos”, escreveu ainda a Forbes.
Tatiana Kukanova surge no entanto nas contas divulgadas pelo denominado SwissLeaks, que se baseia nas listas de contas na filial suíça do HSBC, obtidas por Hervé Falciani, um ex-funcionário, em 2008. Na sua conta estavam, em 2006-2007, mais de 4,5 milhões de euros.
Nesta fase, Isabel dos Santos era considerada uma privilegiada pela relação com o pai, o que ela considerava quase um insulto — mas o que a levava à fúria, e até aos tribunais, era quando a consideravam a testa de ferro do pai. Nas raras entrevistas que dava, como uma ao Financial Times em 2013, argumentava: “Há muitas pessoas com ligações familiares, mas que hoje não são ninguém. Quem for trabalhador e determinado vai ter sucesso, e isso é o principal. Não acredito em caminhos fáceis”.
Por estratégia pessoal, ou porque acredita mesmo no que diz, Isabel dos Santos invoca como exemplo inspirador a avó, Jacinta José Paulino: “O meu referencial seria alguém como a minha avó, uma mulher africana que vendia no mercado. Ela acordava extremamente cedo de manhã, garantia que os seus filhos estavam alimentados e que iam para a escola e só depois ia para o mercado vender fruta e vegetais para garantir que havia dinheiro para pagar os custos da sua casa. Como ela temos milhares, milhões delas em todo o continente. São uma força fantástica. São elas que realmente intervêm na nossa economia”.
Porém, um telegrama da embaixada dos Estados Unidos, datado de 2009, contava uma versão diferente da história: “Isabel dos Santos é a mulher de negócios com mais sucesso em Angola (devido em larga medida ao apoio do pai)”. Para Rafael Marques, ativista e jornalista angolano, os grandes negócios de Isabel dos Santos “são forjados de duas formas”: “Participando de uma empresa estrangeira que precisa de licenças para abrir caminho em Angola ou por meio de uma concessionária, criada pelo decreto real de seu pai”.
Rafael Marques diz ainda que “foram vários os decretos presidenciais que permitiram o enriquecimento ilícito de Isabel dos Santos”: “Em Angola sabemos que Isabel dos Santos é uma testa de ferro do seu pai”. Nesta altura, o principal negócio que resultara oficialmente de um decreto presidencial fora contudo a concessão da Unitel.
Mas depois de 2013 sucederam-se outros casos, como o projeto da Corimba ou Masterplan de Luanda, como era conhecido, que teria como objetivo replicar o impacto do icónico empreendimento em forma de palmeira, o Palm Jumeirah, no Dubai; o turnaround da Sonangol, que implicava tornar a empresa petrolífera mais rentável e mais pagadora de impostos; ou as obras em duas barragens, a de Caculo Cabaça, avaliada em 4.532 milhões de dólares (3.874 milhões de euros), e o consórcio sino-angolano CGGC & NIARA Holding Limitada, este último, formado pela empresa de Isabel dos Santos para a reabilitação e o aumento da capacidade da Barragem de Luachimo na Lunda-Norte, que foi adjudicado à chinesa CGGC, que subcontratou a Efacec.
Quando estas afirmações surgiram em jornais como o La Stampa, em Itália, a revista Sábado, em Lisboa, ou a Forbes, nos EUA, Isabel dos Santos reagiu com veemência, o que aliás é um dos seus traços de personalidade. “Quando as coisas não se fazem como quer, tem tendência a exaltar-se”, refere o artigo “O Império da Filha do Presidente” da Sábado.
Nessa altura, num desmentido à revista, Isabel dos Santos escreveu: “Não existe nenhum grupo, empresa ou holding familiar. Não sou testa de ferro do Presidente da República de Angola nem participo, de qualquer forma, na expatriação de fundos para o estrangeiro. Não trabalho nem tenho parcerias com nenhum dos membros da minha família. Não represento nenhum interesse e não represento ninguém a não ser a mim própria. Sou uma pessoa independente. Há mais de uma década escolhi livremente uma carreira diferente e independente da minha família. Desenvolvi a minha própria atividade.”
Em 2013, o artigo da revista Forbes referia, entre a denúncia e a maledicência: “Para o Presidente Dos Santos, é uma forma infalível de retirar dinheiro do seu país, ao mesmo tempo que mantém um suposto distanciamento. Se o mandatário de 71 anos de idade sair do Governo, pode recuperar os ativos que estão com a filha. No caso de morte, ela mantém o tesouro na família. Se for generosa, Isabel pode optar por partilhar com os seus sete meios-irmãos conhecidos. Ou não. Todos em Angola sabem que os irmãos se desprezam uns aos outros.” A seguir, a Forbes transcrevia uma declaração oficiosa: “A senhora Isabel dos Santos é uma empresária independente e uma investidora privada que representa unicamente os seus próprios interesses. Os seus investimentos em empresas angolanas e/ou portuguesas são transparentes e foram feitos através de transações realizadas em condições de concorrência envolvendo entidades externas, como escritórios de advocacia e bancos idóneos.”
Depois da publicação do artigo, um comunicado de Isabel dos Santos desmentiu as alegações de enriquecimento ilegítimo publicadas pela revista norte-americana e garantiu que “nunca o Presidente nem o governo angolanos transferiram ilegalmente ações de empresas para Isabel dos Santos ou para quaisquer empresas controladas por esta empresária”.
Quatro anos depois, a 26 de fevereiro de 2007, o Diário de Notícias publicou um artigo intitulado “‘Furacão’ apanha filha do Presidente de Angola”, com uma foto de José Eduardo dos Santos acompanhada da legenda: “Eduardo dos Santos. Sociedade ligada à filha mais velha do Presidente angolano aparece envolvida no processo.” No texto, escrevia-se: “Uma sociedade criada nos EUA através da empresa fiduciária PIC International Consultants foi um dos alvos da mais recente busca efetuada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) no âmbito da ‘Operação Furacão’. A referida sociedade está em nome do marido de Isabel dos Santos e foi utilizada pelo casal para comprar um apartamento em Lisboa”. Acrescentava-se ainda que todos os impostos relativos à aquisição do apartamento tinham sido liquidados.
Esta notícia levou a Procuradoria-Geral da República a divulgar a 28 de fevereiro de 2007 um esclarecimento em que referia: “O DCIAP esclarece que não corresponde à verdade a notícia divulgada pela comunicação social de que a Sr.ª D. Isabel Santos, filha de Sua Excelência o Sr. Presidente da República de Angola, seja objeto de suspeita ou de investigação no âmbito do processo conhecido por ‘Operação Furacão’”. A 1 de março de 2007, o DN publicou uma outra notícia intitulada “‘Operação Furacão’ – MP confirma ligação de filha de PR angolano a offshore”, salientando que a PGR não desmentia “que no início de fevereiro tenha sido recolhida documentação relativa à constituição de uma sociedade offshore” ligada a Isabel dos Santos, acrescentando-se: “Na nota enviada ao Diário de Notícias, o Ministério Público não esclarece, então, qual o destino a dar à documentação apreendida e porque foi a mesma apreendida”. O próprio advogado acabou por confirmar à Lusa a informação veiculada pelo jornal: “Todos os impostos relativos à aquisição do apartamento foram liquidados”.
A 16 de março de 2007, deu entrada na ERC uma queixa formulada por Isabel dos Santos contra o Diário de Notícias por causa destas notícias. A 8 de agosto de 2007, a ERC considerou “reprovável a atuação adotada por parte do jornal, instando-o a assegurar de futuro, no exercício da sua atividade editorial, a estrita observância das exigências aplicáveis em sede de rigor informativo e, bem assim, o rigoroso cumprimento das normas relativas à imagem e ao bom nome e reputação”.
Em meados de julho de 2007, Isabel dos Santos veria serem publicados dois perfis. Em Itália, no jornal La Stampa, e em Portugal, na revista Sábado. Os dois farão com que reaja novamente com veemência.
No primeiro, de 15 de julho de 2007, o jornal italiano publicou uma investigação da jornalista Giulia Vola, intitulada ‘La dea nera degli intrighi’ (‘A deusa negra da intriga’), que alegava que Isabel dos Santos seria a testa de ferro de José Eduardo dos Santos como administradora de um grande império de negócios, incluindo petróleos, diamantes e banca, e que estes ativos resultavam de atos de corrupção, desvios de dinheiro e favoritismo enquanto filha do Presidente de Angola. Começava com a descrição de Isabel dos Santos na ilha de Luanda a beber Moët & Chandon, dizendo que esta administrava “a totalidade do seu património angolano distribuído por petróleo, diamantes e bancos” e que essas “rédeas do império financeiro mudaram para Isabel ainda ela não tinha trinta anos e a guerra civil terminara pouco antes.”
O artigo também fazia referência ao suposto conluio entre a classe política e militar angolana e figuras internacionais de reputação duvidosa, entre as quais o mafioso siciliano Victor Palazzolo, um prófugo da justiça italiana. Segundo o jornal, “os negócios de Victor Palazzolo, que também usa o nome de Robert Von Palace-Kobaltschenko, ter-se-ão cruzado também com os de Isabel e de generais-empresários, entre outros, no setor dos diamantes”, escreveu Rafael Marques.
A 3 de agosto de 2007, o La Stampa teve de publicar a retificação ao artigo, por causa do “direito de resposta enviado pela senhora Isabel dos Santos.”
“A informação contida no artigo ‘A deusa negra da intriga’, assinado por Giulia Vola, publicado a 15 de julho de 2007, está errada. Angola é uma república parlamentar e José Eduardo dos Santos é o Presidente, não ditador, legitimamente eleito em 1979 e reeleito em 1992. Foi através da sua liderança que Angola se transformou numa democracia multipartidária. Não existe nenhum império financeiro na mão do Presidente e consequentemente a alegação de que Isabel dos Santos, filha do Presidente, geria tal império financeiro é absolutamente falsa. Não existe nenhuma sociedade chamada Futungo e, de forma geral, nenhuma empresa executa as funções que lhe são atribuídas. A Sonangol é uma empresa totalmente detida pelo Estado. O Banco Nacional de Angola é um banco do Estado que não efetua operações bancárias comerciais. A afirmação de que Isabel dos Santos, através da (inexistente) sociedade Futungo, teria colocado em contas no exterior entre quatro a oito mil milhões de dólares é absolutamente falsa. Como é falsa a acusação, lançada pelas ONG, de que em 2001 teriam desaparecido dois mil milhões de dólares: informação desmentida depois de apurado controlo da empresa KPMG. O Presidente de Angola não tem qualquer responsabilidade na questão do ‘Angolagate’, escândalo provocado pelas intrigas entre homens de negócios franceses e russos. Isabel dos Santos nunca foi amiga do negociante russo Lev Leviev. Isabel dos Santos e a sua família nunca conheceram, e muito menos tiveram relações comerciais, com o mafioso Victor Roberto Palazzolo, nem com quem quer que seja relacionado com a criminalidade organizada. O comércio de petróleo faz-se através de procedimentos públicos e transparentes sem qualquer envolvimento direto do Presidente e muito menos da sua filha.”
A 2 de outubro de 2007, Isabel dos Santos apresentou no consulado italiano, em Luanda, queixa formal contra a jornalista Giulia Vola, contra o diretor do jornal La Stampa, Giulio Anselmi, e contra Luca Ciarrocca, diretor do jornal Wall Street Italia, que também publicou o artigo. Nessa queixa argumenta que o texto “tem um conteúdo altamente difamatório”: “É lesivo à minha honra e à minha reputação, assim como para a reputação da minha família e da instituição Angola”. Isabel dos Santos repudiava ainda o facto de ser considerada a administradora de um império: “Eu sou a filha do Presidente José Eduardo dos Santos e não administro qualquer património e muito menos um ‘império’ financeiro do Presidente, ‘império’ que simplesmente não existe.” Salientava ainda não ser “verdade que a subscritora se tem ocupado do petróleo” e “com a supervisão do seu pai” e que “dos cofres do Estado desaparecem milhões de dólares” que deveriam ter sido usados para “alimentos, medicina e infraestruturas”: “Na realidade, em Angola, o comércio do petróleo tem passado por procedimentos públicos, transparentes e controlados, sem qualquer envolvimento direto do Presidente da República e muito menos da subscritora.”
Logo depois, na edição de 19 de julho de 2007, a Sábado publicou um artigo intitulado “O Império da Filha do Presidente”, assinado por Helena Cristina Coelho, Nuno Tiago Pinto e Ricardo Marques. A 27 de julho de 2007, Isabel dos Santos enviou também um texto de direito de resposta, que foi publicado na edição da Sábado de 16 de agosto de 2007. Dois dias antes, a 14 de agosto, dera entrada na ERC uma queixa formulada por Isabel dos Santos contra a revista. Nesta queixa, a angolana referia que o artigo estava “repleto de incorreções, exageros e falsidades, que denotam a total ausência de rigor jornalístico por parte dos seus autores”. Falava de “diversas considerações desonrosas sobre o caráter e vida”, bem como “imputações totalmente falsas que ferem gravemente a sua honra e consideração.”
Depois, na formulação da queixa contestava vários exemplos do artigo, em concreto as referências “à putativa influência da visada nas estratégias da Sonangol, face ao BCP Millennium; à utilização abusiva, por esta, de recursos estatais angolanos, enquanto suposta representante da Sonangol; à existência de parcerias de uma sua empresa com o BES, em Angola; ao papel que a mesma desempenharia na expatriação de capitais da família; às suas qualificações académicas; ao estilo de vida boémio alegadamente praticado pela queixosa e, bem ainda, a ilegalidades e excessos ocorridos nas suas festas de aniversário e de casamento.”
Acentuava-se ainda na queixa que todo o artigo da Sábado “foi deliberadamente elaborado de forma a deturpar a imagem [de Isabel dos Santos], retratando-a [e, em certa medida, também a seu pai] como alguém que atua à margem ou acima da lei e que não se coíbe de utilizar em proveito próprio os recursos estatais a que tem acesso por ser filha do Presidente da República de Angola”. Em síntese, dizia, “o artigo inventa factos, deturpa acontecimentos, formula suspeitas e carateriza a Queixosa através de referências totalmente enganosas, atuação essa que, no entender da Queixosa, não só denota falta de rigor e de isenção, como se traduz numa verdadeira acusação com consciência da sua falsidade, consubstanciando-se, assim, em um conjunto de falhas deontológicas de extrema gravidade.”
A 19 de Janeiro de 2020, numa troca de tweets com a jornalista Fernando Câncio, Isabel dos Santos escrevia: “A minha ‘fortuna’ nasceu com o meu carácter, minha inteligência, educação, capacidade de trabalho, perseverança. Hoje com tristeza continuo a ver o ‘racismo’ e ‘preconceito’ da SIC-Expresso, fazendo recordar a era das “colónias” em que nenhum Africano pode valer o mesmo que um “Europeu””. Fernanda Câncio respondeu: “Certo, inteligente é certamente, terá capacidade de trabalho, teve uma boa educação. Mas gostava mesmo de perceber como é que numa família sem fortuna conhecida e sem nenhuma invenção que explicasse a súbita fortuna se transformou em menos de 10 anos num potentado económico”. Isabel dos Santos fechou a conversa: “Está disposta a ouvir sem preconceito? Pergunto-lhe a Refriango, empresa de um português em Angola que fez a Blue, como se tornou este senhor bilionário em Angola? Quando é português é possível, e quando é angolano é impossível?”.
O casamento com Sindika Dokolo
A 5 de junho de 2015, Isabel dos Santos viajava por Itália com o marido, que, nesse dia, lhe ofereceu um ramo de rosas para recordar o seu primeiro encontro em 2001. Foram apontados vários namorados a Isabel dos Santos, como o de Juan Barazi, que é um dos seus grandes amigos na Suíça, mas a filha do ex-Presidente de Angola acabou por se casar com Sindika Dokolo, que conheceu em 1999. Desde então, pareciam inseparáveis, na vida e nos negócios, até à sua morte inesperada aos 48 anos, num acidente de mergulho no Dubai, no final de outubro de 2020.
Filho de Augustin Dokolo Sanu, empresário congolês, e Hanne Taabbel Kruse, uma enfermeira dinamarquesa, Sindika Dokolo nasceu a 16 de março de 1972, em Kinshasa, onde passou a infância. Os amigos recordam que o seu nome, Sindika, em kikongo significa “enviar, atirar, mandar alguém”. Por isso, quando era miúdo, os colegas e amigos gozavam com ele “mandando-o buscar um refrigerante à loja de esquina”.
Em 1965, Dokolo Sanu foi preso e teve de ceder ao Banco Central as ações que tinha no Banque de Kinshasa, na Cofiki, empresa financeira por onde passavam os financiamentos às dezenas de empresas do Groupe Dokolo, e ainda as ações detidas pelo filho menor Dokolo Sindika da Cofiki. Com a expropriação do grupo económico familiar, instigada pelo presidente Mobutu Sese Seko, que governou entre 1965 e 1997, Sindika Dokolo foi viver, com os pais e os irmãos, para a Bélgica e a França. Em Paris, estudou no Lycée Saint Louis de Gonzague e depois na Université Paris VI.
Em 1995, voltou com o pai ao Congo para retomar a gestão do grupo económico, mas o clima de guerra civil que levou à morte e deposição de Mobutu Sese Seko e à ascensão de Laurent Kabila, pai do atual presidente Joseph Kabila, não o permitiu. Este período de guerra civil e instabilidade congolesa cruzou-se com a segunda guerra civil angolana (1992-2002), tendo as tropas angolanas apoiado o regime de Kabila contra a subversão ruandesa, uma forma também de tentar cortar as linhas de abastecimento à UNITA.
Estes factos levaram a uma circulação e ao encontro das elites congolesas e angolanas, altura em que Isabel e Sindika se terão conhecido. Ainda recentemente, como se escrevia no site Maka Angola, “João Lourenço já tinha desempenhado um papel influente na transição pacífica no Congo entre Kabila e Tshisekedi”: “Várias fontes confirmam o seu papel fundamental em convencer Kabila a afastar-se, garantindo-lhe refúgio em Angola, se necessário, e no apoio que tem dado ao novo presidente congolês, quer no fortalecimento do seu poder, quer a lidar com o Ruanda”.
Com a morte do pai em 2001, Sindika Dokolo retomou os negócios no Congo, que tiveram altos e baixos devido aos problemas com Joseph Kabila e à maior proximidade com o atual presidente Félix Tshisekedi.
A 20 de dezembro de 2002, pelas 16 horas, nos jardins do Palácio Presidencial, Isabel e Sindika casaram-se pelo civil. No dia seguinte, sábado, 21 de dezembro, pelas 16h30, teve lugar na Sé Catedral de Luanda a cerimónia católica. É que, apesar da adesão aos princípios marxistas-leninistas, José Eduardo dos Santos teve uma formação católica. Entre os 800 convidados estiveram Joseph Kabila e Sam Nujoma, presidentes da República Democrática do Congo e da Namíbia. Foi considerado o casamento do ano e gerou polémica por ter sido tratado como se fosse uma cerimónia de Estado.
O copo d’água realizou-se no Palácio Presidencial e na ementa do jantar foi, nas palavras da própria Isabel dos Santos, “dada preferência” aos produtos angolanos: “As entradas foram à base do maravilhoso marisco da costa atlântica angolana, a famosa lagosta do Kwanza-Sul e as gambas e o caranguejo do Namibe. Para o prato principal, foi servida a fresquíssima e saborosa garoupa pescada na costa de Luanda. Quanto às sobremesas, a bavaroise de abacaxi e a mousse de maracujá do Uíge foram propostas aos convidados. Nas pastelarias foi usada uma diversidade de frutas tropicais como a papaia, a banana e a manga”.
Os dados sobre o casamento são muito diferentes e impossíveis de confirmar, ainda que não haja dúvidas sobre a grandeza da cerimónia. Num texto da época, escrevia-se que foi “considerado pela imprensa local como o casamento do ano”, “coloriu as capas das publicações locais”, sobretudo devido aos valores sobre os gastos e o número de convidados.
A partir daqui não faltam números e detalhes, mas poucos confirmados ou confirmáveis, a não ser os que a própria Isabel dos Santos admitiu num direito de resposta enviado à revista Sábado. “Quem já tenha visitado o Palácio Presidencial saberá com certeza que para se instalar três mil convidados sentados em trezentos metros seria necessário destruir boa parte do jardim, cortar todas as árvores, arrancar todas as flores e plantas, e, mesmo assim, dificilmente seriam instalados confortavelmente as três mil pessoas. Para esclarecimento dos autores, os convidados foram oitocentas pessoas (e não três mil), das quais quatrocentas eram familiares diretos do noivo e da noiva”.
Disse ainda que na ementa foi dada preferência aos produtos angolanos e ironizou em relação à quantidade de comida: “Quererão os autores do artigo afirmar que cada convidado comeu quase 67 quilos de comida num jantar? Seguramente (…) se basearam no Guinness Book of Records. No meu casamento não foi”. Confirmou que os convidados do marido, amigos e familiares que vivem no Congo se deslocaram na TAAG, única companhia aérea que então assegurava os voos entre Kinshasa e Luanda, e que cada bilhete de ida e volta custou 200 euros.
Foi com o incentivo do pai e do colecionador belga Jean Cambier que aos 10 anos Sindika começou uma coleção de armas africanas antigas: “Ofereciam-me as peças e encorajavam-me a pesquisar o contexto em que eram feitas”. Mas o marido de Isabel dos Santos só chegou à arte contemporânea quando se cruzou com a peça “Pharynx”, de Jean-Michel Basquiat, em casa de um colecionador.
Claro que acabou por adquirir o quadro. Depois, em 2005, Sindika comprou a coleção de arte africana contemporânea do homem de negócios alemão Hans Bogatzke, vendida pela viúva. Desde 2004, a Fundação que entretanto criou realizou exposições no IVAM de Valência (Espanha), e foi responsável pelo primeiro pavilhão africano na 52.ª Bienal de Veneza em 2007 (que foi patrocinado pela Sonangol). Com uma coleção de mais de três mil obras de arte, Sindika Dokolo tornou-se assim um dos maiores colecionadores de arte africanos contemporâneos e um nome bem conhecido entre a elite da arte global. Era convidado VIP em várias feiras de arte contemporânea e esteve na gala da Société des Amis du Musée National d’Art Moderne, em outubro de 2019.
Como empresário, Sindika tinha ativos imobiliários na República Democrática do Congo e em Angola, nas empresas Soklinker e Amigotel, além de participações minoritárias em empresas lideradas por Isabel dos Santos como a Nova Cimangola, a Sodiba e os supermercados Candando. Seria, segundo as respostas dadas ao Consórcio Internacional de Jornalistas, acionista da Exem Holding, que está associada à Sonangol, e na participação na Amorim Energia e na Galp, embora outra documentação a atribua a Isabel dos Santos. Era também o acionista da empresa de joalharia De Grisogno, onde estava associado à empresa pública angolana Sodiam.
Mas junto com Isabel apareciam sempre em família. Um telegrama da embaixada dos Estados Unidos de 2009 descrevia uma conversa com Isabel dos Santos em que esta lamentava que os seus três filhos, então com 1, 3 e 5 anos, não lhe deixassem “muito tempo para a política, mas mesmo assim pareceu focada na abertura da conferência do MPLA”, à qual devia “comparecer no final desse dia”, e acrescentava: “Isabel, que tem sido citada como potencial sucessora do seu pai, deixou-nos a impressão, após este breve encontro, de estar mais focada nos seus múltiplos negócios, e em interesses externos, como colecionar arte, e a família, do que em posicionar-se para um futuro político”.
Aos três filhos quase na adolescência juntou-se o caçula, que nasceu a 14 de agosto de 2017, e que foi apresentado num post no Instagram da mãe a 26 de setembro de 2017, depois de ter estado presente na tomada de posse do novo presidente de Angola, João Lourenço, que sucedeu ao seu avô, José Eduardo dos Santos.
Portugal, a colónia de Angola
Isabel dos Santos chegou à Amorim Energia ainda mais discreta do que é costume. Entrou pela mão de Manuel Vicente, na época presidente da Sonangol. Manuel Vicente era visto então como se fosse da família de José Eduardo dos Santos — foi educado pela sua irmã Isabel e na intimidade tratavam-se por primos. A relação era de tal forma umbilical que José Eduardo dos Santos o impôs como seu vice-Presidente em 2012 para o que viria a ser o seu último mandato, cumprido em 2017. Hoje é conhecido como o “traidor”, o “grande marimbondo”, porque se aliou a João Lourenço e terá sido o grande artífice da queda da Isabel dos Santos.
Os caminhos de Américo Amorim e da Sonangol cruzaram-se no tempo em que o empresário era acionista da Petrocontrol, bloco privado que foi acionista da Galp quando então se chamava Petrogal, e que várias vezes manifestou vontade de ter a Sonangol como acionista. Depois, Américo Amorim fazia parte, tal como a Sonangol, do consórcio Carlyle, que em julho de 2004 concorreu para comprar a participação da ENI. Em 2005, o governo liderado por José Sócrates, tendo Manuel Pinho como ministro da Economia, optou por um desenho diferente para a Galp Energia. Além disso, Américo Amorim comprou em 1988 a Mabor, empresa produtora de pneus, tentou recativar as fábricas que esta tinha em Angola e em Moçambique, onde se deslocou várias vezes até que vendeu a empresa à Continental em 1993.
Em princípios de novembro de 2005, Américo Amorim fez chegar ao Governo uma proposta para aquisição da participação da ENI com base numa avaliação de quatro mil milhões de euros, que depois viria a subir para cerca de cinco mil milhões. Nessa altura, a Amorim Energia tinha como acionistas a Power, Oil & Gas Investments B.V. (30%) e a Oil Investments B.V. (5%), ambas de Américo Amorim; a Amorim Investimentos Energéticos, SGPS, SA (20%) — em que Américo Amorim detinha 55% e a Caixa Galicia 45% —; e a Esperaza Holding B.V. (45%), em que a Sonangol tem 60% e Isabel dos Santos 40%. E em 29 de dezembro de 2005 ficou com 33,34% da Galp Energia, por 1.700 milhões de euros.
A partir de então, Américo Amorim tornou-se o grande parceiro de negócios de Isabel dos Santos. Em abril de 2005, Fernando Teles, que no início dos anos 1990 fora incumbido pelo BPI de criar uma sucursal em Angola, que, a 26 de agosto de 2002, se constituiu em Banco Fomento de Angola (BFA) e se tornou no maior banco comercial privado angolano, fez o seu próprio banco, o BIC Angola. Neste projeto, em que tinha 20%, contou como sócios com Isabel dos Santos (25%), Américo Amorim (25%), a família Ruas (10%, com negócios no Brasil e parceiro de Américo Amorim em vários negócios financeiros como o BNC), Manuel Pinheiro Fernandes (Martal, empresa de supermercados e imobiliário, com 5%), Sebastião Lavrador (presidente de um pequeno banco, o Sol, e ex-governador do Banco Nacional de Angola, 5%) e Luís Santos (Soclima, 5%).
No ano seguinte, Isabel dos Santos e Américo Amorim adquiriam, através da Ciminvest, os 49% que a Cimpor (que tinha na altura a Teixeira Duarte como acionista de referência) detinha na Nova Cimangola. A empresa tinha uma fábrica no bairro da Petrangol e produzia 800 toneladas de cimentos, tendo subido para 1,2 milhões em 2005, depois de a Cimpor ter entrado no capital em 2004. No entanto, dois anos depois desta aquisição, a empresa portuguesa desentendeu-se com os outros sócios — o Estado angolano, com cerca de 40%, e o BAI (Banco Africano de Investimento), com 9,5% — e vendeu a participação por 74 milhões de dólares à Ciminvest. Em 2007, Américo Amorim (35%) e Isabel dos Santos (35%) juntaram-se ao Banco BIC (30%) na Imoluanda, empresa imobiliária, um dos expertises de Américo Amorim, para lançar vários projetos imobiliários em Luanda.
Em outubro de 2007, Fernando Teles, Américo Amorim e Isabel dos Santos viram o Banco de Portugal autorizar o Banco BIC Portugal, que foi formalmente constituído em meados de janeiro de 2008. Tornou-se o primeiro banco português de capitais maioritariamente angolanos e contava com uma estrutura acionista idêntica à do BIC Angola.
A 12 de setembro de 2008, como revela o comunicado ao mercado do Banco Português de Investimentos (BPI), este subscreveu um memorando de entendimento com a Unitel, “com vista à constituição de uma parceria estratégica em Angola, através da venda de 49,9% do capital do Banco de Fomento de Angola (BFA) à Unitel”, acrescentando que “esta parceria representa a criação de uma base de colaboração entre o BPI e a maior empresa privada angolana.” A venda desta parte de capital rendeu ao BPI 475 milhões de dólares (338 milhões de euros), dos quais 200 milhões de dólares a pronto e 275 milhões em oito prestações anuais, de 2009 a 2016.
Em Setembro de 2008, o Banco BPI desfez-se de 49,9% do Banco do Fomento de Angola (BFA), recebendo 475 milhões de dólares. Em 2014, o Banco Central Europeu deixou de reconhecer Angola como tendo um regime de supervisão equivalente ao do BCE. Esta participação criava um problema de excesso de exposição a grandes riscos para o BPI, que deveria deixar de consolidar, para efeitos prudenciais, o BFA. Em janeiro de 2017 a Unitel comprou 2% do Banco de Fomento de Angola (BFA) ao BPI por 28 milhões de euros e passou a controlar 51,9% do capital do banco.
Em dezembro de 2008, Isabel dos Santos, através da Santoro, comprou quase 10% do capital do BPI ao BCP por 164 milhões de euros, que lhe emprestou 143,9 milhões de euros. Com esta venda o BCP conseguiu reforçar os rácios e libertar-se de uma posição que estava a causar perdas.
Em março de 2012, no auge da crise das dívidas soberanas na Europa, o Banco Itaú vendeu a sua participação de 18,9% no BPI aos catalães do La Caixa. A Santoro, de Isabel dos Santos, adquiriu metade da posição do Itaú e ficou com 18,6% do capital do BPI.
Três anos depois começou a guerrilha no BPI em que se cruzam o problema da participação do BPI no BFA, por imposição do BCE, e a tentativa do La Caixa de ficar com a totalidade do banco. A Santoro não aceitou e não permitiu o fim dos limites aos direitos de voto no BPI — e propôs uma fusão com o BCP, que tem os angolanos da Sonangol como acionistas. Esta ideia não avançou, tal como fracassou a separação dos ativos africanos para uma empresa com os mesmos acionistas do BPI. Em fevereiro de 2017 venderam a posição de 18,6% no BPI, no âmbito da OPA lançada pelo CaixaBank, por 306,9 milhões de euros.
Em 20 de dezembro de 2009, Isabel dos Santos comprou 10% da ZON, a que juntou em 2012 mais 15,4%. A 1 de fevereiro de 2013, foi notificada à Autoridade da Concorrência a fusão entre a ZON e a Optimus, que ficariam com 50,1% da nova empresa, que viria a ser a NOS. Em junho de 2012, os acionistas do BIC compraram por 40 milhões de euros as ações do BPN que estavam no BIC e fundiram os dois bancos através da incorporação do BIC no BPN, que se passou a chamar Banco BIC e, mais tarde, Eurobic, por causa de uma reclamação do Banco BIG devido à confusão entre as duas denominações.
Em setembro de 2014, Isabel dos Santos e Fernando Teles compraram as participações de Américo Amorim e António Ruas no Banco BIC Angola e Banco BIC Portugal. Com estas alterações, Isabel dos Santos passou a controlar 42,5% e Fernando Teles 37,5%.
Em 2015, foi anunciado um acordo para a compra do controlo da Efacec aos maiores acionistas portugueses, o grupo José de Mello e a Têxtil Manuel Gonçalves, que ficaram com 32,8%. O negócio, que envolveu cerca de 200 milhões de euros, foi fechado em 2016 e serviu também para fazer uma operação de reestruturação financeira do grupo, um dos maiores devedores da Caixa Geral de Depósitos. A Efacec é dominada, com 67,2%, pela Winterfell, sedeada em Malta, tendo a estatal Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade (ENDE) comprado 40%.
Das algemas de ouro aos cavalos de Tróia
“Angola tem direito a ter uma burguesia nacional que seja cada vez mais forte e mais rica”, sintetizava o Jornal de Angola em 2012. Mas o que se formou foi o chamado “capitalismo de compadrio”, em que os que têm ligações ao poder do Estado, com destaque para o círculo presidencial, têm um maior acesso aos recursos disponíveis, como as concessões de diamantes ou de petróleo.
Este processo de formação da burguesia tem sido marcado, como referem vários analistas, entre eles Ricardo Soares de Oliveira, por processos predatórios e por um comportamento extrativo e esbanjador. Isabel dos Santos respira negócios, mas a racionalidade empresarial correu de par em par com a engenharia financeira.
Uma das estratégias utilizadas por Isabel dos Santos foi a associação dos seus investimentos estrangeiros, nomeadamente em Portugal, a empresas públicas angolanas. Nesta estratégia, uma das lógicas subjacentes aos investimentos era a de estar presente no centro estratégico de empresas portuguesas que operassem em Angola, como foi o caso do BPI, o que lhe permitiu defender os interesses do Banco de Fomento Nacional, ficando com a maioria do capital, e assim sucederia na Galp Energia, na NOS e na Efacec.
A ligação a empresas do Estado angolano ajudariam também na obtenção de recursos, como aconteceu na Galp Energia, em que a participação da Exem Energia, que tem 40% da Esperaza, foi adiantada pela Sonangol, que tem os restantes 60%. No caso dos diamantes passou-se o mesmo com a De Grisogono e a Sodiam. E na Efacec, em menor escala, com a ENDE. Estas participações das empresas públicas eram uma espécie de algemas douradas que as prendiam aos interesses de Isabel dos Santos, mas que, no final, acabaram por funcionar como cavalos de Tróia ajudando à sua queda.
Isabel dos Santos era também o role model para Angola. O aparecimento de Isabel dos Santos nas listas dos milionários da Forbes levou o Jornal de Angola a referir-se a ela como mais um exemplo de como “os angolanos têm motivos de sobra para se orgulharem do seu país”: “Enquanto damos o nosso melhor por uma Angola sem pobreza, exultamos com o facto de a empresária angolana Isabel dos Santos ser uma referência no mundo financeiro. Isso é bom para Angola e enche de orgulho os angolanos. Afinal, o nosso sonho dourado é que todos os seres humanos sejam ricos e não haja carenciados, seja em que região for do planeta”.
Isabel dos Santos multiplicava a sua presença em vários eventos dedicados aos empresários e às empresas em África, na Rússia, na Ásia, com especial destaque para a China. Foi convidada para falar na New York Forum Africa em 2013, na Global Entrepreneurship Summit em 2014, na Universidade de Warwick em 2018, na London Business School e na London School of Economics em 2017 e no Africa Summit no Parlamento Europeu em 2019.
[Parte da intervenção de Isabel dos Santos no Africa Summit no Parlamento Europeu em 2019]:
Sindika Dokolo afirmou, no Programa Hora Quente, apresentado por Pedro N’zagi na TPA2, a 23 de julho de 2013, que Isabel dos Santos sintetizava as três qualidades que atribuía aos angolanos. “Acho que ela tem três coisas que são qualidades especificamente angolanas e que, na minha opinião, fazem de Angola um projeto de futuro. Primeira, a autoconfiança, tem confiança no futuro, olha para o futuro não só de uma maneira positiva mas com apetite. A segunda é a estabilidade, é uma pessoa muito calma, muito estável, gosta de refletir com uma perspetiva a longo prazo, tem as suas opiniões muito próprias. E muita ambição. É interessante porque, quando cheguei a Angola, havia ainda uma guerra das mais terríveis do continente e fiquei admirado com uma atitude que os angolanos têm, que é uma capacidade para apostarem num futuro muito melhor, não fazer muito caso das dificuldades, dos constrangimentos, e olhar para a frente sempre com exigência, expectativa e ambição”.
A tentação das redes sociais
Se os diamantes estiveram no início da sua fortuna, também foram a sua perdição. Com a aquisição da De Grisogono, Isabel dos Santos viu facilitada a sua imersão no star system mundial, mas levantou ainda mais suspeitas sobre si. A 20 de maio de 2014, uma sorridente Isabel dos Santos de brincos com diamantes posou ao lado de Sharon Stone, de Antonio Banderas, de Amber Heard, de Gary Dourdan, de Cara Delevingne, de Tamara Ecclestone, entre outras celebridades na soirée da De Grisogono no Hotel Eden Roc, em Cap d’Antibes, durante o 67.º Festival de Cinema de Cannes.
A circulação de Isabel dos Santos entre as elites globais não se cinge às estrelas de cinema e televisão. Em Portugal foi, por exemplo, convidada para o casamento de uma filha de Fernando Ulrich, é sócia dos herdeiros de Américo Amorim, Paulo Azevedo, das famílias Mello e Gonçalves. No Brasil, tem amigos na alta sociedade como Ana Paula Junqueira, Helcius Pitanguy, filho do cirurgião plástico Ivo Pitanguy, além de empresários dos principais grupos que atuam em Angola.
A 12 de janeiro de 2015, uma foto de Isabel dos Santos com o título “Dinner in Bangcoque” no seu Instagram mostra-a acompanhada por Sindika Dokolo a jantar no NAHM, considerado o melhor restaurante da Ásia e um dos melhores do mundo na lista do The Restaurant. Seguem-se as fotos de uma viagem à Tailândia, uma visita à loja da Dolce & Gabbana num país indefinido, uma ida ao Taj Mahal na Índia e outra viagem a Singapura.
Esta segunda persona de Isabel dos Santos vai acrescentar ao PEP (Pessoa Exposta Politicamente), o PEM (Pessoa Exposta Mediaticamente). Como escreveu o seu antigo consultor de comunicação, Luís Paixão Martins, a regra era que Isabel dos Santos não devia ser associada ao seu nome, “dada a absoluta reserva pública da empresária”, o que esta nova atitude veio contrariar. Isabel dos Santos estava a construir uma nova imagem.
Na estratégia de mediatização também participou nessa altura Sindika Dokolo, que sempre foi mais aberto sobre a sua vida e alguns dos seus negócios. Em março de 2015, Sindika e Isabel dos Santos foram recebidos por Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, e por Manuel Pizarro, vereador do PS, tendo o congolês sido galardoado com a medalha de ouro da cidade, atribuída por unanimidade. Seguiu-se depois a inauguração da exposição “You Love Me, You Love Me Not”, na Galeria Municipal do Porto, nos Jardins do Palácio de Cristal. Seria a primeira pedra de uma relação entre a Câmara do Porto e a Fundação de Sindika Dokolo, na altura com cerca de 3.500 obras. Em 2016, a Fundação teria adquirido por cerca de 1,6 milhões de euros, através da sociedade Supreme Treasure, o edifício destinado inicialmente à Casa Manoel de Oliveira, desenhada por Souto Moura, para aí instalar a sua sede europeia.
Passados quatro anos, não havia qualquer evolução no projeto de ligar o Porto a Luanda. Ao Expresso, fonte da Câmara Municipal do Porto sublinhava que não havia “apoio ou participação” nem projetos futuros com a Fundação e desconhecia-se qual o estado do projeto de instalação na cidade da sede europeia da instituição.
A tentativa de criar a imagem de uma pessoa mais preocupada com as gentes comuns, com o emprego, com o desenvolvimento e com a pobreza contrastava com as viagens a destinos paradisíacos, com a presença em grandes acontecimentos desportivos de râguebi e futebol, com as citações de livros de autoajuda e provérbios africanos, e com as reuniões na China e na Rússia da filha de José Eduardo dos Santos.
Isabel dos Santos mostrava, por vezes, uma certa frieza, falta de afetividade e distanciamento pessoal dos seus sócios e de gestores de grandes empresas em que tinha participação, com quem não contactava tantas vezes como estes gostariam. Durante as negociações de aquisição de uma das empresas em Portugal, em que ficou maioritária, Isabel dos Santos apenas apareceu duas vezes em reuniões, em que se terá mostrado “altiva e muito distante”. Quem aparecia mais vezes era o português Mário Leite da Silva, “quase sempre para complicar a negociação”.
O gestor, licenciado pela Faculdade de Economia do Porto, começou a sua carreira como analista de risco de crédito do Banco Nacional de Crédito. Depois passou pelo departamento de auditoria da PwC, foi controller financeiro da Grundig Auto Rádios Portugal e diretor financeiro do Grupo Américo Amorim, onde foi recrutado em 2006 por Isabel dos Santos. Mário Leite da Silva foi ainda professor da Universidade Católica portuguesa na área de Contabilidade Analítica e de Controlo de Gestão e na Porto Business School, na área de Planeamento e Controlo de Gestão, e chegou a fazer parte em 2018 do conselho geral e de supervisão da Porto Business School.
A relação de Isabel dos Santos com sócios portugueses foi conturbada, ainda que as razões sejam diferentes conforme os casos. Com a PT, os angolanos — Isabel dos Santos através da Vidatel, Sonangol e Geni — sentiram-se subalternizados quando a empresa preferiu um fundo nigeriano para seu sócio nos negócios para África em 2012. Desde então, incentivados por Isabel dos Santos, que, dizem, é de uma dureza nas negociações que às vezes raia a teimosia, resistiram a entregar os dividendos tendo sido mais tarde condenados a indemnizar a Oi, que tinha a receber mil milhões de dólares em dividendos. A ironia é que a Vidatel de Isabel dos Santos, como recebia os dividendos, também tinha a haver cerca de 700 milhões de dólares, que entraram nas contas arrestadas pelo Estado angolano.
Com Américo Amorim, a tensão iniciou-se quando Isabel dos Santos contratou Mário Leite da Silva, que estava na equipa de gestão do homem mais rico de Portugal. “Como Isabel não era um feiticeiro dos negócios, como Américo Amorim ou Paulo Azevedo, contratou os seus aprendizes de feiticeiro”, conta um consultor. Depois, a relação agudizou-se na Amorim Energia, onde as propostas estratégicas dos angolanos raramente venceram, embora o ambiente se tenha pacificado mais tarde. Com a Sonae, articulou-se no controlo acionista da NOS, apesar da OPA frustrada à PT SGPS, em que manifestara autonomia estratégica, mas contratou um quadro que estaria a participar na joint-venture com a Sonae Distribuição, Miguel Osório, e lançou a sua cadeia de distribuição Candando em 2015.
O primeiro passo para deslaçar os negócios entre Américo Amorim e Isabel dos Santos foi dado na Nova Cimangola, em que os dois sócios detinham 49% através da holding Ciminvest. No final de 2009, uma empresa controlada pelo marido de Isabel dos Santos adquiriu a posição do empresário português. A explicação deste, segundo o Diário Económico, seria que “esta sua posição não era estratégica” e que “o setor dos cimentos estava ainda muito governamentalizado”: “Apesar de a Ciminvest ter 49%, a verdade é que é o Estado que controla a empresa”. No Banco BIC e no imobiliário, quem fazia a ponte era Fernando Teles e portanto havia tempo.
Em junho de 2010, ficou-se a saber que Isabel dos Santos, acionista da Amorim Energia, escrevera a Américo Amorim a reforçar a intenção de sair da empresa e entrar diretamente na Galp. Foi a primeira vez que Isabel dos Santos saiu da sua posição de sleeping partner e, ao mesmo tempo, mostrou o seu distanciamento de Américo Amorim. Nesta altura já circulava a boutade que tanto lhe era atribuída a ela como aos quadros da Sonangol: “Temos 40 anos, Américo Amorim tem 80 anos, por isso podemos esperar…”.
Mesmo com Fernando Ulrich, com quem tinha grande proximidade pessoal, a relação ficou abalada com as disputas no BPI em torno da OPA da La Caixa ao BPI em 2016-2017, que levou o governo português a fazer o chamado ‘Diploma BPI’, que facilitou a desblindagem dos estatutos e provocou a fúria de minoritários como Isabel dos Santos ou a família Violas Ferreira.
Da vida banal à exibição do luxo
Isabel dos Santos era discreta na sua vida, não dava entrevistas, aparecia o menos possível e gostava de dizer que levava uma vida banal. Não tinha motorista, costumava andar sozinha, sem segurança, e era ela que conduzia nos engarrafamentos colossais em Luanda. “Trabalho todos os dias, sete dias por semana”, assegurava.
Uma publicação espanhola dizia que a imprensa a retratava como uma das mulheres mais poderosas do mundo, mas não comentavam o seu estilo, a sua forma de vestir. “A razão é óbvia: apesar de dezenas de artigos jornalísticos que falam e escrutinam o seu poder económico, a ‘princesa’ de África insiste em vestir-se de forma austera para não parecer ostentosa”. Uma descrição no jornal brasileiro O Globo acentuava o retrato: “No dia 12 de junho de 2014, na abertura da Copa do Mundo, ela usava só calças de ganga e uma blusa preta especial da grife Hugo Boss. Para compor o visual, nada de diamantes raros de Angola ou peças da sua joalharia suíça De Grisogono. E os cabelos? Presos num simples rabo-de-cavalo. Era assim que a engenheira Isabel José dos Santos – filha do Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, e a mulher mais rica da África, com fortuna estimada pela Forbes em 3,7 mil milhões de dólares – circulava quase anonimamente em um dos espaços VIP do Itaquerão, em São Paulo.”
Mas, por detrás desta imagem, havia mais.
Em 2015, segundo os documentos revelados pelo Luanda Leaks, Isabel dos Santos e Sindika Dokolo terão usado uma offshore em Malta para comprar um apartamento no Mónaco por 55 milhões de dólares (cerca de 50 milhões de euros ao câmbio atual). A casa fica no sexto andar do complexo de luxo La Petit Afrique e tem vista para o Mediterrâneo. O edifício foi um projeto imobiliário de Andre e Pierre Casiraghi, filhos de Carolina do Mónaco e Stefano Casiraghi, pessoas do círculo do casal angolano.
No centro de Londres, mais precisamente em Kensington, ficará uma outra propriedade de Isabel dos Santos que terá custado 13 milhões de libras, de acordo com o jornal britânico The Times. No Dubai, segundo os documentos revelados pelo Luanda Leaks, Isabel dos Santos terá uma propriedade no resort Bulgari, no famoso empreendimento de luxo de Jumeirah Bay.
Também de acordo com os documentos revelados pelo Luanda Leaks, na primavera de 2016 a empresária angolana terá comprado, através da empresa Unitel, o iate The Hayken por aproximadamente 35 milhões de euros a Christian Candy, milionário inglês do ramo imobiliário, que costuma estar fundeado no Mónaco.
Em 2016, foi revelado que a joalheira suíça De Grisogono, detida na maioria pelo casal, adquirira o diamante mais caro do mundo por 63 milhões de dólares (56 milhões de euros, na altura). O The Constellation foi comprado num “leilão restrito da casa londrina Sotheby’s, realizado pela Nemesis International, uma empresa do Dubai. Esta mesma empresa já tinha estado envolvida na aquisição do maior diamante de sempre encontrado em Angola igualmente pela De Grisogono. O The Constellation tem 813 quilates e mede seis centímetros. Foi encontrado numa mina no Botsuana explorada pela empresa canadiana Lucara Diamond.
Em Lisboa, ainda segundo os documentos revelados pelo Luanda Leaks e a informação veiculada por diversos jornais, Isabel dos Santos terá um apartamento de luxo, comprado através da offshore Finequity, localizada nos Estados Unidos. Mais tarde, terá comprado um segundo apartamento no mesmo prédio, mas os registos não indicam se foram transformados numa só penthouse. A Finequity tem escritórios na zona da Avenida da Liberdade.
Normalmente as suas reuniões de trabalho são no Hotel Ritz, onde por vezes se instala “rodeada de mordomias que expressamente solicita, mas evita ou declina aparecimentos em público”, segundo a Africa Monitor, citada pelo Jornal de Negócios. Também em Londres, mantém um escritório, em Chelsea, junto da famosa King’s Road, e um apartamento em Mayfair.
Em Luanda, segundo a Visão, vivia num condomínio de luxo, à saída de Luanda, “habitado por CEO’s de grandes empresas, (…) equipado com ginásio, coisa rara na capital angolana, apesar de preferir o jogging matinal ao ar livre”. A revista acrescentava: “Isabel terá duas casas, e nunca se sabe em qual delas está. (…) Tudo táticas de guerrilha, inspiradas no MPLA. Tal como o pensamento estratégico e os planos quinquenais com que raciocina”. Esta edição da Visão de 17 de maio de 2012 fazia capa com a “Poderosa Isabel”.
Sonangol, a atração fatal
Quatro dias depois de Isabel dos Santos tomar posse como presidente da Sonangol, a 10 de junho de 2016, deu entrada no Tribunal Supremo, em Luanda, uma providência cautelar, assinada por doze advogados angolanos, colocando em causa a legalidade da decisão de nomeação de Isabel dos Santos pelo seu pai e chefe de Estado, José Eduardo dos Santos, pedindo a suspensão da decisão. Seguiu-se uma manifestação contestando o facto de o Tribunal Supremo não se ter pronunciado no prazo de 45 dias. Este sobressalto da sociedade civil era a face visível da contestação, mas a mudança de poder na presidência de Angola vai mostrar o poder oculto do Estado de Angola, via Sonangol.
Manuel Vicente foi presidente da Sonangol logo depois de Joaquim David, que liderou a petrolífera durante dez anos. Ficou no cargo entre 1999 e 2012, quando se tornou vice-Presidente de Angola. Entre 2002 e 2010, o país duplicou a sua produção petrolífera de 905 mil barris/dia para 1,8 milhões de barris diários. Ao mesmo tempo, assistiu-se a um aumento em cerca de oito vezes do valor das receitas petrolíferas do governo, de 3,36 mil milhões de dólares em 2002, para 24,8 mil milhões em 2010.
Mas em 2014, depois de um período de cerca de três anos e meio com os preços do petróleo acima dos 100 dólares por barril, os mercados foram surpreendidos com uma queda acentuada de mais de 50% em apenas seis meses, com os preços a caírem para níveis que não se registavam desde 2009. Em 2015, o peso dos impostos do petróleo no Orçamento de Estado em Angola baixaram de 70% para 36%. Este novo cenário atingiu em cheio a gestão de Francisco Lemos, que substituíra Manuel Vicente em 2012.
Em novembro de 2015, Isabel dos Santos foi incluída na lista BBC 100 Women. Na mesma altura, foi convidada a partilhar as suas ideias com a Comissão de Reestruturação da Indústria Petrolífera, que era liderada por Euclides Costa e incluía vários ministérios e organismos públicos angolanos. Nessa altura, a sua empresa de consultadoria, a Wise, desenvolveu uma proposta de redesenho e alteração do modelo em que a Sonangol era concessionária, fazia a regulação, atribuía os blocos de exploração e fazia a relação com os investidores. Contratada por oito milhões de dólares, a Wise fez o redesenho do sector que deu origem à Agência Nacional de Petróleos — que passou a ser a concessionária —, definiu melhor os limites do Ministério dos Petróleos — mais um órgão legislador — e, ao mesmo tempo, definiu que a Sonangol deveria virar-se definitivamente para a questão operacional.
As propostas da Wise para a Sonangol foram entregues em março de 2016. Apenas um mês antes, Francisco Lemos criticou a forma subalterna como Isabel o convocava para reuniões e a ocupação do sétimo e oitavo andar do edifício da sede da empresa para acomodar os consultores estrangeiros que a filha do Presidente recrutara em Portugal.
Isabel dos Santos lembrou esse período em entrevista ao Observador: “A Sonangol sempre foi o pilar da economia angolana, sempre foi onde a economia angolana se apoiou para poder, efetivamente, ter pujança e conseguir reconstruir o país. O seu antigo administrador, Francisco Lemos, meu antecessor, faz um diagnóstico em que anunciou com alguma gravidade que a Sonangol estava numa situação muito difícil, quase de pré-falência. O engenheiro Manuel Vicente foi presidente do Conselho de Administração da Sonangol durante quase 12 anos ou mais, portanto, no fundo, ele é que geriu a Sonangol, ele é que controlou a Sonangol, mandou na Sonangol. Acho que trabalhou lá mais de 14 anos e esteve no conselho de administração muito tempo”.
Na mesma entrevista, disse que foi convencida a liderar a Sonangol por Edeltrudes Costa, então ministro de Estado e chefe da Casa Civil e atualmente ministro e diretor do Gabinete do Presidente da República, João Lourenço, uma espécie de primeiro-ministro. Recordou: “O petróleo tinha estado em 28 dólares em fevereiro e eu chego à Sonangol em junho e no final do mês de junho a Sonangol está à beira de incumprir com os convénios financeiros. Ou seja, estamos a falar de mais de 20 mil milhões de dívidas quase, a incumprir com os convénios financeiros em biliões de dólares com vários bancos. Uma situação muito dramática, muito grave. Foram dias muito duros. No mês de julho de 2016 não havia dinheiro para salários. Havia 800 milhões de dólares de dívidas a fornecedores, que estavam em faturas em gavetas, que não tinham sido processadas no sistema”.
Isabel dos Santos levou para a sua equipa caras novas, como Eunice Paula Figueiredo Carvalho, presidente da Chevron Brasil e da seguradora AAA, e uma bateria de entre 130 e 200 consultores, sobretudo da sociedade de advogados Vieira de Almeida e das auditoras PwC e BCG, que eram coordenados pela Matter Business Solution. Numa entrevista ao Jornal de Negócios, disse que conseguiu na Sonangol poupanças de 1,4 mil milhões dólares, tendo baixado os custos em 40%, identificando mais de mil milhões de oportunidades de aumento de receitas, fazendo a avaliação aos 6 mil funcionários e a identificação de talentos. Ao Observador, deu como exemplo os seguros, que terão passado de uma fatura de mil milhões para 180 milhões por ano.
A gestão de Isabel dos Santos colocou em causa o passado, mesmo que as prováveis práticas de desvio de verbas se mantivessem, como alegam as autoridades angolanas. Começou por atacar o legado de Manuel Vicente quando demitiu Carlos Saturnino da presidência da Comissão Executiva da Sonangol Pesquisa e Produção, a 20 de dezembro de 2016, que ocupara, no consulado de Vicente na Sonangol, a posição-chave de diretor de negociações (entre 2002 e 2012).
Na Sonangol, Isabel dos Santos assumiu um papel de liderança, mas, como disse um consultor de topo na empresa, “tinha a fama que a precedia”. Ficou a ideia de que poderia ser o que dizem dela — fria, calculista, estruturada —, mas surpreendeu a “faceta leviana com que tirava fotografias em reuniões com os documentos abertos e postava de seguida nas redes sociais”. De resto, “participava pouco, mas era muito observadora, vinha sempre com as reuniões preparadas, até porque tinha um bom staff, como o Mário Silva, que não transmite emoções, é frio, objetivo e atua com racionalidade”.
Esta equipa de Isabel dos Santos funcionava no 18.º andar, onde era difícil às vezes chegar por causa das avarias nos elevadores e a estratégia era a contenção e corte de custos e questionar contratos. “Os milhões de dólares em fornecimentos e serviços, com o objetivo de libertar algum cash” num “polvo com mais de 30 empresas”. Sem elogiar a gestão de Isabel dos Santos, este consultor de topo da empresa não deixa de sublinhar que no passado não se tinha “ideia do que era preciso fazer, porque, como havia muito dinheiro, comprava-se tudo”.
Nessa altura, a Sonangol não tinha ideia de quantos funcionários pertenciam aos seus quadros porque havia pessoas em comissões de serviço em duas e três empresas ao mesmo tempo, havia registos de um Falcon desalfandegado três vezes, tendo pago 1 milhão de dólares em cada uma dessas vezes, e o gestor recorda-se do rasto perdido de um Boeing 737 que nunca apareceu.
A Sonangol era o corolário de vários negócios que tinham passado para as mãos de Isabel dos Santos diretamente do pai. Em junho de 2015, a obra da barragem Caculo Cabaça, avaliada em 4.532 milhões de dólares (3.874 milhões de euros), que previa também financiamento do Banco Comercial e Industrial da China, foi entregue, sem concurso público, pelo então chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos, ao consórcio CGGC & NIARA Holding Limitada, esta última, empresa de Isabel dos Santos. Entretanto, o novo chefe de Estado, João Lourenço, excluiu em julho deste ano estas duas empresas do consórcio encarregado da construção daquela barragem. No despacho presidencial 79/18, de 12 de julho de 2018, apontava-se então a “necessidade da modificação subjetiva” do consórcio responsável pela obra, justificada com o “objeto do contrato e do seu equilíbrio financeiro”.
A 27 de Setembro de 2013, pelo decreto presidencial n.º 90/13, a reabilitação e o aumento da capacidade da Barragem de Luachimo (de 8 para 34 MW), na Lunda-Norte, foi adjudicada à chinesa CGGC, por mais de duzentos milhões de dólares. Três anos depois, em 2016, a CGGC, por sua vez, subcontratou a Niara Power e e a Efacec Power Solutions, subsidiárias da Niara Holding de Isabel dos Santos.
A 15 de Maio de 2019, João Lourenço anulou o contrato da Urbinveste, empresa de Isabel dos Santos, relativo à Marginal da Corimba, com a justificação de sobrefaturação nos valores com “serviços onerosos para o Estado”. Este projeto está avaliado em 1,3 mil milhões de dólares (1,4 mil milhões de euros) e tem uma história longa. Tornou-se polémico sobretudo pela expulsão dos habitantes de uma das faixas conhecida por Areia Branca, onde se iniciaria a chamada Marginal da Corimba e que faz parte do Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda, também conhecido por Masterplan de Luanda. Os desalojados querem que seja declarada ilegal a expropriação dos terrenos, avaliados em 600 milhões de euros.
O projeto ocupa uma área litoral de 7 quilómetros, a sul de Luanda, contemplando a construção da autoestrada da Marginal da Corimba, um porto de pesca, uma marina, hotéis, residências de luxo e uma linha de elétricos e espaços para desenvolvimento imobiliário.
O PDGML foi lançado em 2009, pelo governo da Província de Luanda, para criar novos polos de desenvolvimento e crescimento integrado. Em 2010, o consórcio liderado pela Urbinveste venceu um concurso público internacional. Em 2012, a Urbinveste contratou a empresa de arquitetura britânica Broadway Malyan e a empresa holandesa de construção marítima Van Oord, que tinham acabado de concluir o icónico empreendimento em forma de palmeira, o Palm Jumeirah, no Dubai. A 10 de maio de 2013, o plano completo foi apresentado a José Eduardo dos Santos numa reunião formal e “foi obtida autorização para a elaboração do projeto”. Em 14 de Dezembro de 2015, foi oficialmente apresentado durante uma cerimónia presidida pelo então ministro de Estado e chefe de Assuntos Civis da Presidência da República, Edeltrudes Costa.
Nessa altura, Isabel dos Santos considerou que este projeto assentava em três pilares. O primeiro, Luanda Habitável, pretendia garantir todos os serviços sociais, como creches, escolas, clínicas, estradas, água, eletricidade e locais de trabalho próximos. O segundo pilar, Luanda Bonita, previa a preservação da beleza natural, cultural e ambiental da cidade, uma das cidades mais antigas de África, fundada em 1492, com a chegada dos colonos portugueses. O terceiro e último pilar, Luanda International, procuraria fazer de Luanda uma cidade em África e no mundo comparável a Paris, Joanesburgo ou Rio de Janeiro.
Este projecto ter-se-ia baseado em 400 reuniões com as comunidades, estudantes, chefes tradicionais, moradores, empresas, comerciantes e funcionários do governo para discutir o que os angolanos pretendiam de Luanda até 2030.
O cerco do Estado angolano a Isabel dos Santos que passou por Portugal
A 1 de julho de 2017, Isabel dos Santos, então presidente da Sonangol, esteve presente numa ação de campanha no Cacuaco, de braço dado com Ana Lourenço, mulher de João Lourenço, ministra do Planeamento de José Eduardo dos Santos durante oito anos, e uma das principais colaboradoras do atual Presidente.
Menos de três meses depois, a 26 de setembro de 2017, João Lourenço tomou posse como Presidente da República e não tardou muito a enfrentar os filhos de José Eduardo dos Santos. A 15 de novembro de 2017, exonerou Isabel dos Santos e os restantes administradores da Sonangol. Depois, mandou cessar de imediato “todos os contratos entre o ministério em questão, a Televisão Pública de Angola (TPA) e as empresas privadas Westside e Semba Comunicações referentes à gestão do Canal 2 e da TPA Internacional, os quais devem retornar ou passar para a esfera jurídica da TPA”, que estavam relacionadas com Tchizé dos Santos e com o irmão Coreon Dú. Finalmente, a 10 de janeiro de 2018, demitiu a administração do Fundo Soberano de Angola, presidida por José Filomeno de Sousa dos Santos.
Isabel dos Santos foi substituída na Sonangol por Carlos Saturnino, que, até dezembro de 2016, tinha sido presidente da Comissão Executiva da Sonangol Pesquisa & Produção e fora demitido por ela acusado de má gestão e de graves desvios financeiros. A 28 de fevereiro de 2018, foi Saturnino quem acusou a administração de Isabel dos Santos de ter autorizado uma transferência de 38 milhões de dólares (31,1 milhões de euros), após a sua exoneração, para a Matter Business Solution, no Dubai, que tinha como acionista Paula Oliveira, amiga de Isabel dos Santos e ex-administradora da NOS, através do Banco EuroBic, “que passou a ser um dos bancos preferenciais a nível da Sonangol”.
Saturnino referiu ainda a existência de “riscos alarmantes” por falta de manutenção em vários edifícios da Sonangol, nomeadamente em elevadores, geradores e ar condicionado, resultante de dívidas aos prestadores de serviços, desde parte de 2015, 2016 e 2017. E também biliões de kwanzas de multas e juros, impostas pela Administração Geral Tributária, por falta de pagamento de direitos aduaneiros, impostos e afins, em grande parte do ano de 2017. Estas informações motivaram a abertura de um inquérito da Procuradoria-Geral da República angolana. Assim começava o cerco jurídico a Isabel dos Santos.
A 2 de Março de 2018, a Procuradoria-Geral da República angolana abriu também um inquérito para apurar as denúncias feitas dois dias antes pelo presidente do Conselho de Administração da Sonangol, que acusou a empresária de, pouco depois de ser exonerada, ter feito transferências no valor superior a 38 milhões de dólares para a Matter. Num comunicado, a Procuradoria-Geral da República angolana indicou então que o inquérito visava “investigar os factos ocorridos, bem como o eventual enquadramento jurídico-criminal dos mesmos”.
Em março de 2018, contrariando os ataques de Carlos Saturnino, o site Maka Angola, de Rafael Marques, registou as respostas de Isabel dos Santos. Disse que “existem duas culturas na Sonangol”: a criada e mantida por Manuel Vicente (presidente do conselho de administração entre 1999 e 2012), a que chama de “antiga escola”; e a nova cultura que ela tentou implementar. Isabel dos Santos acusou ainda Saturnino de “procurar buscar um bode expiatório para esconder o passado negro” da empresa, realçando o facto de ter encontrado em 2016 a Sonangol em “falência”.
Segundo Isabel dos Santos, a gestão de Manuel Vicente — ou da “antiga escola” — caracterizou-se por uma “cultura de irresponsabilidade e desonestidade que afundaram a Sonangol em primeiro lugar”, em que vários “aproveitaram e construíram fortunas ilegítimas à custa da Sonangol”. E agora “estão de retorno os interesses das pessoas que enriqueceram bilhões à custa da Sonangol, são estes que hoje fomentam e agitam a opinião pública, de forma a poderem retomar os seus velhos hábitos”.
Para tentar atrair os capitais que a oligarquia angolana terá espoliado, João Lourenço fez aprovar duas leis sobre repatriamento de capitais, as quais considerou serem a pedra-de-toque da sua política contra a corrupção. A Lei do Repatriamento de Recursos Financeiros, vulgo Lei do Repatriamento Voluntário (LRV), de 26 de Junho, e a Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, vulgo Lei do Repatriamento Coercivo (LRC), de 26 de Dezembro. Nesta fase, Isabel dos Santos recusou ter em conta estas medidas de recuperação de ativos e capitais e abrir a porta a qualquer negociação.
O ataque paciente ao clã Dos Santos
Segundo Rafael Marques, a 17 de julho de 2018, quando Isabel dos Santos foi notificada para prestar declarações a propósito da transferência da Sonangol de 38 milhões de dólares para a Matter Business Solutions, com sede no Dubai, e numa ação em que é queixosa, recusou-se a receber a notificação. “Refugiou-se na casa do pai [em Barcelona] e saiu diretamente para o aeroporto”, num voo noturno da KLM com destino a Bruxelas.
Isabel dos Santos tem-se movido entre Lisboa, Barcelona, Londres, pois tem visto de residente, e o Dubai, que nos últimos anos se tornou refúgio e ponto de passagem de fortunas suspeitas. Por exemplo, na Sonangol há muitos anos que é normal os altos quadros terem reuniões com clientes e fornecedores no Dubai. Por outro lado, como Isabel dos Santos disse à agência noticiosa russa Tass, a 9 de janeiro de 2020, que é “russa por nascimento”, não recuperou essa nacionalidade em 2019 porque “não tinha de recuperar a cidadania que sempre tivera”.
Como referiu o Jornal de Notícias de 25 de janeiro de 2020, Isabel dos Santos esteve em Lisboa a 22 de janeiro de 2020, tendo utilizado três identidades — “Izabel Dosovna Kukanova”, “Isabel José dos Santos” e “Santos Isabel”. Os dois primeiros nomes dos passaportes russo e o angolano, sendo a terceira identificação do cartão de residente do Reino Unido.
A 30 de agosto de 2018, João Lourenço, na sessão de abertura da VI reunião ordinária do Comité Central do MPLA, fez um discurso maioritariamente voltado para o combate à corrupção e com exemplos ligados à família de José Eduardo dos Santos, sem citar nomes. Lembrou que, no combate à corrupção, “aqueles que vêm perdendo privilégios auto adquiridos” ao longo dos anos “deviam ter a sensatez e humildade de agradecer a este povo generoso por lhes ter dado essa possibilidade e não se fazerem de vítima, porque a única vítima desse comportamento ganancioso foi o povo”. Acrescentou ainda que “este povo, que permitiu que uns poucos privilegiados mergulhassem no pote de mel, com insaciável apetite, não merece tamanha ingratidão, com manifestações de quem se julga no direito de manter o estatuto indevidamente adquirido”. Mais: “Só mesmo a falta de patriotismo pode levar um cidadão nacional a desencorajar o investimento estrangeiro no seu próprio país, que pode trazer emprego e o pão para a mesa dos angolanos”.
A 24 de Setembro de 2018, José Filomeno dos Santos, antigo presidente do conselho de administração do Fundo Soberano de Angola, e o empresário suíço-angolano Jean-Claude Bastos de Morais, sócio de José Filomeno dos Santos em vários negócios, foram presos preventivamente, tendo sido libertados a 24 de março de 2019. José Filomeno dos Santos foi acusado de peculato e branqueamento de capitais, por ter alegadamente feito uma transferência irregular de 500 milhões de dólares (452 milhões de euros) do Banco Nacional de Angola para um banco britânico, em setembro de 2017. Este montante, no entanto, acabou por ser recuperado em abril de 2018. Jean-Claude Bastos de Morais foi libertado a 22 de março de 2019 quando o Governo angolano recuperou os 3 mil milhões de dólares do Fundo Soberano de Angola sob sua gestão.
Este braço de ferro entre João Lourenço e Isabel dos Santos é entre “dois teimosos”, como diz um amigo de João Lourenço. Mas de um lado está um Estado e, do outro, uma empresária rodeada de problemas. Isabel dos Santos recebeu um aviso, como revela um e-mail que consta dos Luanda Leaks sobre os alertas no Banco Santander a propósito da sua reputação. “Os gajos ouvem falar em Isabel e fogem como o Diabo da cruz… orientações de Espanha”. No e-mail pode ler-se ainda: “Temos alguns issues com o Santander, ou melhor, eles connosco. O departamento de compliance dos gajos consideram-nos PEP (Political Exposed Person) e, por conseguinte, nunca conseguiremos fazer nada com eles”.
A 4 de Janeiro de 2019, Manuel Vicente disse ao Expresso sobre Isabel dos Santos: “Tenho pena que, perante o que se está a passar neste momento em Angola, ela não entenda que, nesta guerra, não haverá vencedores”. Esta guerra anunciada teve várias tentativas de levar Isabel dos Santos a negociações, tanto da parte de Manuel Vicente, como até de Vladimir Putin, que na cimeira Rússia/África a 23 de 24 de Outubro, em Sochi, fez com que Isabel dos Santos se cruzasse com João Lourenço.
As ruínas do império em Portugal
Na entrevista ao Observador de 20 de Dezembro de 2019, Isabel dos Santos referiu que as suas empresas tinham sido vítimas de um ataque de hackers “e foram roubados e-mails”, o que a deveria ter alertado. Mas, por muito que se preparasse, o edifício do Luanda Leaks estava assente, aparentemente, em 700 mil documentos, obtidos pelo hacker Rui Pinto, que vieram expor os seus negócios de uma forma crua.
Em relação aos seus ativos em Portugal, Isabel dos Santos reagiu com rapidez e sem estados de alma. Colocou as suas participações à venda. Tentou vender o Eurobic aos venezuelanos do A Banca, com sede na Galiza, mas estes, com a crise pandémica em março, recuaram no negócio. Mas mesmo assim o cerco apertou-se.
O Ministério Público português requereu também o arresto das suas contas bancárias, no âmbito de pedido de cooperação judiciária internacional das autoridades angolanas. E houve uma ordem judicial e também do Banco de Portugal para monitorizar os movimentos bancários que são realizados pelas empresas portuguesas em que Isabel dos Santos detém ou detinha participações, para avaliar se existem algumas transferências cuja legalidade possa levantar dúvidas.
Os processos multiplicam-se. Em Portugal e em Angola.
Sobre os imóveis que lhe atribuem — como as casas e escritórios em Lisboa –, e outros que Isabel dos Santos nega nas redes sociais que lhe pertençam — como uma vivenda na Quinta do Lago ou a herdade da Torre Bela (que tem estado recentemente sob polémica devido à montaria em que foram mortos centenas de animais).
A 2 de julho de 2020, o Governo português nacionalizou 71,73% do capital social da Efacec, que Isabel dos Santos detinha através da Winterfell, e que adquirira em 2015. Em março de 2020, foi o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) que ordenou o arresto das participações detidas por Isabel dos Santos na NOS, Eurobic e Efacec, bem como de todas as contas bancárias em Portugal da filha de José Eduardo dos Santos, de Mário Leite da Silva (o braço direito de Isabel dos Santos), de Paula Oliveira (a amiga e alegada testa-de-ferro de Isabel dos Santos envolvida no Luanda Leaks) e de Sarju Rainkundalia (ex- chief financial officer, CFO, da Sonangol).
As ações da Galp detidas por Isabel dos Santos terão sido alvo de um arresto promovido pela República de Angola nos tribunais holandeses, jurisdição a que pertencem não só a sociedade detida por Sindika Dokolo, o marido de Isabel dos Santos entretanto falecido, que detém formalmente a participação na petrolífera portuguesa, como também a Amorim Energia, a holding que junta a família Amorim, a Sonangol e Isabel dos Santos. Em setembro deste ano, as autoridades anunciavam uma investigação à Exem Energy, sociedade através da qual o casal era dono de uma posição indireta de 6% na Galp Energia
A 19 de agosto de 2020, o Estado angolano venceu o litígio que mantinha com a Atlantic Ventures, ligada a Isabel dos Santos, relativo à revogação de um decreto que havia atribuído a concessão do porto do Dande à referida empresa. A Atlantic Ventures, na sequência desta decisão, abriu um processo contra o Estado angolano no Tribunal Arbitral de Paris. No mesmo dia, a Sonaecom dissolveu a parceria com Isabel dos Santos na NOS, na holding ZOPT. Os 26,075% de Isabel dos Santos estavam arrestados preventivamente.
Em 26 de outubro de 2020 a Unitel iniciou um processo judicial em Londres contra a Unitel International Holdings (UIH), detida pela empresária angolana, para recuperar uma dívida de mais de 350 milhões de euros para reembolso de sete empréstimos atribuídos entre maio de 2012 e agosto de 2013 da Unitel à UIH. A Unitel alega que a UIH deve 325.305.539 euros e 43.937.301 dólares (cerca de 37 milhões de euros), acrescido de juros de mora
A 19 de novembro de 2020, um tribunal das Ilhas Virgens, na sequência de uma ação judicial da PT Ventures, decidiu constituir administradores judiciais para a gestão de ativos específicos da Vidatel, empresa de Isabel dos Santos registada nas Ilhas Virgens, passando para a gestão destes todas as contas bancárias detidas e/ou controladas pela Vidatel, incluindo a participação de 25% na Unitel, que hoje é controlada pela Sonangol com 50%. O Tribunal Arbitral de Paris condenou os “acionistas fundadores” daquela empresa de telecomunicações a pagar à PT Ventures duas indemnizações que totalizam 654,2 milhões de dólares (568,8 milhões de euros).
O raio-x à fortuna de Isabel dos Santos permitido pela revelação desses mais de 700 mil documentos do Luanda Leaks permite deslindar 400 empresas que, como bonecas russas, escondiam sociedades, ativos e empresas fantasma numa rede de paraísos fiscais. Foi o princípio da revelação de um regime endogâmico em que nenhum dos seus membros está a salvo.
Filipe S. Fernandes é autor do livro “Isabel dos Santos – Segredos e Poder do Dinheiro”, editado em 2015 pela Casa das Letras.